quarta-feira, 17 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21084: Historiografia da presença portuguesa em África (213): Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné - Carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira, publicada no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada como dar a palavra ao oficial da Armada nomeado comissário para a delimitação das fronteiras da Guiné Portuguesa. Eduardo João da Costa Oliveira dirige-se a Luciano Cordeiro e a sua carta é tudo menos inocente, nela se exaltam as potencialidades de uma colónia que aguarda planos de desenvolvimento. Mas tudo tem o seu preço, é necessário travar as lutas interétnicas e marcar presença. Descreve os rios, e vê-se nitidamente que sabe do que está a falar, alerta para as riquezas que poderiam representar a agricultura e o comércio no Geba.
Este seu importante trabalho precede outro, a que nos referiremos adiante que é a sua viagem à Guiné Portuguesa, um documento preciosíssimo, estranhamente pouco invocado pelos estudiosos.
Gradualmente, se vai confirmando a dívida do território com estes distintos oficiais da Armada, que cartografaram, definiram fronteiras, revelaram a navegabilidade dos rios e das rias e que num dado momento puseram a colónia no mapa do império, basta pensar nos nomes de Sarmento Rodrigues, Teixeira da Mota e Pereira Crespo.

Um abraço do
Mário


Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné

Beja Santos

A carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira para Luciano Cordeiro, publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, no número constante desta imagem, é um belíssimo documento para quem pretende acarrear e inventariar a documentação essencial sobre a presença portuguesa na Guiné, quando a colónia passou a ter fronteiras. E ninguém melhor posicionado para o fazer de quem contribuiu para o facto.
O documento começa assim:
“Meu caro Luciano Cordeiro, tomo a liberdade de te enviar e oferecer um modestíssimo esboço do território português da Senegâmbia”. O oficial de Marinha é profundo conhecedor do território, percorreu os rios e faz uma síntese do que julga mais significativo para enviar ao político em Lisboa:
“Rio de Cacheu ou de Farim – rio profundo de margens pitorescas e navegável para grandes navios mais de cem milhas aproximadamente acima da foz. Na margem direita deste formoso rio está situada a nossa praça de Farim, outrora importante pelo seu comércio, e a cinco milhas a jusante um excelente fundeadouro para grandes navios”. E mais acrescenta que os nomes dos afluentes principais deste rio e das povoações ribeirinhas foram revistos e corrigidos pelo Sr. Cleto, funcionário público da Guiné, um dos cavalheiros mais sabedores daquelas zonas. Esclarece ainda que os chamados rios de Jata, Âncoras, Nhabo e Impernal são verdadeiros canais.
Rio Geba – o traçado deste rio até à embocadura do Corubal é tão exato quanto possível. E cita um trabalho de Lopes de Lima: “Entre Geba e Farim há comunicação fácil, sendo a distância entre os dois presídios de dezoito léguas, de que doze se andam em canoas pelo rio de Farim até à aldeia de Tandegú, e as seis por terra de Tandegú a Geba. Este rio é navegável para grandes embarcações somente até a Pedra Agulha, por causa dos bancos de areia que existem umas trinta milhas, pouco mais ou menos, acima da sua foz, deixando apenas um estreito canal, por onde podem passar duas canoas a par”.

Refere detalhadamente o fenómeno do macaréu e adiciona a seguinte informação: “Algumas lanchas do Estado, como a Honório e a Cacine e outras, vão muitas vezes a Geba em serviço da Província e não me consta ter havido nenhum desastre proveniente do macaréu”. E pela primeira vez emite um parecer político, sobre as potencialidades da Guiné: “Para mim, é ponte de fé que o futuro da Guiné está ligado a este rio. Geba é um ponto estratégico importantíssimo do sertão, e, se fosse convenientemente guarnecido e defendido, assim como S. Belchior e Sambel Nhantá, o comércio, à sombra dessa protecção havia de desenvolver-se rapidamente, e Bissau, capital natural da Guiné, já pela sua posição geográfica, já pela sua importância comercial, podia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região”. E não escusa de informar o político em Lisboa de importantes trabalhos vindouros, de modo a assegurar uma presença duradoura da soberania portuguesa: “Os pontos a fortificar desde já no interior da Guiné e a proteger eficazmente, seriam, segundo o nosso humilde modo de ver, Farim, Geba e Buba, e consequentemente Bolor, Bissau e Colónia, no rio Grande de Bolola. Alguns pontos intermédios, tais como S. Belchior e Sambel Nhantá, no rio Geba, e Cacheu no rio do mesmo nome. Mas sem lanchas a vapor bem armadas e apropriadas para aquela difícil e perigosa navegação, nada se deve tentar, se quisermos evitar algum tremendo desastre, semelhante ao de Bolor, onde foram massacrados dois oficiais, trinta soldados e mais de duzentos habitantes afeiçoados ao nosso Governo, pelos gentios Felupes”.

