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domingo, 2 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26543: Humor de caserna (106): "Senhora enfermeira, quero fazer chichii!"... (Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


1. Dizem que os bois se conhecem pelos cornos, e os homens pela(s) palavra(s)...

Os homens também também se conhecem pelo humor, mais fino ou mais alarve, mais inteligente ou mais brejeiro (*), mais "soft" ou mais "hard"... E não importa as situações: em casa ou no trabalho, na rua ou no salão, à mesa ou no cama do hospital, na paz ou na guerra... 

Mal de nós, humanos, quando perdermos o sentido de humor, coisa que os robôs nunca terão, espero bem... Nem têm os ditadores e aprendizes de ditadores, os censores, os arrogantes, e os que pensam que são donos disto tudo...

Esta "história" do nosso já saudoso Leite Rodrigues (1945-2025) que, além de grande senhor do hipismo e do olimpismo, foi nosso camarada (e continua a sê-lo, respousando agora à sombra do nosso poilão), diz muito sobre ele, a sua personalidade, a sua história de vida...É aqui reconstituída (ou recontada) pelo régulo da Tabanca de Matosinhos, José Teixeira:

Excerto do poste P26523 (**):


Senhora enfermeira,  quero fazer chichi!  

(Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


O Leite Rodrigues era um exímio contador de histórias, não só da guerra, mas também...

Contava ele que o avião que o trouxe, ferido, da Guiné, veio de noite de modo a chegar a Lisboa no escuro da alta madrugada, para não serem notados, e vinha carregado de feridos muito graves. 

O que estava em melhores condições era ele, que apenas vinha com uma fome de criar bicho, com a língua traçada e a boca selada com arames, pois os ossos do queixo ficaram em bocados. 

Entre os feridos, vinha um grande grupo de queimados em grau elevado, devido ao rebentamento de uma granada incendiária num embate com o inimigo, creio que em Bula. Todos embrulhados em gaze, pareciam múmias, era assustador e doloroso olhar para aquelas criaturas, comentava com ar pesado o Leite Rodrigues, nas suas lembranças, passados tantos anos…

Acompanhavam-nos duas zelosas enfermeiras, que tudo tentavam para lhes amenizar as dores. Às tantas ouve-se um gemido. 

– Senhora enfermeira,  quero mijar! 

E logo uma sorridente bata branca se aproximou, desapertou-lhe a carcela, e o pobre do rapaz aliviou-se. De seguida, todos os queimados, em carreirinha, apelaram às enfermeiras para os pôr a mijar…

 E foi assim durante o resto da noite. E, ele que nem falar podia, apreciava silenciosamente a paciência e o zelo das queridas enfermeiras.

Quando chegaram a Lisboa, desembarcaram e seguiram para o Hospital em ambulâncias militares, sem fazer o tradicional ninau! ninau!ninau!, para não incomodar os lisboetas.

Encaminharam-no para uma camarata, e atribuíram-lhe uma cama no R/C. Ao pousar os seus haveres tocou em uma coisa dura, que tombou ruidosamente.

O Camarada que dormia no primeiro andar disparou:

– Deste-me cabo da perna, amanhã vou foder-te o juízo!

O Leite Rodrigues tentou dizer-lhe que foi sem querer, mas apenas consegui balbuciar, nh! nh! nh!

– Tu grunhas,  meu filho da...p*ta!... Quando me levantar vou te partir os queixos!

No dia seguinte de manhã, cruzaram o olhar calmamente, e descobriram que tinham sido colegas do mesmo pelotão na recruta em Mafra. Um abraço não esperado, sem palavras, mas sentido. Do Leite Rodrigues apenas se viam os olhos; o camarada chegara uns tempos antes vindo de Moçambique, sem uma perna que fora levada por uma mina antipessoal. estado do povo e sobretudo de nós os jovens dessa altura. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
_____________

Notas  do editor LG:

(*) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)

5 comentários:

Anónimo disse...

M. Arminda Santos (by email, 3 nmar 2025, 13:43)

Li a "estorinha" e achei graça à imaginação. Um doente, a pedir para fazer xi-xi, admito. Agora ver a fila e ainda por cima alguns queimados, a fazerem o mesmo pedido, acho do outro mundo. Para já, nesse estado, vinham algaliados e sem calças, não sendo necessário, abrir a braguilha!..

Bem sei o trabalho que tive com 4 militares queimados, que acompanhei e tratei de Lourenço Marques ( Maputo), até Lisboa. Só de relembrar essa evacuação, fico a transpirar.

Contudo, acho bem terem feito um pouco de humor, para desanuviar um ambiente, tão angustiante.

Votos de boa saúde e até sempre.
Um bj,
M. Arminda Santos

Eduardo Estrela disse...

A primeira vez que li a história fiquei incrédulo.
As minhas dúvidas ficaram TECNICAMENTE esclarecidas com o comentário da camarada Arminda Santos.
Abraço
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Que bela anedota de caserna, mesmo que seja de humor negro.
Venham mais porque a vida continua...

Um beijinho para a nossa Arminda (a minha mãe era também Arminda)
Santos por ter encaixado na boa esta anedota de caserna, mas verídica, penso eu !

Abraços amigos e precisamos de rir neste cenário de morte que se vive agora!

Virgílio Teixeira

Anónimo disse...

Jose Teixeira (by email)
3 mar 2025, 19:34

A M. Arminda talvez tenha razão. Fala a experiência. Como o Leite Rodrigues já cá não está, não podemos aferir a verdade, no entanto, recordo que o L.R. dizia que as queimaduras eram na parte superior do corpo, tronco, braços e cara. Mais não sei.
Tentei várias vezes que ele passasse ao papel estes acontecimentos, mas foi como chover no molhado.

Um beijinho à Rosinha e à Clara.
Um xicoração do
Zé Teixeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Olá, amigos e camaradas... A "estória" não tem que ser falsa ou verdadeira... Quando muito, verosímil... O efeito (o riso) julgo que é conseguido...

Como felizmente nunca fui evacuado para a "metrópole" nestas penosas circunstâncias, só posso "imaginar" só posso o pesadelo que seriam esssas viagens de milhares de quilómetros, em aviões ronceiros...

Há relatos das nossas camaradas enfermeiras paraquedistas destas longas e incómodas viagens (para todos, doentes e acompanhentes)... Publicarei um em breve...

É uma "histórica pícara"... Até pode(ia) ser uma "anedota"... Ninguém vai comprovar a veracidade das anedotas... De qualquer, como a gtente costumava dizer, com bom "humor de caserna", "onde mija um português, mijam logo dois ou três"...