Queridos amigos,
É dia histórico, os dois cinquentões estão em rota de aproximação, ele foi sexta-feira à noite para Bruxelas, havia planos que tiveram que ser alterados por causa de chuviscos ao longo de uma manhã. Despediram-se domingo à noite, segunda-feira era dia de ocupações para ambos, ela não resiste a escrever-lhe emocionada, há muito sal na terra na sua narrativa, guardou pormenores, está felicíssima, um rasto de luz assoma na sua vida, ela quer agarrar esta esperança com uma certa firmeza, e di-lo.
O pretexto da ficção entrou numa reviravolta, passou a fazer parte de um quotidiano real, algo de novo está a acontecer na vida daqueles dois cinquentões. É uma questão de entusiasmo esfuziante, e Annette não é mulher que vá recuar só porque existe uma distância física entre Bruxelas e Lisboa. Os dados estão lançados, a partir deste fim de semana.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (7): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Cher Paulo, escrevo-lhe na noite de segunda-feira, a esta hora já está em Lisboa, eu trabalhei o dia todo num edifício perto do Berlaymont, reunião de pescas, lamento não ter tido condições para o levar ao aeroporto. Foi um fim de semana muito feliz, o tempo ajudou no sábado e os chuviscos permanentes no domingo obrigaram-nos a mudar de planos, sinto-me feliz quando alguém conhece o valioso património de Arte-Nova em Bruxelas, aprecia os jardins e parques e gosta de percorrer calmamente Ixelles ou Saint-Gilles. Confesso-lhe que fiz algum esforço para estar pronta às oito da manhã de sábado para o acompanhar nas suas andanças no mercado da Place du Jeu de Balle, o entusiasmo com que regateou aquele álbum de fotografias de alguém que em 1951 entrou por Vilar Formoso e veio até Lisboa, visitou Alfama e o Bairro Alto, as imagens, reconheço, de muito boa qualidade, o que é que vai fazer agora com o álbum, é para algum museu? Assombrou-me aquela senhora que tem uma banca junto da igreja e que o reconheceu imediatamente, a que vende velhos lenços para o pescoço, marcas como Dior ou Chanel ou Saint-Laurent, a sua preocupação de que estivesse em bom estado, sem manchas, sem cores desbotadas. E não consigo imaginar como é que entrou no avião com aquela tela a óleo, enorme, fez bem em desfazer-se da moldura, toda em mau estado, mas também gostei da pintura, com o tema do Mar do Norte ao fundo. Adorei o almoço naquele restaurante típico frente à Porte de Hal, soube-me bem rever a Rue Haute, espreitar a casa dos meus pais adotivos, tenho pena do estado em que está a fachada, fomos por ali fora até ao Grand Sablon, ainda tremi a pensar que íamos vasculhar mais velharias, eu preferia continuar a falar dos seus projetos literários, como acontecera à hora do almoço. O que me entusiasmou não falarmos diretamente dos seus tempos da Guiné, mas daquilo a que chamou os preparativos, e antes o que chamou a sua vida de estúrdia, sócio de quatro cineclubes, mais teatro, mais festivais de música, as suas tertúlias e visitas quase diárias àquele seu amigo que faleceu em Moçambique, em 1970. Gostei da vivacidade com que falou do Convento de Mafra, que eu visitei quando estudei em Portugal, como lhe disse é uma excursão no âmbito de um curso de férias da Faculdade de Letras, fomos diretamente para o Museu Nacional, o que nunca mais esqueci foi a beleza da biblioteca joanina, mas não me foi dado perceber se havia para ali um quartel, onde se preparou para oficial miliciano. Estávamos nós a comer a sobremesa, a Dame blanche, quando, com o mesmo entusiasmo, me contou a sua chegada aos Açores e a importância que esta estadia teve para ganhar confiança nas suas capacidades de liderança.
