domingo, 28 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)




Lourinhã >Praia do Areal, Chakall > 27 de março de 2021 > 19h15 > Pôr-do-sol


Vídeo (0' 47'') > Alojado em You Tube > Luís Graça (2021).


1. Uma nuvem negra tapa metade do sol, na despedida do dia... enquanto a lua espreita, tímida, no seu posto de vigia, no campo oposto. São dois cultos, antagónicos, tão velhos como o homem, o culto solar e o culto lunar.

No tempo do não-tempo do confinamento, um outro dia há de chegar, com a noite de permeio. E esperas sempre uma manhã clara,  da cor da esperança. Mas amanhã muda a hora e sempre ganhas mais 60 minutos de vida, isto é, de luz. Ah!, a doce ilusão circadiana!

Na unidade 3 da radioterapia do IPO, o teu "céu" (iluminado) é a foto de um ramo de macieira [Malus domestica], com 17 flores (3 ainda em botão)... Cada uma das 14 flores tem cinco pétalas. brancas,  e 20 estames... Be patient!.... Afinal  é apenas meia hora por dia  em que tens de estar de barriga para o ar, absolutamente imóvel, as mãos pousadas no peito... O único escape a que te podes dar ao luxo é  (re)contar as flores, as pétalas e os estames das flores da macieira... projetadas no tecto.

É boa terapia para a ansiedade inicial e a claustrofobia: ajuda-te a  passar o tempo do não-tempo enquanto o robô anda à volta do teu corpo, "bombardeando-te" com radições ionisantes... Protésico e agora radioactivo... Não, emenda a radiologista. É um tratamento não invasivo,avançado, seguro... Confia nos teus anjos da guarda.

A flor, branca,  da macieira tem sobre os frágeis seres humanos (mesmo os mais durões que andaram na guerra)  um efeito mágico, ranquilizante, securizante e promissor. A esperança é uma crença poderosa. Talvez o "truque" não passe de um placebo, mas tem uma eficácia terapêutica simbólica, não menos poderosa que as radiações.  A flor da macieira não está lá por acaso, no meio daquele "bunker" das tecnologias da saúde de ponta... E ficas frustrado quando, por lapso, não acendem a luz do teto... (Dizem-me que nas outras unidades os motivos que enfeitam o céu do paciente, são diferentes: ondas do mar, palmeiras, outras árvores de fruto...)

A macieira simboliza a vida, a saúde, o amor, a sabedoria, a felicidade no  futuro mais que perfeito,.. Quiça a inortalidade. Na mitologia grega, a Mãe-Terra, Gaia,  deu uma macieira a Hera, como prenda de casamento com Zeus, o deus dos deuses... Na nossa cultura judaico-cristã, a macieira é a árvore do conhecimento e a maçã um fruto proibido...

Contas e recontas as 14 flores de macieira na tua nesga de céu, artificial, mais as 70 pétalas, brancas, e os 280 estames. Um pequeno suplício de Sísifo, aceitável, de segunda a sexta-feira. Só tens que aprender  a controlar os esfíncteres. Vais de bexiga cheia (e o reto limpo...) com 0,666 litros de água da EPAL (que sempre é mais barata). "Dia de purga, dia de amargura",  diz o aforismo hipocrático... Mas já lá  vai o tempo do nosso senhor dom João V em que se escrevia nos muros do Hospital Real de Todos os Santos: "Em Lisboa nem sangria má, nem purga boa"... Espantoso, não grafitos nos muros do IPO de Lisboa... Os grafiteiros têm medo do cancro que se pelam!

Um dia destes talvez saia um poema... à flor da macieira, e às meninas, delicadas e dedicadas,  da equipa multidisciplinar da  unidade 3 da radioterapia do IPO.  Mal comunicamos, porque está tudo cronometrado ao minuto. Há 7 unidades destas,  é um verdadeira linha de montagem. Segunda-feira, quando voltares ao tratamento,  no fim podes riscar mais um pauzinho no teu "vademecum": das 28 sessões prescritas faltar-te-ão só 22... E na terça, 21, e na quarta, 20, na quinta, 19...

