domingo, 14 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21075: Manuscrito(s) (Luís Graça) (185): por favor, não destruam o que resta da caixinha de Pandora, porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal


Estátua de Pandora (1861), 
de Pierre Loison (1816-1886). 
Paris, palácio do Louvre. 
Cortesia de Wikimedia Commons





A Caixinha de Pandora


por Luís Graça


Os deuses criaram a primeira mulher,
e puseram-lhe o nome de Pandora.
Diziam os gregos antigos que fora por castigo,
como presente envenenado,
oferecido aos homens,
a quem Prometeu, o titã, tinha dado o fogo,
roubado aos céus.

Na sua fabricação,
à imagem e semelhança dos deuses,
trabalharam Hefesto e Atena,
sob as ordens do próprio Zeus,
e com o auxílio do resto do Olimpo.

Cada dividindade se esmerou
e lhe deu uma qualidade:
a graça,
a beleza,
a meiguice,
a paciência,
a compaixão,
a persuasão,
a generosidade,
a inteligência emocional,
a sensibilidade,
a sensualidade,
o sexto sentido,
a graciosidade na dança,
a arte da sedução,
o erotismo,
o talento para a cozinha,
a destreza para os trabalhos manuais,
o amor maternal…

Porém Hermes, o pérfido

inocolou, às escondidas,  no  coração de Pandora,
(, quiçá com a cumplicidade do próprio Zeus,)
o vírus da traição,  da mentira, da intriga, do ciúme e da intolerância.

Zeus, o colérico e vingativo pai dos deuses
e de todas as demais criaturas,
mandou então a sua obra-prima
para a terra, qual cavalo de Tróia.
Epimeteu, irmão de Prometeu, estava por este avisado:
- Do céu nunca virá nada de bom!
Nunca aceites nenhum presente divino…

Deslumbrado com a sua beleza,
Epimeteu tomou Pandora como esposa.
Em casa, ele tinha uma misteriosa caixa
que outrora lhe enviara o céu.
Pandora fora instada a nunca a abrir,
em circunstância alguma.
Mas a curiosidade feminina foi superior às suas forças.
Outros dizem
que era... o seu dote de casamento,

um presente envenenado.

… Lá dentro, na caixa de Pandora,
estavam todos os males,
todos os cavaleiros do apocalipse
a fome, a guerra, a morte
 e todas as doenças
a começar pela peste, a pior das doenças,
que haveriam de afligir a humanidade,
até ao fim dos séculos dos séculos…
sem esquecer todas as sementes do mal:
a estupidez, o fanatismo, a intolerância, o ódio, o racismo. 

Mas, no fundo da caixa, ficou ainda
um resto do recheio original,
o único elemento que não se chegara a libertar,
porque Pandora, assustada,
ainda conseguira fechar a tampa,
na derradeira fracção de segundo …
E esse elemento era… a Esperança,
disfarçada de mal !

Apesar do erro, terrível,  irreparável,
Pandora vai permitir aos homens,
empunhar com orgulho o archote de fogo
que lhes dera Prometeu,
manter acesa a luz ao fundo do túnel,
manter vivo esse outro fogo do conhecimento e da paixão,
dominar alguns dos piores males
que estiveram prestes a destruir a humanidade,
todos os holocaustos e pandemias,
conquistar o direito ao futuro,
lutar contra a doença e a morte,
alimentar a esperança,
combater o fatum, a condenação ao absurdo,
levá-los, enfim, aos seres humanos
a superar as limitações da sua condição animal...

Com Pandora, não somos definitivamente criaturas divinas,
nem obras-primas da criação,
somos assumidamente seres livres,
humanos,
frágeis,
vulneráveis,
mortais,
bons e maus,
fortes e fracos,
mas donos do nosso destino.

Com Pandora, tornámos irrisórios os deuses,
libertámos criadores e criaturas,
deixámos a suburbanidade do Olimpo,
humanizámos a vida,
hospedámo-nos no sistema solar,
começámos a escrever a história, 
com muitos erros e crimes, é verdade,
mas escrevemos,
e  ganhámos a terra como nossa casa comum,
conhecemos a vertigem e o sabor
da aventura e da liberdade...


