Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
1. O nosso camarada A. Marques Lopes, sempre atento ao que se passa no mundo e arredores, mandou-nos há dias a seguinte notícia:
Código Penal inclui mutilação genital feminina > Associações imigrantes, partidos políticos e vítimas aplaudem alteração
14 de Setembro de 2007/ Marta Clemente, da Agência Lusa
Associações de imigrantes guineenses, partidos políticos e vítimas congratulam-se com a inclusão no novo Código Penal da Mutilação Genital Feminina [MGF], uma prática para a qual os médicos em Portugal ainda estão pouco sensibilizados.
«Concordo com a inclusão da MGF no código penal. Até na Guiné-Bissau devia ser», disse o dirigente da Associação Guineense de Solidariedade Social, Fernando Ká, à agência Lusa (2).
A mutilação genital feminina é uma antiga tradição em 28 países africanos, entre os quais a Guiné-Bissau, entre a população muçulmana, e consiste na remoção total ou parcial dos órgãos genitais femininos.
Em declarações à Lusa, o dirigente associativo defendeu que «nem tudo o que é cultural é bom» e lembrou que a MGF é feita em «condições de higiene deploráveis, para além da violência em si porque é feito a sangue frio».
Fernando Ká disse ainda não ter conhecimento de que esta prática seja realizada em Portugal.
Para acabar com a discussão que o Código Penal criava em torno desta questão, por não ser claro, o novo, que entra em vigor no sábado, já prevê a penalização para crimes que tirem ou afectem o prazer sexual.
Uma alteração que foi recebida com agrado pelo CDS-PP e pelo Bloco de Esquerda (BE), que há muito a reclamavam.
Para a deputada do BE, Helena Pinto, a inclusão da MGF no actual Código Penal era «uma questão de interpretação». «Era preciso interpretar nesse sentido. O novo (Código Penal) é mais claro e este tipo de crime não fica sujeito a interpretação», disse a deputada, acrescentando ser «positivo que exista esta clarificação».
Para o deputado Nuno Magalhães, do CDS-PP, «foi dado um avanço» na lei, na medida em que a MGF «fica juridicamente enquadrada», mas ainda não é esta a resposta que o partido pretendia. «Não é a nossa solução, mas registamos que foi um avanço», disse o deputado, acrescentando que o CDS-PP defende a criação de um crime autónomo.
A actual lei não é clara quanto à penalização da MGF, uma vez que apenas refere como crime quem privar outra pessoa de «importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente» ou quem tirar ou afectar, «de maneira grave, (...) a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem».
O novo Código Penal alterou este último artigo, e acrescentou quem «tirar ou afectar, de maneira grave, (...) a capacidade de fruição sexual».
2. Comentário de L.G., editor:
Já aqui temos falado, embora pouco, deste problema no nosso blogue, a propósito da nossa (mal) conhecida festa do fanado (3). Retomo o que escrevi num dos primeiros posts do nosso blogue, e espero que ilustres juristas da nossa Tabanca Grande, como o Jorge Cabral, possam e queiram também participar neste debate (participámos os dois, em Maio do ano passado, numa conferência sobre este tópico; confesso, entretanto, que ainda não tive tempo para ler o novo Código Penal que, de resto, não é meu livro de cabeceira):
(i) Em tempos comentei, em 5 de Agosto de 2002, nos Fóruns do Público > Cidadania - Mutilações sexuais: Salvem as meninas da Guiné (um tema de discussão que hoje só está disponível em arquivo), o seguinte post publicado originalmente por Barbarian Girl, em 16 de Maio de 2002:
Estou indignada com o que acabo de ler, numa reportagem do Público, assinada pela Sofia Branco. Não imaginava, na minha jovem e santa ignorância, que em pleno Século XXI ainda se praticassem mutilações sexuais como a excisão do clitóris nas meninas como parte dos rituais de iniciação à vida adulta...
O mais espantoso é que isto se passa num país irmão(!), onde se fala (?) português, que foi um colónia portuguesa(!), por onde passaram muitos portugueses. Mais: se calhar estas práticas continuam a fazer-se em Portugal, no seio das famílias guineenses islamizadas que por cá se vão instalando, com a complacência ou a conivência de muita gente, a começar pelas autoridades de saúde.
Nunca vi ninguém denunciar esta coisa horrorosa. Vocês sabiam disto, vocês tinham conhecimento disto ? Tenho vergonha da minha ignorância e do meu silêncio involuntariamente cúmplice. Por isso vejo-me na obrigação de publicar aqui, com a devida vénia, o artigo da Sofia Branco, apesar da sua extensão. O que podemos fazer para ajudar a salvar as meninas da Guiné ? Refiro-me a nós, mulheres portuguesas, a começar pelas universitárias. Bárbara.
(ii) Luís Graça:
A Sofia Branco [, jornalista do Público, e destacada figura da luta contra a MGF,] volta a este tema, com um notável e bem documentado dossiê. Parabéns ao Público e à Sofia por este excelente trabalho de jornalismo de investigação. Parabéns pela sua sensibilidade, empenhamento e rigor no tratamento deste tema marginal.
Espero que a Bárbara tenha lido a reportagem ou tome conhecimento do dossiê, disponível on line, nos dossiês do Público.pt: Sofia Branco (2002)- O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris. Público. 4 de Agosto de 2002)
Não é difícil a qualquer um de nós, homens e mulheres formatados pela cultura do Ocidente, ficarmos hoje siderados e indignados pelo conhecimento da prática da Mutilação Genital Feminina (abreviadamente, MGF). Aconteceu-me comigo, quando há trinta e tal anos a descobri na Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau), nomeadamente entre os fulas (a principal tribo islamizada do território e um dos mais importantes aliados dos tugas).
