quarta-feira, 8 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20830: Historiografia da presença portuguesa em África (204): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Quem estiver interessado em adquirir esta raridade, vai ao 4.º andar da Sociedade de Geografia de Lisboa e por 10 euros entregam-lhe a monografia aqui referida. Está bem marcada pelo espírito da época: as curiosidades raciais, a natureza da religião, o que se produz e o que se podia produzir.
Trata-se de uma exposição, nunca se perca de vista que há comentários que remetem para escaparates de objetos expostos, dá-se a lista dos governadores da colónia da Guiné desde o século XVI ao século XX, a bibliografia apresentada tem as suas curiosidades, não se limita nem à História nem às missões, há aspetos particulares orientados para a agricultura, o comércio e a assistência e expunham-se cartas geográficas e plantas hidrográficas, também cartas corográficas e hidrográficas. Não encontrei fotografias desta semana das colónias, talvez seja uma questão de investigar os boletins da Sociedade de Geografia de Lisboa, não vou esquecer.

Um abraço do
Mário


Uma preciosidade: a Guiné na Semana das Colónias de 1939 (1)

Mário Beja Santos

A sorte favorece os audazes, diz-se e consta, e há casos em que é verdade. Andava eu a catar referências sobre a Guiné no início da II Guerra Mundial, insere-se num computador a data de 1939, refere-se a Guiné, e surge esta monografia-catálogo. Requisita-se imediatamente. Não traz grandes novidades mas comporta agradáveis surpresas. Logo a citação camoniana completamente esquecida, injustiça quase imperdoável para com o nosso bardo topo de gama, injustiça para a “mui grande Mandinga”, recorde-se que Luís Vaz de Camões tinha uma profunda formação humanística e devia saber da existência do Império Mandinga, bem como dos Jalofos e da Gâmbia. Depois, uma monografia-catálogo dispara em várias direções: atrai o visitante que visita a exposição da colónia da Guiné para alimentos, utensílios, produtos medicinais, formas de habitação, manifestações artísticas e religiosas, entre outros elementos.


Guardo uma frase que tem halo poético, a Guiné encontrar-se no extremo ocidental do Sudão. Depois fala-se da superfície, dos rios, da constituição geológica, do clima, da flora, da fauna, avança-se para um conjunto de considerações sobre a Pré-História (são elementos em grande parte cientificamente ultrapassados por outras evidências), é referido o reino do Gana, o Benim, o Império Mali (Camões seguramente que ouviu referências a este Império), a etimologia da palavra Guiné (continua a ser discutível), seguem alguns elementos sobre a história da presença portuguesa e temos depois dados populacionais e étnicos, posicionamento destes povos dentro da colónia.


Recorde-se ao leitor que estamos numa época (1939) de acesas discussões raciais, os antropólogos e etnólogos resolveram imiscuir-se e dar palpites sobre as características morfológicas e biológicas, vale a pena uma citação sobre o linguajar próprio deste tempo:

“Dos Fulas da Guiné Portuguesa, os Fula-Forros revelam o sangue berbere; são de elevada estatura, magros, pele acobreada, cabelo lanuginoso, nariz fino e saliente, lábios pouco espessos e olhos amigdoliformes; os Fula-Pretos evidenciam maior percentagem de sangue negro, e por isso são mais pigmentados e de feições mais negroides, razão por que os restantes Fulas os consideram descentes dos seus antigos escravos, desprezando-os sistematicamente.
Os Futa-Fulas são camitas menos mestiçados, com menor dose de sangue negro, circunstância que os leva a suporem-se racialmente superiores aos Fulas-Forros.
Em geral, os Mandingas são de estatura elevada, dolicocefalia elevada, pele muito pigmentada, cabelo lanuginoso ou frisado; a grande maioria deles revela mestiçamento com etíopes ou berberes.
Os Felupes e os Baiotes são altos, fortes, dolicocéfalos, prognatas, platirríneos.
Extremamente pigmentados, os Papéis têm cabelo encarapinhado e pequeno desenvolvimento da pilosidade, dolicocéfalos, prognatas, platirríneos, revelam lábios espessos, pómulos salientes e estatura elevada.
Antropologicamente, os Manjacos assemelham-se aos Papéis. Os Banhuns têm pequeno desenvolvimento corporal e a sua pigmentação é menos intensa, ao invés dos Balantas que são muito pigmentados, possuem elevada estatura, dolicocefalia platirrinia, prognatismo e grande espessura labial. Somática e etnicamente os Beafadas parecem-se com os Fulas.
Os Bijagós têm elevada estatura, dolicocefalia platirrinia, prognatismo, lábios grossos e pele negra. Da morfobiologia dos pequenos agrupamentos da nossa colónia, nada se conhece ainda”.

