Excerto do poste P26523 (**):
Senhora enfermeira, quero fazer chichi!
(Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)
O Leite Rodrigues era um exímio contador de histórias, não só da guerra, mas também...
Contava ele que o avião que o trouxe, ferido, da Guiné, veio de noite de modo a chegar a Lisboa no escuro da alta madrugada, para não serem notados, e vinha carregado de feridos muito graves.
O que estava em melhores condições era ele, que apenas vinha com uma fome de criar bicho, com a língua traçada e a boca selada com arames, pois os ossos do queixo ficaram em bocados.
Entre os feridos, vinha um grande grupo de queimados em grau elevado, devido ao rebentamento de uma granada incendiária num embate com o inimigo, creio que em Bula. Todos embrulhados em gaze, pareciam múmias, era assustador e doloroso olhar para aquelas criaturas, comentava com ar pesado o Leite Rodrigues, nas suas lembranças, passados tantos anos…
Acompanhavam-nos duas zelosas enfermeiras, que tudo tentavam para lhes amenizar as dores. Às tantas ouve-se um gemido.Quando chegaram a Lisboa, desembarcaram e seguiram para o Hospital em ambulâncias militares, sem fazer o tradicional ninau! ninau!ninau!, para não incomodar os lisboetas.
Encaminharam-no para uma camarata, e atribuíram-lhe uma cama no R/C. Ao pousar os seus haveres tocou em uma coisa dura, que tombou ruidosamente.
O Camarada que dormia no primeiro andar disparou:
– Deste-me cabo da perna, amanhã vou foder-te o juízo!
O Leite Rodrigues tentou dizer-lhe que foi sem querer, mas apenas consegui balbuciar, nh! nh! nh!
– Tu grunhas, meu filho da...p*ta!... Quando me levantar vou te partir os queixos!
No dia seguinte de manhã, cruzaram o olhar calmamente, e descobriram que tinham sido colegas do mesmo pelotão na recruta em Mafra. Um abraço não esperado, sem palavras, mas sentido. Do Leite Rodrigues apenas se viam os olhos; o camarada chegara uns tempos antes vindo de Moçambique, sem uma perna que fora levada por uma mina antipessoal. estado do povo e sobretudo de nós os jovens dessa altura.
(*) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)
(**) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26523: In Memoriam (534): O Alberto Leite Rodrigues que eu conheci (José Teixeira/Tabanca de Matosinhos)
5 comentários:
M. Arminda Santos (by email, 3 nmar 2025, 13:43)
Li a "estorinha" e achei graça à imaginação. Um doente, a pedir para fazer xi-xi, admito. Agora ver a fila e ainda por cima alguns queimados, a fazerem o mesmo pedido, acho do outro mundo. Para já, nesse estado, vinham algaliados e sem calças, não sendo necessário, abrir a braguilha!..
Bem sei o trabalho que tive com 4 militares queimados, que acompanhei e tratei de Lourenço Marques ( Maputo), até Lisboa. Só de relembrar essa evacuação, fico a transpirar.
Contudo, acho bem terem feito um pouco de humor, para desanuviar um ambiente, tão angustiante.
Votos de boa saúde e até sempre.
Um bj,
M. Arminda Santos
A primeira vez que li a história fiquei incrédulo.
As minhas dúvidas ficaram TECNICAMENTE esclarecidas com o comentário da camarada Arminda Santos.
Abraço
Eduardo Estrela
Que bela anedota de caserna, mesmo que seja de humor negro.
Venham mais porque a vida continua...
Um beijinho para a nossa Arminda (a minha mãe era também Arminda)
Santos por ter encaixado na boa esta anedota de caserna, mas verídica, penso eu !
Abraços amigos e precisamos de rir neste cenário de morte que se vive agora!
Virgílio Teixeira
Jose Teixeira (by email)
3 mar 2025, 19:34
A M. Arminda talvez tenha razão. Fala a experiência. Como o Leite Rodrigues já cá não está, não podemos aferir a verdade, no entanto, recordo que o L.R. dizia que as queimaduras eram na parte superior do corpo, tronco, braços e cara. Mais não sei.
Tentei várias vezes que ele passasse ao papel estes acontecimentos, mas foi como chover no molhado.
Um beijinho à Rosinha e à Clara.
Um xicoração do
Zé Teixeira
Olá, amigos e camaradas... A "estória" não tem falsa ou verdadeira... O efeito (o riso) é conseguido...Como felizmente nunca fui evacuado para a "metrópole" nestas penosas circunstâncias, só posso "imaginar"... Há relatos das nossas camaradas enfermeiras paraquedistas destas longas e incómodas viagens (para todos, doentes e acompanhentes)... Publicarei um em breve...
É uma "histórica pícara"... Até pode(ia) ser uma "anedota"... Ninguém vai comprovar a veracidade das anedotas... De qualquer, como a gtente costumava dizer, com "humor de caserna", "onde mija um português, mijam logo dois ou três"...
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