Só estranho é que a indignação, de que se faz eco o director do Público, no seu editorial de ontem, chegue tão tarde a Portugal. Durante décadas e décadas, todos nós, portugueses (autoridades coloniais, tropas, oficiais do quadro, milicianos, soldados, marinheiros, capelães militares, missionários, comerciantes, antropólogos, médicos, professores, jornalistas...), convivemos com esta realidade. Uns melhor, outros pior. A festa do fanado era difícil de passar despercebida a qualquer branco que conhecesse minimamente o chão fula e o seu povo, ou que convivesse com a ppoluação das tabancas, como era o meu caso.
Na Guiné, entre 1969 e 1971, na Zona leste, nunca vi os tugas (a começar por Spínola e a sua brilhante entourage de especialistas em acção psicossocial, com alguma formação portanto em ciências da saúde e em ciências sociais e humanas) minimamente preocupados com aquilo que hoje é uma evidente violação dos direitos humanos, além de um problema de saúde pública. Dir-me-ão que o Governador e Comandante-Chefe tinha mais que fazer do que usar a sua reconhecida autoridade e prestígio junto dos fulas para influenciar algumas das suas práticas mais aberrantes... Não creio, por outro lado, que no staff do brihgadeiro e, mais tarde, general Spínola houvesse suficiente sensibilidade sócio-antropológica para o problema da MGF que todos os anos matava e mutilava crianças guineenses.
Na época em que lá estive (entre Maio de 1969 e Março de 1971) também não os vi sequer preocupados com a simples promoção do estatuto da mulher guineense. A psico, a famosa acção psicológica, tinha muito pouco de promoção social... Do Minho a Timor, a festa do fanado (e a MGF praticada em pleno mato pelas fanatecas ou excisadoras, fora dos olhares profanos, dessacralizadores, dos homens) fazia parte do folclore ultramarino e era aceite pelos nossos antropólogos, formados pelo ISCPU - Instituto Superior de Ciências Políticas e Ultramarinas, em nome do relativismo cultural. Falava-se, de resto, eufemisticamente em circuncisão, e nomeadamente masculina (enquanto a feminina era praticamente ignorada ou escamoteada)!
E, no entanto, durante a guerra colonial o povo fula foi praticamente todo ele militarizado, mobilizado e martirizado em nome da defesa da pátria comum (que era obviamente uma ficção do regime político que tanto oprimia os tugas da metrópole como os nharros das colónias). A grande maioria dos soldados da minha Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12) eram de origem fula.
Os fulas também foram vítimas da guerra (todos eles, homens, mulheres e crianças!), já que as suas aldeias, também elas, estavam organizadas em autodefesa e, por isso, eram potenciais alvos dos ataques da guerrilha do PAIGC. Os fulas deram o principal contingente da tão sonhada força africana com que Spínola queria ganhar a guerra (ou pelo menos ganhar tempo...).
Hoje é fácil cairmos na tentação de diabolizar os fulas (o principal esteio da comunidade muçulmana guineense, a par dos seus rivais históricos, os mandingas) não só pelo erro histórico da aliança dos seus chefes tribais com o colonialismo dos tugas (e que nós corrompíamos, de uma maneira ou de outra) como pelo seu modo cruel de dominação sexual, social e económica das mulheres.
Dito isto, que fique claro, aos olhos dos meus amigos guineenses, fulas, futa-fulas, mandingas ou outros, que a MGF no meu país é um crime. E como tal deve ser prevenida e reprimida. Parafraseando o editorial do Público, não há, não pode haver, respeito pela identidade multicultural dos povos que incentive, tolere, ignore ou escamoteie as violações dos direitos universais.
Qual é a situação actual na Guiné ? Embora a excisão (nas raparigas) e a circuncisão (nos rapazes) continue a ser uma prática corrente, tem-se procurado formas alternativas à MGF, valorizando os aspectos culturais e simbólicos da festa do fanado e não discriminando as fanatecas (para quem a festa do fanado é o seu sustento e a sua razão de ser).
Segundo fontes da OMS, citadas pela União Parlamentar Internacional (UPI), estimava-se que, nos finais da década de 1990, na Guiné-Bissau, a taxa de prevalência da MGF fosse da ordme dos 50% e afectando 100% das mulheres islamizadas. No caso das muheres das etnias fulas e mandingas, estima-se que 70 80% sejam excisadas. Nas zonas urbanas (Bissau e pouco mais...)calcula-se que a MGF atinja 20 a 30% das raparigas e das mulheres. No entanto, não há estatísticas oficiais, ou outras, de confiança, sobre a frequência e a gravidade desta prática na pátria de Amílcar Cabral.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. Art. 144º do Código Penal > Ofensa à integridade física grave > "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a [...] b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação, de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; [...] é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos". O que é novo nos crimes de ofensa à integridade física grave é que passaram a comportar, explicitamente, uma nova circunstância - a supressão ou afectação da capacidade de fruição sexual, que engloba práticas como a MGF.
(2) Na Guiné-Bissau, há legislação que impede a prática da MGF, através do artigo 115º do Código Penal (ofensas corporais graves). As pessoas que a praticam (por exemplo, as fanatecas) podem ser condenadas até cinco anos de prisão efectiva... O problema da Guiné-Bissau (e de outros países, onde a prática da MGF é tolerada ou autorizada) não é falta de legislação... Recentemente a a Eritreia proibiu a MGF, com o novo Código Penal que entrou em vigor em 31 de Março de 2007. Esta prática (a excisão feminina) atinge 89 por cento das mulheres, islamizadas e cristianizadas, deste país do corno de África. Com a Eritreia passam a ser 16 os países que já criminalizam a MFG, num total de 28 onde essa prática é milenar e ainda tem larga aceitação social...
(3) Vd. posts de:
10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)
15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)
3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado
4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
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