1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:
Queridos amigos,
Trata-se, tanto quanto me é dado saber, de um trabalho universitário em que numa grande angular se pretende saber mais sobre o comportamento jornalístico face à guerra colonial, desde a primeira hora: quais os meios de comunicação em Portugal e colónias, como se fabricavam as notícias, como agia a censura, recolhem-se depoimentos a entrevistas e testemunhos e procura-se aquilatar até que ponto é possível investigar a história da guerra colonial sem entrar nos meandros deste jornalismo e como este, de certo modo, vai estar nos carris da descolonização.
Documento vasto, prismático, a exigir seccionamento na recensão, para benefício do leitor.
Um abraço do
Mário
O jornalismo português e a guerra colonial (1)
Beja Santos
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este jornalismo é de estudo indispensável na investigação histórica.
Carlos Matos Gomes |
“A guerra é o reino do medo, da sujidade, do excesso, da violência, do que não se pode dizer em voz alta nem expor nas montras. É um corte entre nós e os outros, que são eles, os que, por alguma razão, ou sem razão alguma, passam a execráveis inimigos. A guerra é um universo denominado pela irracionalidade e pela bestialidade”.
E daí questionar-se por onde passa a fronteira entre a verdade e a mentira, entre o que é lícito tornar público e no dado essencial das omissões. O prefaciador recorda-nos que o jornalista que vai à guerra tem a oportunidade para uma aventura pessoal, conhece os limites do que pode escrever, se descreve horrores é para destruir a imagem dos nacionalistas; o que fala na rádio e na televisão tem outra espécie de condicionalismos, o som e a imagem timbram melhor as cores da propaganda. Mas há um dado axiomático:
“Na guerra, o jornalismo expõe com ineludível crueza a servidão aos poderes político e económico, que permitem a sua existência. Esses poderes têm a sua verdade e é essa que vale, seja como pura propaganda, seja como análise mais ou menos científica”.
Daí o jornalismo ter obrigatoriamente de justificar ideologicamente e economicamente o regime:
“A guerra era imposta do exterior. Aliás, não havia uma guerra, mas atitudes subversivas e correspondentes ações de reposição da ordem. Não havia guerrilheiros, mas terroristas, bandoleiros a soldo de potências estrangeiras”.
Na imprensa metropolitana fugia-se até ao limite em dar notícias sobre a guerra colonial, aliás, os leitores metropolitanos estavam absorvidos por outras preocupações. Em dado passo da escalada da guerra, encontrou-se uma figura mediática que era conveniente ao regime e à mitologia do herói: Spínola, credor dos grandes meios de comunicação social internacionais e a grande curiosidade que suscita ao leitor aquele militar monóculo que aterra no centro das operações e que passou a ter o destemor de dizer nos gabinetes da política que não havia solução militar para aquele tipo de guerra.
Acresce que em Angola e Moçambique, teatros de guerra menos importantes para os repórteres internacionais, havia dois mundos, o dos colonos a fazer a sua vida pacífica e as povoações em guerra. Em Lourenço Marques, a guerra não existia, em contrapartida o hospital de Vila Cabral ia-se enchendo de feridos, aí os colonos pressentiam a gravidade dos acontecimentos. A guerra foi deliberadamente ocultada pelas autoridades aos moçambicanos. E o jornalismo feito especialmente em Angola e Moçambique não era levado a sério tanto pelos militares como pelos civis, da mesma maneira que as informações militares passavam deliberadamente ao lado dos implicados, como refere em entrevista o jornalista Rodrigues Vaz:
“Há que chamar à atenção para a qualidade inegável do serviço de informações do Exército, cujos relatórios da situação que se vivia em Angola era o espelho real do que acontecia. Só que o regime não devia olhar para eles com olhos de ver, teimando tapar o sol com uma peneira. O resultado foi o que se viu e o inconcebível é que continua a haver gente que acha que a guerra estava ganha pelo Exército português e que o 25 de Abril é que veio estragar tudo. É lamentável que ainda agora seja pouca a gente que se lembra de pensar como se poderia ganhar a paz, mas isto é que era importante”.
