sexta-feira, 2 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22060: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (46): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Findas as férias da Páscoa, Annette volta ao trabalho em Bruxelas e arredores, Paulo Guilherme enfronha-se nas suas atividades e volta à escrita noturna, manda os seus apontamentos, fotografias e correspondência que ao longo dos anos foi recuperando para a sua fiel cronista, mas Annette tem o seu próprio sentido de exigência, vai fazendo perguntas, quer perceber aquele sentimento de luto de Paulo Guilherme, está prestes a abandonar o Cuor, e ele explica-lhe a natureza da relação que se selou com toda a população, com os pelotões de milícias, mesmo com os soldados que vão acompanhar em Bambadinca e que estão convencidos que vão ter muito menos canseira comparativamente à vida que levaram no Cuor, basta pensar naqueles sempre inquietantes patrulhamentos diários a Mato de Cão. Como se verá adiante, estavam profundamente enganados, o desgaste vai continuar. Nota-se na correspondência entre Annette e Paulo que os corações estão mais serenos, pertencem mais um ao outro, está atenuada a amargura daquela distância física que ninguém ilude, ambos pensam na forma de viverem juntos sem cortar radicalmente nos rendimentos, ambos têm que ajudar filhos que vivem com dificuldades ou no trabalho precário.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (46): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon adorée, peço-te muita desculpa por só hoje te escrever, tivemos férias inesquecíveis, tu recordarás que passei um dia reunido com outros diretores da minha associação, vive-se presentemente nela uma situação difícil na opção estratégica de se manter um quadro de atuação no seguimento das atividades que levamos há décadas ou darmos um salto em função dos novos desafios da globalização, da digitalização e da sustentabilidade. Há associações que receiam o salto em frente, alegam que nos distinguimos dos ambientalistas, enfim, há trabalhos que se podem fazer em comum, mas somos distintos, na Direção contrapomos que esta parceria se tem que estreitar sob pena de ficarmos confinados a uma proteção do consumidor onde deixará de pesar o sentido da cidadania. Será esta a grande discussão nos próximos meses.

Recebi novos primores do teu carinho e do teu desvelo com a história da comissão da Guiné, a matriz do romance que em boa hora aceitaste colaborar no processo ficcional. Recapitulando os dados que me pedes, creio que ficou claro o que andei a fazer por Bissau naqueles dias em que tratei dos olhos e um carniceiro me arrancou um siso e tratou de má vontade de duas cáries, deve estar habituado a arrancar tudo, dei-lhe trabalho desusado, fiz amizade com o oftalmologista, imagina tu que passados todos estes anos sempre que visito os Açores o encontro é obrigatório, a minha gratidão não tem preço pelo alívio que me trouxe saber que os olhos não foram afetados por toda aquela explosão da mina anticarro. Visitei aquele meu furriel que teve um colapso nervoso, segundo o psiquiatra será um processo longo de recuperação. Antes de regressar ao Cuor comprei uma braçada de livros, jantei com o meu antigo furriel Saiegh, prometi que o iria visitar a Fá Mandinga, onde ele vai ser integrado numa companhia de comandos. Mal sabia eu que era a última vez que o via, soube mais tarde que foi fuzilado em finais de 1977, inventou-se que os antigos comandos que combatiam do lado português estavam mancomunados para um golpe de Estado, nunca se apresentaram provas, terá sido um pretexto para inventar um inimigo numa época em que já grassava muito descontentamento pelas políticas de Luís Cabral.

