domingo, 14 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21076: Blogpoesia (681): "Chave de fendas", "A última noite" e "A primeira noite", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Chave de fendas

Objecto minúsculo e discreto, tecido de aço,
Dotado da força, quase infinita
Duma alavanca potente.
Remove a teimosia com suas garras.
Capaz de erguer o mundo.
Quebra as cascas.
É arguta.
Busca na noz só o miolo.
Arma escondida.
Se ostenta branda no seu gume atroz.
Quem a tem consigo é capaz de desandar o mundo.
Escancara os cofres e abre as algemas.
Desafia as cadeias e abre as cancelas.

Cuidado!
A chave de fendas faz dum anão um gigante,
bom ou ladrão...

Mafra, 7 de Junho de 2020
8h58m
Jlmg

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A última noite

Durmo hoje a última noite na casa de Mafra.
Um sonho que acaba.
Sonhamo-la como um ponto de encontro da família total.
À beirinha do mar e do campo.

Os ventos da vida nos arrastam para longe.
Netos e filhos. Apelos ingentes.
Que não se podem negar.
O coração perdeu em favor da razão.
Não fazia sentido mantê-la.
Mas dói que se farta.

Um lenitivo:
Uma família jovem e numerosa a vai saborear…

Ouvindo a 7.ª sinfonia de Beethoven
10 de Junho de 2020
21h35m
Jlmg

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A primeira noite

Pela derradeira vez fechei a porta da velha casa.
Carreguei no carro os últimos caixotes e vim para a casa nova.
Um T0 duma moradia em turismo de habitação.
Tomamos a primeira refeição
– O jantar.
A dona presenteou-nos com um bolo caseiro feito por si.
E uma garrafa de “Redondo”. Carrascão.
Estamos cansados, mas felizes.
Uma nova etapa se abre.
Uma lição recebemos desta contingência dolorosa e inesperada.
Despimos a casa dum recheio mirabólico.
O que se vai acumulando no compra-compra.
Compra-se e não se usa.
Tivemos de nos desfazer de tudo porque ninguém apareceu para comprar.
Só a satisfação de nos ver livres já recompensou.
Temos só o que coube no carro.
Somos ricos porque temos a liberdade de avançar para Berlim.

Ericeira, 11 de Junho de 2020
20h49m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21051: Blogpoesia (680): "Nem sol a mais", "Minha alma é uma viola" e "Terror do sexo...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Poemas do despojamento...É doloroso deixarmos a nossa casa, a nossa casca de caracóis...Já deixei umas quatro ou cinco ou seis, já comprei três, já vendi duas... Há sempre um parte de nós que deixamos, irremediavelmente, em cada casa que deixamos... Resto-nos a consolação de que a deixámos em boa mãos, "casais jovens" que saberão fazer bom uso daquelas quatro paredes e que serão tão ou mais felizes do que nós...

Boa viagem, Joaquim, de regresso a Berlim e aos netos... LG

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...



Obrigado, amigo Luís. É isso mesmo.

Um grande abraço

Joaquim