Rio Mansoa – este rio, que na largura, profundidade e importância comercial não é muito inferior ao Geba e Farim, corre paralelamente a estes dois rios e comunica com o de Armada, podendo reduzir a um terço o tempo da viagem, que ainda se faz em dois ou três dias entre a vila de Bissau e a praça de Cacheu por caminhos perigosos. Parece que o Mansoa é um grande esteiro engrossado por numerosos ribeiros e não um rio propriamente dito.

Rio Corubal – dizem que nasce em altas montanhas do Futa-Djalon; é profundo e largo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de quatro metros de altura próximo de Consinto (Cussilinta?). Há dois pequenos rápidos pouco distantes desta formosa catarata, e vai misturar as suas águas cristalinas com as do rio Geba.

Rio Grande de Bolola ou dos Portugueses – é conhecidíssimo este rio, ou, antes, esteiro, onde vem desaguar muitos outros esteiros mais pequenos e riachos. É navegável para grandes embarcações até milha e meia abaixo de Buba. Foi importante o comércio da mancarra e outros géneros neste rio. Atualmente pode afirmar-se sem receio de controvérsia que está abandonado pelos negociantes nacionais e estrangeiros”. E especula sobre as razões de tal degradação, desde a quebra dos preços da mancarra no mercado internacional até às guerras entre Fulas e Beafadas, conhecidas como as guerras do Forreá. E afirma: “O que nos causa espanto é que não se ponha cobro a estas guerras sempre desastrosas aos nossos interesses e bom nome, por serem feitas em territórios chamados portugueses”. E a propósito da imposição da soberania, e para travar completamente as guerras interétnicas, sugere: “Aí pelos arsenais do Exército e da Marinha existem pequenas peças de bronze, de alma lisa, que para nada servem; porque não se lhes manda fazer reparações ou carretas de ferro e se enviam para a Guiné a fim de guarnecerem as praças de Buba, Farim, Geba e Cacheu, e os postos militares em S. Belchior e Sambel Nhantá, Bolor, etc.?”

Rio Cacine – navegável até à feitoria de Amadu-Bubú, é também um enorme esteiro, onde vão desaguar numerosas ribeiras, que, na época das chuvas, devem formar caudalosos rios. A borracha é o produto indígena que ali se permuta por armas brancas e de fogo, pólvora, etc.

Finda esta descrição, o Capitão-de-fragata adiciona outras informações antes de dar por finda a carta. Observa o seguinte:
“Os Fulas do sertão do rio Grande, desde Contabane até Damdum, são geralmente hospitaleiros, obsequiadores, leais e susceptíveis de se nos afeiçoarem. Não bebem álcool. Apreciam unicamente as contas de alambre, de coral, o bertangil, fazendas brancas e de cor, tabaco em folha, pólvora, chumbo de caça, zagalotes e balas. Desde Contabane até Buba, já o álcool tem apreciadores distintos, e o nosso dinheiro, conhecido por dinheiro do Forreá, serve para adquirir os géneros precisos”.

O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira era sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, e foi o comissário português encarregado de estudar a demarcação para o tratado entre Portugal e a França relativo à Guiné.

Primeiras instalações do BNU em Bissau (1917)

Carnaval Felupe, imagem da investigadora Lúcia Bayan, gentilmente cedida ao blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21062: Historiografia da presença portuguesa em África (212): A Guiné há um século, segundo Fortunato de Almeida em "Portugal e as Colónias" de 1918 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, é uma justa homemagem aos nossos bravos e competentes marinheiros... A cartografia e a geografida da Guiné devem-lhes muito. E o teu contributo é valiosíssimo, para que eles não fiquem esquecidos no pó dos nossos arquivos...

Um dia pomos um busto em bronze, mas é a ti, à porta da Sociedade de Geografia, aí em pleno ventre da cidade de Lisboa, nas Portas de Santo Antão... (Não gosto de gastar, em vão, palavras como "patriotismo", devemos fazê-lo com parcimónia... mas o teu trabalho de pesquisa nos arquivos da Sociedade de Geografia, e de que nos dás conta nas págunas do blogue, é algo que eu considero "patriótico").

Bem hajas!