Pandora, nossa mãe negra, branca, amarela, vermelha...
mãe de todas as cores do arco-íris,
Não, Pandora, não és a fonte de todos os males,
não és o pecado original,
és afinal “a que tudo dá",
em grego.


Com Pandora somos fogo e estopa,
mas já não vem o diabo... e assopra!
Para quê o diabo,
se voltámos a ter, de volta,
a caixinha de Pandora,
agora domada e explicada às criancinhas,
e outrora mortal brinquedo dos deuses ?

Por favor, não destruam 
o que resta da caixinha de Pandora,
porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, 
a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal...


Lisboa, 8/3/2010. 
Versão 2, Lourinhã, 13/6/2020

__________

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não ao revisionismo da História!...Sempre que caímos nessa tentação, pagámos um preço, caro, em termos de liberdade de pensamento e de expressão, de honestidade intelectual, de busca da verdade, de pluralismo, de democracai... O revisionismo da História traz consigo a censura, a autocensura, o cinismo, o politicamente correto, o eticamente correto, e em última análise abre o camimho ao pensamento único, as "santas inquisições", os fundamentalismos, os extremismos (à esquerda ou à ditreita), as ditaduras, aos autoritarismos, e aos totalitatismos...

Precisamos de justica como de liberdade, e uma coisa não existe sem a outra... E entre uam e outra, eu prefiro a liberdade que me permite lutar pela justiça.

Por isso, esta "caixinha de Pandora" é uma metáfora mas também uma recusa do revisionismo da História, "sejam quais forem os valores que se alevantem"!...

Antº Rosinha disse...

Oportuníssimo este post.

Não vai haver psico-social que salve a Europa das consequências.

Até porque algumas minorias estarão cada vez em menos minoria.

Londres já não é presidida por um aglo-saxónico, mas sim por um cidadão britânico eleito democraticamente.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Na Tabanca Grande não há "ismos... nem "anti"... Não somos um blogue de "causas", mas de "partilhas de memórias"... Por isso escrevemos com total liberdade e inteira responsabilidade, o que significa que respeitamos as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós... Ao fim de 16 anos (!), é um exemplo, raro, excional, de tolerãncia, de respeito mútuo!... Nunca perguntámos a ninguém: Camarda, onde é que votas ? Que religião professas ? De que clube é que és?... O maior denominador comum é a guerra da Guiné, 1961/74... Porisso, e sem surpresas:

(i) não nos insultamos uns aos outros;

(ii) não usamos, em público, a 'linguagem de caserna';

(iii) somos capazes de conviver, civilizadamente, com as nossas diferenças (políticas, ideológicas, filosóficas, culturais, étnicas, estéticas, etc.);

(iv) somos capazes de lidar e de resolver conflitos 'sem puxar da G3';

(v) somos todos camaradas com direito ao bom nome e à privacidade;

(vi) não trazemos a "actualidade política" para o blogue, etc.

E, mais, ao fim destes anos todos, contam-se pelos dedos as mensagens que não publicámos ou os comentários que eliminámos, por terem:

(i) conteúdo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, pornográfico, etc.;

(ii) carácter difamatório;

(iii) tom intimidatório ou provocatório;

(iv) acusações de natureza criminal;

(v) apelo à violência, física e/ou verbal;

(vi) linguagem inapropriada;

(vii) publicidade comercial ou propaganda claramente político-ideológica;

(viii) comunicações do foro privado, sem autorização de uma das partes...

Valdemar Silva disse...

É tudo isso, Luís Graça.
Mas, vá lá, uma pequena excepção para alguma situação que haja, com um 'desculpe tire lá o seu pé de cima do meu', mas com educação e pedindo p.f.

Quanto a boa educação lembro-me sempre daquela da mulher do sr. general que fez queixa ao marido por uns soldados que foram lá casa soldar um cano no tecto dizerem muitas asneiras que afinal não foi nada de grave por um deles deixar cair um pingo do solda incandescente no olho do outro este dizer em voz suave p.f. querido camarada prá outra vez tem mais cuidado.

(O desconfinamento sem a devida cautela pode causar ideias destas)

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz