terça-feira, 25 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2129: Quero depositar um ramo de flores em Gandembel (José Teixeira)



Guiné > Região de Quínara > Buba > José Teixeira com o seu conterrâneo Mário Pinto (da CCAÇ 2317, Gandembel , 1968/69). Na primeira foto, o obus 10,5 e ao fundo o rio (... Bafatá).


Edição: CV

1. O Post 2117 - Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (10) - O terror das Colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje) (1), inspirou um trabalho do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70).

Fotos: © José Teixeira (2007). Direitos reservados

Mensagem de 24 de Setembro de 2007

Camaradas editores:

Sáude, paz e felicidade

O Idálio Reis continua a sua estória sobre Gandembel (1). É impressionante a forma como descreve a sua odiseia. Creio que ninguém ficou indiferente.

Junto mais um pequeno texto. Foi esta a forma que encontrei para lhe testemunhar a minha admiração e gratidão.

Para ele um grande abraço.

Junto também uma foto tirada em Buba em que estou eu e o meu conterrâneo Mário Pinto, cujo nome está mencionado no texto.

Fraternal abraço do
J.Teixeira



2. Quero voltar a Gandembel. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel.
por Zé Teixeira

Ao ler o último texto do querido amigo Idálio Reis sobre a odisseia Gandembel (1), quero curvar-me em profunda homenagem aos camaradas, dele especialmente e nossos também, que regaram com o seu sangue aquela terra vermelha e inóspita à altura, e que hoje tão bem nos recebe. Os que deixaram lá a sua jovem vida e os que sofreram na carne as agruras do sofrimento na pele e no espírito, e que ainda hoje, possivelmente, não se conseguiram libertar das marcas que lhe ficaram.

Quero felicitá-lo pela coragem de passar ao papel para a história futura, num português profundo de fácil leitura e compreensão, a verdadeira história da odisseia que a CCAÇ 2317 e tantas outras que com ela partilharam mais directa ou indirectamente a aventura, onde eu ouso incluir-me também, perdoem-me a imodéstia (2).

Recordações

O meu espírito vagueou teimosamente pelas picadas que vão de Buba a Gandembel, passando pela bolanha dos passarinhos, a terrível bolanha , ponto de encontro com o IN. Tão verdejante e linda que era, mas tão temida.

Mesmo ali ao lado estava Sare Tuto, (soube-o em 2005 quando lá voltei) base inimiga, de onde partiam os guerrilheiros que gostavam de nos dar as boas-vindas à sua maneira.

Seguia-se Nhala, pequena tabanca que nos servia de apoio e possibilitava uma pausa para descanso, outras tabancas perdidas no mapa, abandonadas e ou destruídas como Samba Sábali e Uane, até se chegar a Mampatá Forreá.

Para tentar enganar o IN, por vezes desviávamos caminho por Sinchâ Cherno e Bolola, voltando de novo este local magnifico (Mampatá), com uma população maravilhosa e acolhedora onde passei os seis melhores meses da minha história de guerra, no centro da guerra.

Quer de um caminho (picada) quer do outro, vêm-me à memória, tristes recordações de emboscadas, minas e mortes, sobretudo as mortes de um lado e do outro. Afloram-me dois momentos terríveis:

O camarada da Companhia dos Lenços Azuis que vi morrer, porque teve o azar de estar na 5ª viatura da coluna, quando esta pisou uma [mina] A/C. Estava a comunicar via rádio (era a viatura do rádio e ele o rádiotelegrafista) para Buba a informar que tínhamos passado a bolanha antes de Sinchã Cherno, onde se teve de montar uma ponte, que nos acompanhava sempre, para, como em Changue Laia, ultrapassarmos um rio, que em época de chuvas nos impedia o caminho. Até aquele momento não tinha havido azar, a não ser um ataque de abelhas. Foi aquele o primeiro terrível momento que nos levou uma vida jovem, que eu e os companheiros de jornada não conseguimos salvar por falta de assistência hospitalar. Teve uma hemorragia interna que lhe roubou a vida em poucas horas. Outros momentos de azar se seguiram nesta coluna, que fez cerca de trinta quilómetros em 36 horas, com minas e emboscadas, mortos e feridos, onde eu definitivamente me zanguei com a D.G3ertrudes.

O amargo olhar para o milícia que ao regressar de uma outra coluna, pela mesma picada, trazia como troféu, as orelhas dos inimigos que abatera num combate feroz, em que nos valeu a coragem e determinação do seu grupo, ao avançar de peito erguido na direcção do IN, que flagelava a coluna violentamente.

De Mampatá até Aldeia Formosa, respirava-se fundo. O medo era esbatido pela segurança de duas pequenas tabancas, Afia e Bakar Dado, perdidas na estrada que lhe davam vida e espantavam o Inimigo, até ao dia em que esta última é visitada, queimada e destruída pelo IN.

