quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > 1969 > À direita ao fundo, as tais vivendas...de que se fala nesta estória duplamente cabraliana.

Foto : © Jorge Cabral (2007). Direitos reservados

1. Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, autor da série Estórias Cabralianas (1).

Querido Amigo:

Um pouco melhor e a tentar deixar de fumar, mais uma estória e aquele Abraço.

Jorge


Guerra Escatológica: O Turra Boris Vian
por Jorge Cabral

Fá Mandinga fora sede de Batalhão e de Companhia, possuindo muitas e boas instalações.

Chegados em Julho de 1969, optámos por ocupar apenas dois edifícios. Quanto aos restantes, convenci o Pelotão, que o respectivo acesso estava minado, razão porque só eu lá poderia entrar. É que vislumbrara duas belas e isoladas vivendas, as quais intimamente destinara a uso próprio. Uma serviria para encontros amorosos. Na outra, utilizaria a casa de banho, lendo e meditanto... E assim se passou.

Coloquei uma cama na primeira e da segunda fui utilizando a sanita, o bidé, o lava-loiças, etc, etc e demasiado preguiçoso para carregar com os necessários garrafões de água, tornei-a inabitável.

Bajudas, mulheres grandes e algumas profissionais passaram por aquela cama e houve uma que marcou a sua presença, pois lhe aconteceu o que sucede às mulheres todos os meses, deixando o colchão manchado.

Em meados de Dezembro [de 1969] apresentou-se um Sargento de Engenharia. Periquito, chegara à Guiné há oito dias, e vinha preparar o Quartel, para receber os Comandos Africanos (2).

Deixei-o ir sozinho inspeccionar as vivendas, garantindo-lhe que desde Julho, ninguém lá entrara.

Ainda nem um quarto de hora passara, surge-me a correr o nosso Sargento, com um livro na mão e aos gritos:
- Meu Alferes! Meu Alferes! Os turras estiveram lá! Fezes por todo o lado, um colchão ensanguentado, e este livro! (L’Automne à Pekin, de Boris Vian, que eu andava a ler)(2).
- Algum turra ferido com diarreia! - tentei brincar.
- E o livro, o livro? O meu Alferes sabe que os turras treinam na China. E este foi no Outono e em Pequim.
- Claro - concordei.- Vian é um apelido Mandinga!

Uma semana depois recebi ordem para reforçar a segurança, dobrando os postos de sentinela. Quanto ao nosso Sargento guardou como ronco de guerra o livro capturado.

Que será feito dele? Terá lido o romance do turra Boris Vian?

Jorge Cabral


2. Comentário: Jorge, eis uma bela tripla notícia: (i) estás melhor; (ii) estás a tentar deixar de fumar; e (iii) presenteias-nos com mais uma das tuas estórias cabralianas... Desconcertante, o teu humor. Mas vou-te lembrar que o sorja era capaz de ter razão: esse tal Boris Vian até tinha escrito uma canção a fazer a apologia da deserção, traduzida para português e cantada pelo Zé Mário Branco, o tal da Cantiga é uma Arma!...

_______

Nota de L.G..

(1) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1900: Estórias cabralianas (25): Dois amores de guerra e uma declaração: Não sou pai dos 'piquinos Alferos Cabral' (Jorge Cabral)

Capa do disco com a famosa canção Le Déserteur. Fonte: Amazon.fr (com a devida vénia...).


(2) O Outono em Pequim (1947). Romance do francês Boris Vian (1920-1959). Engenheiro, poeta, romancista, homem de teatro, músico de jazz, cantor, amigo de Sarte e de Beauvoir, boémio, existencialista, provocador...

Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim.
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte,
É porque isso me diverte,
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba...


É também autor da célebre canção Le Déserteur [O Desertor] (1954), traduzida pelo José Mário Branco para português (e adaptada ao contexto da época que era a da contestação da guerra colonial):

Ao senhor presidente
e chefe da nação
escrevo a presente
pra sua informação

recebi um postal
um papel militar
com ordem pra marchar
prà guerra colonial

diga aos seus generais
que eu não faço essa guerra
porque eu não vim à Terra
pra matar meus iguais

e aqui digo ao senhor
queira o senhor ou não
tomei a decisão
de ser um desertor

desde que me conheço
já vi meu pai morrer
vi meus irmãos sofrer
vi meus filhos sem berço

minha mãe sofreu tanto
que me deixou sozinho
morreu devagarinho
nas dobras do seu pranto

já estive na prisão
sem razão me prenderam
sem razão me bateram
como se fosse um cão

amanhã de madrugada
pego numa sacola
e na minha viola
e meto-me à estrada

irei sem descansar
pela terra lusitana
do Minho ao Guadiana
toda a gente avisar

à guerra dizei 'não!'
a gente negra sofre
e como nós é pobre
somos todos irmãos

e se quer continuar
a matar essa gente
vá o senhor presidente
tomar o meu lugar

se me mandar buscar
previna a sua guarda
que eu tenho uma espingarda
e que eu sei atirar

(3) Vd. posts de:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

2 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

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