quarta-feira, 1 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20798: Historiografia da presença portuguesa em África (203): “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia”, importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É assim mesmo, o caminho faz-se caminhando, digo-o sem falsa modéstia, é muitíssimo agradável ir conhecendo autores que nos revelam com precisão a Guiné num dado período. A Guiné de José Joaquim Lopes de Lima é um território quase ignorado por efeito dos grandes conflitos liberais que prosseguem depois da derrota do miguelismo.
Lopes de Lima fazia parte do Conselho da Rainha D. Maria, era Capitão de Fragata da Real Armada, Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada.
A Marinha deverá orgulhar-se deste trabalho em seis volumes e, quanto à Guiné vemos confirmadas as consequências do desleixo e incúria: o recuo da presença portuguesa, a pressão dos franceses e atenda-se ao que o conselheiro escreve sobre a região de Bissau, é mesmo pungente.

Um abraço do
Mário


O importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844

Mário Beja Santos

Lopes de Lima, autor de “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia” em três volumes reserva no seu primeiro livro largas referências ao Arquipélago de Cabo Verde e à Guiné Portuguesa. É sobre o “extremo ocidental do Sudão” que nos vamos pronunciar. Começa por fazer a narrativa do descobrimento e dos primeiros tempos de comércio, diz em dado passo: “Desde 1462 que o resgate em todos estes rios desde o Senegal até o Mitombo em Serra Leoa ficou exclusivo de facto (e de direito desde 1466) dos moradores da Ilha de Santiago. Aonde esse nosso trato a princípio engrossou muito foi no Rio Senegal, e aí prometia já grande proveito no ano de 1488, quando o Príncipe Jalofo Bemoim veio a Portugal pedir ajuda a D. João II, o qual o fez baptizar em Setúbal com o nome de D. João e mandou com ele uma armada de 20 caravelas comandada por Pêro Vaz da Cunha, para o meter de posse desse reino usurpado”. Levava-se igualmente materiais para fazer uma igreja, as coisas correram mal, o comandante matou o príncipe, não se fica a saber bem o fundamento da execução, D. João II ficou furioso com este desfecho infeliz.

Faz menção dos portos de Recife, Portudal e Joal, associados ao comércio praticado por judeus portugueses, investigadores como Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta fizeram um estudo deste comércio e da realidade dos judeus portugueses na Senegâmbia. Mais adiante refere: “No período filipino perdeu-se tudo quanto estava na posse portuguesa do Cabo de Santa Maria, a Norte, e do Cabo da Verga, a Sul. Eu passo agora a tratar do que ainda é nosso”. E faz uma descrição pormenorizada de Cacheu, do tráfico de escravos, da Companhia do Grão Pará e Maranhão (1755) que construiu a muito custo a praça de Bissau. Falando do presídio de Farim, tece a seguinte observação: “Todos os negociantes de Cacheu têm em Farim os seus feitores e de lá recebem a maior parte da courama e marfim que exportam, bem como muita cera e algum ouro, a troco de armas, pólvora, tabaco, missanga, prata e cobre para manilhas”. Refere igualmente Zinguinchor: “É uma aldeia de 300 habitantes livres e uns 400 escravos, cercada de tabanca com três baluartes de adobes, nas quais se encontram oito peças desmontadas”.

Estamos em pleno século XIX, a presença portuguesa sofre cada vez maior concorrência, os franceses instalam-se no Casamansa: “No ano de 1828, os franceses de Goreia, sem atenção à antiquíssima posse da Coroa de Portugal no comércio exclusivo daquele rio Casamansa, apossaram-se do Ilhéu dos Mosquitos e ali fundaram um miserável estabelecimento; e não contentes com isso, fizeram em 1836 uma nova feitoria em Selius (por nós denominada Selho) acima de Zinguinchor". Repertoria vários presídios, logo o de Bolor, em território Felupe, extremo de uma extensa praia que se estende desde a Aldeia de Jafunco, a norte fica a Aldeia de Bolor. E continua a sua narrativa falando de praças e feitorias no rio de Guinala, nos presídios de Geba e de Fá, dá pormenores sobre Bolama e a Ilha das Galinhas. Onde a sua descrição é minuciosa tem a ver com Bissau, é importante ouvi-lo:
“A Fortaleza dista uns cem passos da borda da Praia, tendo em frente da porta principal dois grandes poilões que servem de marca aos navios que vão dar fundo. É neste espaço, o qual se estende um pouco para oeste além dos muros, mas ao alcance de artilharia, que umas duzentas choupanas, entre as quais surgem cinco ou seis cobertas de telhas, constituem a chamada povoação portuguesa, aonde residem uns poucos de negociantes, comissários das casas inglesas da Gâmbia e franceses de Goreia; e tudo mais são cristãos negros, Grumetes da praça: esta povoação nem ao menos é, como as outras em Guiné, cercada de uma estacada: o gentio de todas as partes entra nela armado a toda a hora do dia e da noite, introduz-se sem cerimónia pelas casas dos moradores a pedir aguardente ou o que lhe dá na vontade e praticam sem receio toda a casta de tropelias: os mesmos Grumetes fazem aos nossos contínuas perrarias, e animados pela impunidade chegam a rebelar-se e tomar armas contra a praça”.

Descreve primorosamente o Ilhéu do Rei e depois volta à Ilha de Bissau: “Meia légua ao oeste do porto de Bissau fica na mesma ilha a aldeia dos Papéis de Bandim, estação permanente de contrabandos que muito danam nos rendimentos da alfândega de Bissau, porque os navios estrangeiros em desprezo da nossa bandeira vão à vista dela traficar naquele porto directamente com o gentio”. Dá todas as coordenadas da ilha de Bissau, comprimento e largura, que está dividida em seis distritos com régulos diferentes, depois interioriza-se a sua viagem, fala no Impernal, no reino de Antula, entra-se na boca do rio Geba onde estão Balantas e Beafadas, menciona o macaréu, dizendo que é perigoso para as embarcações e cita André Alvares de Almada: “Esta navegação é perigosa por causa da água do macaréu que é encher este rio lá em cima com três mares somente. Estando a maré vazia, dando três mares fica praia-mar de todo; e antes de virem estas marés se ouve roncar um grande espaço, e mete medo às pessoas que nunca viram isto. E correm as embarcações grande risco, mas já os pilotos delas sabem as conjunções, e as tomam de maneira que não perigam. Algumas caravelas nossas de até 60 moios, que algumas vezes lá vão, no passar, quando dá a água do macaréu usam desta maneira. Têm algumas amarras e estão prestes com elas e o navio amarrado. Tanto que dão aqueles mares que sobre ele vão aleando muito depressa sobre ele as amarras, e desta maneira passam sem perigo, porque se estivessem com a amarra abitada não deixariam de se sobrarem. São acometidas algumas vezes as embarcações pequenas por cavalos-marinhos".

São descrições primorosas, e para não estafar mais o leitor refira-se o que ele nos diz do presídio de Geba: “Cem milhas distante de Bissau, Geba é aldeia portuguesa de cristãos pretos, poucos mulatos, e cinco ou seis brancos: não tem estacada nem fortificação alguma, e ali vivem os cristãos de lá e os que vão de Bissau em tão boa paz com os Mandingas muçulmanos e mesmo com os vizinhos Beafadas, que um pequeno destacamento é tão inútil como inconveniente”. E sentencia: “É mister que o Governo saiba de uma vez que estes destacamentos de 7, 4 ou 3 soldados, espalhados pelos presídios da Guiné, ordinariamente até vão desarmados ou meio armados: são estes soldados escolhidos pelos governadores e oficiais mais influentes das praças para irem naqueles sertões mercadejar para eles, no que unicamente se empregam, enquanto o Cofre da Província lhes paga para o bom serviço militar das praças, aonde todos reunidos infundiriam mais respeito. Por inútil tenho também o haver ali um comandante militar, que nada comanda: melhor seria a terra governada por um capitão-mor. Geba é um grande mercado, aonde concorre muita courama, muito marfim, bastante cera, algum ouro e todos os mais géneros deste país em grande abundância, os quais se resgatam a troco de sal, cola e mercadorias da Europa: o grande comércio de Bissau se reduziria a bem pouco se lhe faltasse Geba, e bem assim o do Cacheu faltando-lhe Farim e Zinguinchor. Não me canso de repetir que uma Companhia em Guiné a quem se concedesse como exclusivo o comércio do interior dos rios tiraria avultadíssimos lucros”.

Não hesito em considerar esta obra de Lopes de Lima como de muito valor, tal como as memórias de Honório Pereira Barreto, o relato de Travassos Valdez, são documentos fundamentais para conhecer o estado da Guiné no século XIX, no turbilhão do liberalismo.

Há muito que procurava uma imagem impressiva do dendém, cultura que tanto peso tem na Guiné. Nestes acasos que são as descobertas que faço na Feira da Ladra encontrei este postal angolano que, sem desprimor, me fez voltar rapidamente ao Mercado de Bambadinca e ao seu porto de onde esta preciosa matéria-prima seguia regularmente nas embarcações civis para Bissau. Aqui está em bruto o ingrediente com que se fabrica o óleo de palma.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20704: Historiografia da presença portuguesa em África (202): "A Guiné Através da História", pelo Coronel Leite de Magalhães; Cadernos Coloniais, Editorial Cosmos (2) (Mário Beja Santos)

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