sábado, 15 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21255: 16 anos a blogar (15): A Mãe-de-água e as Fontelas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 14 de Agosto de 2020, para nos fala mais uma vez do povo de Trás-os-Montes, seus usos e costumes:


A MÃE-DE-ÁGUA E AS FONTELAS

Francisco Baptista

São sete homens, é meio-dia, de um qualquer dia de Julho, o calor aperta nas serranias transmontanas, abrem as sacas de linho ou estopa e retiram, o pão, o chouriço, o presunto, o toucinho, o frango assado, ovos cozidos ou omeletes, tiram dos bolsos das calças as navalhas de Palaçoulo, já gastas pelo uso, o almoço de cada um que varia entre todos estes produtos, vai começar, debaixo de sobreiros altos que ensombram a "fontela" da água que brota à superfície da terra, com que matarão a sede. Há também algum vinho numa "cabaça" que passará de mão em mão e de boca em boca, para revigorar as forças..

Cinco homens feitos, já todos chefes de família, são tiradores de cortiça, enrijecidos e queimados, pelo trabalho e pela exposição solar, com as mãos calejadas e negras pelo contacto frequente com o "verde" das tábuas de cortiça. O sexto homem, forte e atlético é o patrão, que orienta e ajuda na tiragem da cortiça sempre com a preocupação de que não se estraguem as árvores. O sétimo é um dos filhos dele que tanto poderá ter treze como vinte anos e tem por missão pintar nos sobreiros descortiçados o ano da tiragem e as iniciais do proprietário e transportar às costas a cortiça para as "rodeiras" onde possam ir os carros de vacas. Se tiver energia, curiosidade e habilidade para tal, poderá também subir aos sobreiros e colaborar na tiragem, o mais velho deles tinha. A cortiça para ter uma grossura razoável para ser vendida para as fábricas de Fiães e Lourosa, por lei, tem que ter pelo menos nove anos de crescimento, que qualquer pessoa pode ler nela, pois cada ano faz uma marca.

Nesse tempo, última metade do século passado, havia na aldeia cerca de quinze tiradores de cortiça, poucas aldeias de Trás-os-Montes, teriam tantos. Hoje por causa das alterações climáticas e das secas que tem provocado a morte de milhares de sobreiros, a produção de cortiça é muito menor, porém os tiradores de cortiça muitos filhos ou netos desses, continuam a ser no mesmo número.

A tiragem da cortiça é dos poucos trabalhos agrícolas que ainda não é mecanizável, tal como no passado e não o será no futuro penso eu. Trabalho humano, muito duro, mesmo para retirar as tábuas mais largas do tronco, que sai da terra, requer muita destreza e equilíbrio, quando se sobe aos canos. Usam uma machada própria, por ferramenta principal e uma panca, pau rijo e comprido, em cunha, a que alguns chamavam Vicente, (como se fosse mais um trabalhador) para ajudar. Trabalho de preferência, em grupo, por ser mais rentável e seguro. Antigamente, porque a cortiça era muita, a colheita da aldeia ocupava-lhes todo o tempo, agora que é menor, os novos corticeiros vão a aldeias próximas e percorrem ainda as Beiras e o Ribatejo enquanto o tempo o permite.

Brunhoso persiste em não ficar parado e em tentar sobreviver à desertificação. Há jovens empresários na aldeia que se esforçam tanto nesta como noutras áreas por criar trabalho e rendimento para eles e para os outros A cena do almoço, a que eles chamam merenda, (é a seco, a comida não é cozinhada ao lume) passa-se na Lagariça onde há a maior mancha de sobreiros de Brunhoso. O mais novo terá também por tarefa, transportar água da fontela sempre que os trabalhadores tenham sede.

Depois de alguns dias na Lagariça cenas semelhantes se repetirão na Hortelã, Fonte da Dona, Ferreiros, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Relva, Azinhal, Gaiteiro, Ribeira, Entre-Caminhos, Cova dos Lobos, Escaleiras.