E no próximo fim de semana podes gozar, como o prisioneiro bem comportado, três dias  de liberdade condicional,  e ir "limpar a vista", como dizia o teu pai, teu velho, teu camarada, junto ao mar do Cerro, no oceano Atlântico, na ponta mais acidental da Europa... (Não digas a mais ocidental, porque essa é o ilhéu de Monchique, na ilha das Flores, e os florentinos ficariam ofendidos contigo.)

Como no tempo do não-tempo da Guiné, em que não havia calendário, e o tempo do não-tempo  da guerra era contado por riscos nas paredes sujas dos "bunkers"... ou das casernas. Não havia  céu nem imagens de flores de macieira, apenas rachas de cibes, chapas de bidão e terra batida.

Há quem se queixe de tudo e de nada. Podias queixar-te da Pátria que te roubou 36 meses de vida... Mas para quê ?  Afinal, entraste no segundo ano da "comissão de serviço" imposta por esta maldita pandemia de Covid-19. E ainda ninguém não te viu apresentar queixa na competente repartição do Olimpo. Disseram-te que não valia a pena: afinal, há casos muito mais graves que ocupam o tempo do não-tempo do  teu Criador...  
 
Espera, ao menos, que Zeus e Hera continuem a estimar, e a cultivar, nos jardins do Olimpo, as macieiras... E que Higia, a deusa da saúde, te proteja...E lembrando-te sempre que a palavra terapeuta vem do grego "therapeuthes", aquele que faz a ligação com  o deus que cura... Cuidar e curar não é a mesma coisa. Cuida-te. Ámen. 

Lourinhã, 27 de março de 2021.

7 comentários:

Anónimo disse...

Fantásticas fotos Luís Graça!

Consegues colocar o observador “dentro delas”o que nem sempre é fácil.
Do mesmo modo que consegues fazer o leitor sentir todo o turbilhão de sentimentos contidos no texto.

Um grande,solidário e sincero abraço.
J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Zé Belo, já cá estou no meu posto, cumprindo a minha parte não na relação terapêutica...LG

Anónimo disse...

Meu caro Luís,

As nuvens são sempre passageiras... O SOL não

Um grande abraço

Joaquim Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Joaquim, o sol "nasce" todos os dias para os doentes e os saudáveis, os novos e os velhos, os ricos e os pobres... As nuvens "negras" ladram e o sol passa e alumia e aquece...

Um abraço fraterno, Luís

Anónimo disse...

Caro Luís

Deduzo que estás a fazer quimioterapia.
A descrição poética é um excelente refúgio mental.
Um grande abração solidário.
Rápidas melhoras.
Precisamos de ti.

C.Martins

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Martins... Estou nas mãos de um grande urologista... Agora estou fazer radioterapia externa até ao fim de abril, 28 sessões, de 2ª a 6ª, meia horinha cada sessão... Estou a ser tratado por anjos, como se costuma dizer, nestas ocasiões... Gente espantosa de um grande profissionalismo... Mukheres, aqui é só mulheres, 80% no IPO (Lisboa)...

O IPO tem um orçamento de 150 milhões de euros, metade vai para medicamentos, e só um terço para salários (são quse 2 mil profissionais)... Há a doentes a que são prescritos medicamentos da ordem das centenas de milhares de euros... Muita gente não sabe isto!...Estou grato ao SNS, ou seja à solidariedade entre todos nós, portugueses, das várias gerações... Não há seguros privados que te paguem isto... Nem património familiar que aguente...LG

Fernando Ribeiro disse...

Caro Luis,

Eu não comentei até agora, porque não sabia ao certo a razão de tão sentido texto. Faço-o agora, para te dar o meu apoio moral. Não sei porquê, lembrei-me de um poema de José Carlos Ary dos Santos, em que ele escreveu, a propósito de um assunto completamente distinto deste: «Isto vai meus amigos isto vai (...) Depois da tempestade há a bonança que é verde como a cor que tem a esperança». Eu próprio fiquei sem bexiga e sem próstata há meia dúzia de anos, por causa de um tumor maligno que me apareceu, e ainda cá ando. «Isto vai».