Eu queria ouvir mais histórias, o princípio da tarde tinha aquela boa temperatura, um sol confortável, e foi quando o Paulo sugeriu que vagueássemos pelo Parque Real antes de ir fazer aquilo que chamou visita de culto aos modernistas e surrealistas no Museu das Belas Artes. Aí contou-me o resto da história e o regresso a Lisboa. Depois fomos visitar os seus amigos como lhe chamou, desde Rik Wouters e Léon Spilliaert, passando por James Ensor até ao santo do maior culto, René Magritte. E depois fomos para o Jardim do Petit Sablon, invocando que precisava de alguns dados pessoais sobre aquela mulher com quem se envolvera e a quem enviava informações sobre o seu passado, a tal belga que tudo quis saber sobre a sua experiência na guerra da Guiné, eu falei-lhe um pouco de mim, penso que ficou claro que muito cedo enveredei pelo que considero ser a minha vocação, ser intérprete, trabalho como freelancer, felizmente que tenho muita solicitação, inclusive sou chamada para conferências ao fim de semana, não regateio trabalho, os meus dois filhos estão em início de carreira, ajudo-os, o meu ex-marido também tem tido essa preocupação de os apoiar. Graças a ser intérprete, conheço um pouco da Europa, como lhe disse acompanho as reuniões do Conselho Económico e Social Europeu, como sabe funciona ali no Monte das Artes, às vezes aproveito a hora do almoço e vou visitar alguma exposição no Palácio das Belas-Artes; são as reuniões da Comissão Europeia que mais tempo me absorvem, não fujo ao trabalho, não é um problema de impostos, preciso de poupar o mais possível, a minha reforma, acredite, não será lisonjeira. Com uma vida assim tão ocupada, procurando acompanhar mesmo à distância a vida dos meus dois filhos, com algumas boas amizades, não me posso lamuriar de solidão. Mas sei olhar-me ao espelho, sou realista, aos 50 anos a candidatura a um amor verdadeiro é mais uma necessidade que o bom-senso tem o dom de acalmar, para não cometer disparates. Isto só para lhe sublinhar o que lhe disse, a vida prega-nos imensas partidas, se alguma vez me tinha passado pela cabeça que numa reunião de trabalho um participante vindo de Portugal me batesse à porta para me pedir ajuda para uma história de amor serôdio, com recordações de guerra e muito mais. Passado este tempo, só tenho que lhe agradecer a companhia que me trouxe e a abertura de uma porta que eu julgava hermeticamente fechada.
Fomos beber um saboroso chocolate e conversar sobre o domingo, eu tinha lá notícia de que a meteorologia anunciava chuviscos, tínhamos recentemente falado em visitar Laeken, penso que desde a adolescência não visito os jardins nem o Pavilhão Chinês nem a Torre Japonesa, não sei explicar porquê, aquele local é tão aprazível, gosto tanto de plantas e as Estufas Reais são muito belas, achei preferível dizer-lhe que deixaríamos a natureza para outra sua visita e como queria comprar livros de banda desenhada para oferecer a um amigo, propus que começássemos o domingo por ir ao Centro Belga de Banda-Desenhada, eu já ali tinha passado perto, é um belo edifício Arte-Nova, gostei imenso de conhecer o interior, li como toda a gente os heróis de Hergé e de Edgar Jacobs, valeu a pena e sobretudo ouvir os seus comentários a todas aquelas histórias. Lá fomos de chapéu de chuva até ao restaurante Vincent, quantas vezes passei ali pela Rua dos Dominicanos e não me tinha apercebido dos belos mosaicos do interior, mais uma vez lhe agradeço a refeição de peixe, deliciosíssima.
Como não estavam previstos mais chuviscos, sugeri um passeio a dois jardins, o Paulo anuiu e fomos primeiro ao Parque de Woluwe, atravessámos Bruxelas e visitámos o Parque de Josaphat. Tinham sido grandes emoções, eu estava radiante, caía o dia, tinha lidas domésticas inadiáveis, mas ao mesmo tempo sabia-me tão bem a sua companhia, o meu coração balanceava, o Paulo foi perspicaz, não se queria exceder, sugeriu então que fôssemos até À la Mort Subite beber uma Kriek, e então falou-me daquele primeiro mês a adaptar-se a Missirá e a Finete, trouxe fotografias, impressionou-me, dolorosamente, o estado lastimoso de tudo aquilo, mas o Paulo sempre a sorrir, dando o braço àqueles homens e mulheres, conversando com as crianças, a dar aulas, a acompanhar reparações urgentes. Enquanto tudo me contava eu interrogava-me seriamente como é que seria possível aquele jovem de 22 ou 23 anos de idade, de hábitos culturais arreigados, atirado de rompante para o fundo de uma mata, com uma população tão pobre, correndo tantos riscos, enfrentava com tanto otimismo a multiplicidade de problemas hostis, com a possibilidade de entrar em guerra a qualquer momento, sempre a sorrir, como se estivesse a descobrir um admirável mundo novo. Enquanto bebia a Kriek e o ouvia, eu não deixava de pensar que para saber responder aos ásperos desafios que a vida nos apresenta não há nada como o otimismo e a esperança.
E quando me despedi de si, à porta da Rua do Eclipse, pedindo-lhe desculpa por ter arranjos inadiáveis, mesmo sabendo que esta despedida o estava a fazer sofrer, senti um calor na minha alma que me continuou a acompanhar e que me levou a escrever esta carta onde não lhe escondo os meus sentimentos e a felicidade de o saber perto de mim, mesmo à distância destes milhares de quilómetros, tome a distância como uma pura casualidade, que mais dia menos dia iremos ultrapassar, há a tal história de amor que me propôs, e ainda estamos nos primeiros capítulos. Espero que regresse em breve e que entretanto volte às suas recordações da Guiné, espero ansiosamente notícias, afetuosamente, Annette.
Mulher junto à costa, 1910, por Léon Spilliaert
Os Amantes, por René Magritte
Entrada do Centro Belga de Banda-Desenhada
Parque de Woluwe
Parque Josaphat
Escultura no Parque Josaphat
____________Nota do editor
Último poste da série de 12 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21069: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória
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