Hortelã 

Lagariça

Bem perto, a um quilómetro, fica a Fonte da Dona, onde os homens almoçavam debaixo de um grande sobreiro. Tanto a água desta fonte como a da Lagariça embora fresca não era muito saborosa, talvez por causa das raízes dos sobreiros ou das folhas que caíam e que muitas vezes apodreciam lá dentro, pois a limpeza era sazonal, quando alguém aparecia.
Do outro lado no "avessedo" é a Hortelã, onde existe a mata mais densa de sobreiros, muitos quilómetros ao redor, lá não há fontes ou fontelas.

Fontela da Fonte da Dona 

Fontela da Lagariça (encoberta) 

Fontela de Juncais, com corcha de cortiça

Uma corcha, mais visivel

Descendo mais um quilómetro na direcção do Sabor existe o sobreiral dos Ferreiros com uma fontela num olival próximo onde havia também uma macieira com boas malapas (maçãs pequenas e saborosas) Quando não havia fontelas tinha que se transportar a água de longe em cabaças, cântaros ou garrafões.

Na Fonte do Junco e no Azinhal, no termo de Remondes, havia quatro sobreirais, os do Azinhal, encravados na grande área de sobreiros e oliveiras, propriedade da Aprígia uma ricaça de Mogadouro. No sobreiral de baixo, quase no limite, havia uma fonte onde a água, muito boa, manava com abundância e ia irrigar hortas e árvores de fruto dessa senhora.

As fontes ou fontelas estavam espalhadas por toda a zona camprestre para tirar a sede a tantos lavradores e trabalhadores da terra que além de grandes caminhadas, muitas vezes a pé, suportavam trabalhos cansativos e duros. Essas fontes normalmente eram pequenas nascentes de água que brotavam do solo e onde desde tempos antigos as pessoas cavavam uma pequena de poça, onde se pudesse beber, de bruços, com o auxílio de uma corcha de cortiça (no Alentejo chamada cocho ou cocharro) ou com as mãos a fazer concha. Quem bebia dumas e doutras sabia distinguir as suas águas pelo sabor, pela frescura, pela doçura, pela salinidade ou outros atributos. Não eram objecto de qualquer análise bacteriana ou outra por parte das entidades públicas. Com a sua experiência e o seu saber, os habitantes da aldeia é que as analisavam e discutiam entre eles as suas qualidades.

À beira de alguns caminhos havia fontelas muito conhecidas, como as de Juncais e Juncaínhos. A mais famosa era a de Juncaínhos pela frescura e doçura da sua água. Dela contava o Sr. João Passarinho o seguinte facto passado nos anos quarenta: Em 1940 foram para Mogadouro várias equipas dos Serviços Cartográficos do Exército para fazer o cadastro geométrico da propriedade rústica de todo o concelho, onde se demoraram durante mais de dois anos. Para Brunhoso foi uma equipa comandada por um tenente, tendo sido o Sr João, então um jovem trabalhador, já bem conhecedor dos prédios rústicos e dos caminhos, contratado para informador e guia. Disse-me ele, repetidas vezes, que o Sr. Tenente só gostava da água de Juncaínhos, e que todos os dias mandava lá o impedido buscá-la. Infelizmente hoje, essa fontela, está coberta por arbustos e silvas, espreitando pelo emaranhado que a cobre, nem água se vê, provavelmente some-se por outro sítio.

O Sr. João Passarinho já morreu há mais de trinta anos, acredito que durante a vida dele a fontela sempre teve boa água ao dispor de todos os caminhantes e que ele a terá limpado muitos vezes. Era um grande homem, de pequena estatura, humilde, trabalhador, que à jeira ou ajudando outros tão necessitados como ele, conheceu palmo a palmo toda a área agrícola da aldeia. O Sr. João Lagoa, outro bom homem, sendo o homem mais rico da aldeia, a quem ele chamava padrinho, seria dos filhos dele, e de metade dos habitante da terra, não terá sido mais feliz do que ele. Penso que ele morreu a sonhar que toda a área agrícola de Brunhoso, de vinte e um quilómetros quadrados onde ele tinha trabalhado quase 80 anos e onde ele tinha uma pequenina parcela se despedia dele.