Um ou dois dias depois partia-se de novo a caminho de Gandembel. Os mesmos homens, as mesmas viaturas que nem chegavam a descarregar. Até Mampatá, apesar de tudo, era caminho de esperança. Depois seguia-se por Chamarra, Changue Laia, Ponte Balana. Por fim, Gandembel das morteiradas que normalmente vinham logo de seguida, ou pelo menos uns tiritos de costureirinha, como forma de o IN nos lembrar que estavam por perto, mesmo quando estrategicamente não nos esperava pelo caminho ou não nos montava as terríveis armadilhas.

Eu estive lá. Eu vivi de perto. Eu sofri muitos destes momentos dramáticos. Eu tropecei nos buracos dos fornilhos onde caíram os camaradas. Onde iam caindo uns, logo outros se levantavam de dentes cerrados a lutar pela vida que lhes restava. O espanto da minha gente ao ver os buracos onde cabiam GMCs.

Ao chegar a Gandembel pela primeira vez, avistei um colega da escola primária e grande amigo – o Mário Pinto. Corri para ele pela Parada fora. Estranhei gestos e gritos de camaradas que não conhecia:
- Sai daí, encosta-te a um abrigo!

A justificação veio pouco depois. Ninguém atravessava a Parada em linha recta, mas sim a coberto da protecção dos abrigos colocados estrategicamente. O IN tinha por hábito fazer tiro ao alvo, algures do lado de lá da fronteira, empoleirado em árvores ou então enviava de vez em quando umas morteiradas, como aconteceu momentos depois.

Martela-me a memória com a mensagem arrepiante de rádio, depois de largos momentos angustiantes para mim, ao ouvir em Mampatá o fogo cerrado, indicativo de que uma das colunas tinha caído numa emboscada. Não sabia se era a coluna oriunda de Aldeia Formosa se a de Gandembel que estava a beber pela medida grande .
Não me tocara a má sorte de acompanhar esta coluna. Acompanhei-a à distância.

De Mampatá ouvi, via rádio, a mensagem desesperante, a qual foi como que uma ordem de retirada para a minha Companhia, que avançava com a coluna de mantimentos.
-Retirem ! Retirem! Voltem para trás, senão ficamos cá todos. Nós vamos retirar. Temos 4 mortos e manga de feridos. Retirem!(*)

A retirada foi a sorte dos meus camaradas, estavam lá semeadas 68 minas A/P que foram levantadas quinze dias depois.

Diz o Idálio que estranhamente houve um hiato nas colunas, começando o abastecimento a fazer- se por via aérea.Tal aconteceu de facto, mas houve razões concretas que ele naturalmente desconhece.

Como é sabido, o Spínola tinha poderes para nomear os comandantes dos Sub-Sectores, cabendo a Lisboa nomear os comandantes de Sector. Buba era um Sector, Aldeia Formosa um Sub-Sector, comandado pelo seu homem de confiança, Major Azeredo Leme.


Por que acabaram as colunas no tempo das chuvas

Dá-se uma coluna de Aldeia para Buba, em plena época das chuvas, com a estrada intragável. O comandante da coluna faz saber ao Comandante do Sector de Buba que não havia condições para a coluna de regresso se fazer, face ao estado do terreno.
Perante a ordem de seguir em frente, enviou um rádio ao Major Azeredo Leme, contando-lhe a realidade e a decisão superior que teria de cumprir. Este comunicou para o homem grande. O resultado foi aparecer em Buba uma ordem para a coluna se fazer, devendo o Comandante de Sector seguir na mesma para constatar a realidade do terreno.

Ao fim da tarde, lá chegou a coluna de regresso a Mampatá, onde eu estava. Com ela vinha um sujeito gorducho e cansado, era o Coronel Comandante, cuja primeira atitude, ao chegar Aldeia Formosa, foi decretar que até ao fim das chuvas não haveria mais colunas.

Quantas vidas se pouparam ? Não sei. Sei sim que a região acalmou um pouco e não foram só os Páras que contribuíram, sem lhe querer tirar o mérito, pois foram na realidade, com a sua acção, um factor dissuasivo e um travão à acção do inimigo.

Creio que os camaradas que viveram esta terrível odisseia, os que lá deixaram a vida e todos os outros, mesmo os que regressaram incólumes, merecem bem que seja colocado em Gandembel um ramo de flores em sua memória e na memória de todos os que de um lado ou do outro sofreram por Gandembel.

Em Fevereiro do próximo ano conto voltar lá, agora em paz, à procura da minha paz interior. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel que reflicta a vida e a esperança de um punhado de jovens que, só e apenas, sonhavam em regressar a casa sãos e salvos, e a vida e esperança de um povo que lutava pela liberdade e felicidade a que tinham direito, mas que passados tantos anos, ainda se encontram tão longe de serem alcançadas.

José Teixeira

(*) Afinal foram 5 mortos. Um foi localizado quinze dias depois, por um camarada meu na célebre coluna apoiada pelos Páras, onde levantámos 68 minas A/P.

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Notas de CV:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

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