Quem escreve a monografia avança com pequenas curiosidades, como se bisbilhotasse os carateres étnicos, fizesse um perfil de personalidades: os Balantas apresentados como alcoólicos e ladrões de vacas; os Fulas submetem-se sem problemas à autoridade portuguesa ou francesa:  
“Orgulhoso da sua genealogia, intrujão em questões político-familiares, intriguista e galopineiro político, o Fula é inatamente querelador; destituído do conceito de Pátria, motivos políticos ou questões de herança levam facilmente o Fula a emigrar da nossa colónia para território francês ou reciprocamente; os Felupes não se cruzam com outras etnias, ao contrário dos seus parentes Baiotes, embriagam-se amiúde com vinho de palma; os Papéis são aguerridos, enérgicos e decididos e têm repugnância pelos trabalhos agrícolas; os Manjacos têm grande tendência para as tarefas marítimas; os Beafadas são pouco trabalhadores, grandes amigos do descanso, fazem grandes libações de vinho de palma e aguardente; os Bijagós, conquanto considerados como os povos mais cultos da Guiné Portuguesa, são artistas. Os Grumetes dedicam-se às artes e ofícios e conquanto se vistam à europeia não se subtraíram ainda totalmente à influência ancestral e do meio ambiente, andam em completo estado de nudez, vivendo em regime poliândrico, o homem facilmente é desprezado pela mulher, são preguiçosos".

Seguem-se considerações sobre a língua. Veja-se o que escreve o autor:
“Na formação do crioulo entram fundamentalmente o português de quinhentos e os dialetos guineenses; acessoriamente, o crioulo contém vocábulos latinos, brasileiros, franceses e ingleses. O crioulo é um idioma dissonante, repleto de exclamações guturais e as suas palavras são, regra geral, dissilábicas. Dada a sua pobreza, o crioulo não pode traduzir, senão imperfeitamente, as ideias abstratas.
Todavia, há naturais de Cabo Verde que se exprimem elegantemente em crioulo e até alguns deles têm neste dialeto composições em prosa e em verso dignas de merecimento.
Os dialetos indígenas mais importantes são o fulbe, o mandê, idioma dos Jalofos, e dialeto dos Felupes, o idioma dos Nalus. O fulbe, sobre cuja origem os filólogos ainda não concordaram, tem grande riqueza de vocabulário e com 17 classes; mercê da sua doçura e musicalidade tem sido apelidado de italiano na África. Este idioma é falado pelos Fulas e por outros povos da África Ocidental.
O mandê é um dialeto falado por grande número de povos do Ocidente Africano (Mandingas, Sossos) competindo neste particular com o fulbe. Existem livros, como o Alcorão, escritos em Mandinga.
O idioma dos Jalofos difere muito do mandê. Há livros de orações em Jalope e francês. O dialeto dos Felupes é falado por estes e por outros djolas franceses.
As línguas veiculares da nossa colónia da Guiné além do português são o crioulo cabo-verdiano, o fulbe e o mandê".

Feita a exposição dita biogeográfica, o documento orienta-se agora para a alimentação, habitação, indumentária, artes e organização social e política.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20798: Historiografia da presença portuguesa em África (203): “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia”, importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844 (Mário Beja Santos)

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