Depois de um dia de trabalho extenuante não haveria sono mais reparador e gratificante do que o dos trabalhadores da terra. Ao deixarem a vida, no caminho para o sono eterno seriam transportado por campos de searas, hortas, prados, vinhas, freixos, olmos, sobreiros, carrascos, oliveiras, castanheiros e outras árvores, fontes, rios, ribeiros. Vidas tão cumpridas como eles somente terão tido os cientistas e artistas que se empenharam em grandes projetos criativos.

Nesse tempo toda a água que se consumia em Brunhoso, nascia dentro do seu "termo". A nascente que alimentava a aldeia a chamada "Mãe-de-Água" ficava a um quilómetro da aldeia, numa encosta , que subia para o souto dos castanheiros a nordeste. Era uma mina de água construída em tempos antigos por especialistas, que fazia confluir as águas subterrâneas da área, para um depósito, donde depois era canalizada para as quatro "bicas" da aldeia, para a Fontoz nas Fontaínhas e o tanque das Eiras de Baixo para os animais beberem e onde as pessoas podiam também colher água dos canos, antes de cair nos depósitos, nos tanques.


No limite sudoeste a cinco quilómetros da aldeia passava o rio Sabor, que criava nas suas arribas um microclima mais ameno, quase mediterrânico, propício às culturas das oliveiras, das amendoeiras e das figueiras. Criava fantasias de brincadeiras na água entre os mais novos e lindos espelhos de água com paisagens belas pintadas de azul celeste.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

4 comentários:

Anónimo disse...

Não sou crítico literário.
Considero-me minimamente “consciente” das minhas limitações para o pretender.
Uma já longa ,activa e variada vida ,deu-me oportunidades de “olhar em volta” e ir aprendendo.
Sou sempre surpreendido pelo modo como consegues uma continuidade narrativa que não só liga como complementa modos de vida (modos de estar) em que realidades actuais acabam sempre por ser apoiadas em sólidas raízes culturais.
Renovações em enquadramentos sólidos.
Viajar através da tua prosa torna-se mais do que um prazer.
Descobrindo raízes acabamos por nos descobrir como portugueses.
E repara que não escrevo....”estranhamente”!

Um grande abraço do J.Belo

Valdemar Silva disse...

Curiosa esta palavra corcha.
Não sei ao certo, se a casca de árvore, como também a palavra é conhecida, é genérica a várias árvores, ou somente à da cortiça do sobreiro depois moldada para se poder beber água.
Também não sei se cocho, palavra utilizada no Alentejo para o mesmo objecto, será uma corruptela de corcha.

Quanto à escrita de Francisco Baptista é ela bem característica dos escritores transmontanos.
Venham mais escritas destas.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Fernando Gouveia disse...

Olá Francisco:
Como deves saber estou perto de Brunhoso, na Parada. Parece que por aqui chamam a isso não corcha mas sim corcho e também cortiçó. Quando andava por aqui à caça, no antigamente, também costumava beber água nas fontelas com um corcho. E para que conste continua a ter cuidado com o bicho (virus).
Um grande abraço.
Fernando

Manuel Carvalho disse...

Caro amigo Francisco como bem sabes, também tive a oportunidade de fazer parte dessas rodas á volta dessas merendas Transmontanas, quase sempre junto a uma árvore com boa sombra e que bem nos sabiam todas aquelas iguarias depois dumas quatro horas ou mais de trabalho duro.
Fico sempre maravilhado pela forma como tu descreves aquelas vivências que eu conheço há cerca de quarenta anos.

Um abraço e saúde.

Manuel Carvalho