Atenda-se agora à evolução do jornalismo durante o Estado Novo, a obra identifica os matutinos e vespertinos, a imprensa desportiva, as revistas e outras publicações e até a tentativa de pôr em marcha projetos inovadores como o Diário Ilustrado, concluindo-se que:
“Os finais da década de 60 e inícios da década de 70 configuram em Portugal o culminar de um período intenso em mudança do jornalismo, reflexo das mudanças sociais em curso, em que se misturam fatores de natureza humana (recomposição das redações com o recrutamento de jovens universitários), tecnológicos (reconversão na maioria dos jornais) e políticos (as fraturas internas da última fase do salazarismo, agravadas pelas ambiguidades e hesitações do marcelismo)".
Segue-se um retrato dos meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas, levantamento que compreende a imprensa escrita, a rádio, a televisão e o cinema. Na sua sequência, faz-se menção ao início da guerra de Angola e à natureza das notícias que se publicaram.
“O discurso censurado dos diários de Lisboa foi conduzido no sentido de camuflar sistematicamente a origem maioritariamente angolana e de negar o âmago anticolonial dos assaltos às cadeias de Luanda”.
E mais adiante:
“As notícias sobre a nacionalidade dos assaltantes são bastantes difusas: estes ora são referidos simplesmente como estrangeiros, ora como uma amálgama de negros, de quem se diz não serem da África portuguesa, e de alguns brancos europeus, explicando tratar-se de portugueses da Metrópole que teriam pitando o rosto de negro para passarem despercebidos”.
Todos estes acontecimentos ocorridos em Luanda aparecem imputados ao turbilhão independentista que se vivia no Congo, a nação portuguesa é apresentada como vítima de uma conspiração à escala internacional.
“Os acontecimentos no Catanga e no Congo e também o drama franco-argelino e a crise no Laos são relatados com vista a singularizar a situação de Angola. Enquanto a condição naqueles locais é descrita como sendo de guerra, de miséria e de incerteza, o discurso da imprensa de Lisboa era encaminhado no sentido de dissimular uma imagem de harmonia e tranquilidade aplicada ao império português em África”.
A imprensa angolana também fez passar a ilusão da serenidade, houvera assaltos mas milhares de pessoas passaram o seu dia na praia e outras assistiram ao desfile preparatório do cortejo de Carnaval. Estamos perante um caso de ficção informacional. A censura impediu artigos que dessem outras vertentes da realidade. Cita-se por exemplo a série de crónicas assinadas por Domingos Mascarenhas intituladas “Angola 1961”. O jornalista entrevê na revolta em Luanda um acontecimento decisivo capaz de pôr em causa o destino da nação. Foi tudo proibido. Mas apesar da censura passaram mensagens nas entrelinhas. Convém agora ver como é que a guerra era tratada no telejornalismo e na televisão em geral.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)
2 comentários:
16 DE FEVEREIRO DE 2017
Guiné 61/74 - P17052: Tabanca Grande (426): Sílvia Torres, filha de ex-combatente, doutoranda em ciências da comunicação pela NOVA, autora do livro "O jornalismo português e a guerra colonial", nossa grã-tabanqueira nº 736
Mário, a Sílvia Torres é nossa grã-tabanqueiro desde há três anos!... Presumo que já tenha terminado o seu curso de doutoramento em Ciências da Comunicação, da Universidade NOVA de Lisboa. Aqui vai uma resenha biográfica:
(i) nnasceu em Mogofores, Anadia, em 1982;
(ii) licenciada em Jornalismo e Comunicação e mestre em Jornalismo;
(iii) começou por ser jornalista do Diário de Coimbra;
(iv) entre 2007 e 2014, como oficial da Força Aérea Portuguesa, trabalhou na Rádio Lajes (Terceira – Açores) e no Centro de Recrutamento da Força Aérea (Lisboa), cumprindo ainda uma missão de cooperação técnico-militar em Timor-Leste;
(v) atualmente é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade NOVA de Lisboa e bolseira de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT);
(vii) a sua pesquisa centra-se na cobertura jornalística da Guerra Colonial feita pela imprensa portuguesa de Angola, da Guiné Portuguesa e de Moçambique, entre 1961 e 1974;
(viii) o facto de ser filha de um ex-combatente justifica o interesse pessoal e académico pelo conflito.
O nome da nossa tabanqueira nº 736 devia ter sida incluinda em fevereiro de 2017, na coluna do lado esquerdo do nosso blogue, TABANCA GRANDE - LISTA ALFABÉTICA DOS 804 AMIGOS & CAMARADAS DA GUINÉ"
O que não aconteceu, na altura, por lapso. Corrigismo agora a situação, com o nosso pedido de desculpas. Temos então, à data de hoje, 805 membros da Tabanca Grande.
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