Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 23 de setembro de 2007
Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)
Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 (Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), com um Alfa Bravo (abraço) (1) (*):
É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.
Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
Febre hemorrágica.
Sida.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.
As setas pragas do Egipto.
A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. Burn-out. Desidratação.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.
Ou um náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.
Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que eram verdes,
diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.
Já.
Ou encontravas.
Diz ele.
Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha
nem ração de combate.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.
Simplesmente morto por uma roquetada.
O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.
Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira.
-diz ele.
In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,
o napalm,
o RPG-Sete.
O pássaro de areia, diz ela.
- Quem vem lá ?
Cala-se o dari (2) no Cantanhez.
E as gazelas na orla das bolanhas da zona leste.
Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.
*Publicado originalmente em Luís Graça > Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > 16 de Setembro de 2007 > Blogantologia(s) II - (51): A morte do pássaro de areia
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)
(2) Chimpanzé
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