A próxima questão que me pões, sobre o sentimento da partida do Cuor, obriga-me a ir buscar memórias dolorosas, felizmente que as estou a partilhar com a minha adorável companheira. Lembra-te como cheguei ao Cuor, sentia-me um menino de coro, procurar penetrar e decifrar aquele ambiente cultural totalmente estranho; a querer reagir naquela atmosfera de destacamento mal amanhado, não havia sanitários, o balneário era uma espelunca como espelunca era o espaço onde comíamos, pomposamente designado por messe; o arame farpado caído, os abrigos em derrocada, tinha havido uma grande flagelação em 1966, perdeu-se muito equipamento e infraestruturas que não foram depois recuperadas; dei conhecimento da situação a quem comandava em Bambadinca, deram-me uns escassos sacos de cimento, fui pedindo mais e mais, apareceu sanitário, apareceu balneário, apareceu arame farpado, houve motivação para melhorar o espaço coletivo onde comíamos e conversávamos; na visita do comandante-chefe e do chefe do agrupamento de Bafatá fui asperamente criticado pelo estado de degradação, responsabilizado por ter o quartel misturado com as habitações da população civil, como se fosse possível, a ir praticamente todos os dias patrulhar até Mato de Cão, ter disponibilidade, saber e meios para recriar todo o espaço habitacional de Missirá; e gradualmente foi-se estabelecendo uma grande confiança com os meus soldados e com os civis, arranjou-se professor para as crianças e para os soldados, fizeram-se regularmente colunas até Bambadinca para levar doentes ao médico ou para tratamentos de enfermagem; as cercas de arame farpado foram consolidadas, não faltou abastecimento de arroz, os nossos dois cozinheiros foram estagiar na cozinha da messe de oficiais, o nosso rancho, a despeito das grandes carências, passou a ser mais apaladado; aprendi a contabilidade, encontrei no Sousa Pires um colaborador impecável para termos o expediente em dia; enfim, houve fusão de afetos e aquela maravilhosa Festa de Natal marcou decididamente o nosso relacionamento; a minha amizade pelos Soncó e pelos Mané é enorme.

Annette, às vezes dou comigo, graças à memória fotográfica, a conversar com o meu cozinheiro Quebá Sissé, com a lavadeira Binta, mulher de Sila Sabali, um soldado que fora ferido com gravidade na sua mão direita, a operação cirúrgica permitiu-lhe total mobilidade, a despeito de a mão ter os dedos estranhamente posicionados, muito gentil era o Sila, lembro o José Jamanca, que depois da guerra foi tirar um curso de eletricista a Leningrado e vive em Lisboa, e que me procura muitas vezes no emprego, não escondo o calor do encontro, a alegria de nos revermos. Tudo conjugado, meu adorado amor, eu sabia que quando saísse do Cuor todo aquele tempo passaria a ser passado, por isso andava com o coração contrito e não tinha ilusões que a intervenção em Bambadinca seria tanto ou mais espinhosa que a vida no Cuor.

Perguntas-me como foi a vida no último mês. Deixei-te aí a relação de três pequenas flagelações, tenho muita gente doente, é o final da época das chuvas, no próprio dia 14 de novembro, em que partiu o pelotão de caçadores 52 e chegou o Alves Correia à frente do pelotão de caçadores 54 houve flagelação. Fiquei três dias em Missirá a fazer a entrega e a levar comigo a documentação comprovante do que ali deixara, queria prevenir futuras dores de cabeça. Entreguei louvores dos meus militares, senti muito orgulho por todas as minhas propostas terem sido consideradas. Ainda hoje recordo, imagina tu, a minúcia com que fizemos autos de abate, se redigiram as existências de lençóis e fronhas, a comida que ficava, os dados sobre o combustível.

E chegou o momento do memorável adeus a Missirá. Dias antes da transferência, guardei nos meus apontamentos que esse almoço teve lugar no dia 10 de novembro, convidei o régulo, os chefes de tabanca, vários homens grandes do Cuor, os comandantes dos dois pelotões de milícias para uma bacalhauzada. Houve discursos, exprimi a minha gratidão, o meu amor pelo Cuor, no final o régulo Malã Soncó anunciou que passava a pertencer à família, os meus deveres e obrigações com os Soncó iriam continuar, e saltaram-me as lágrimas quando ele tirou do dedo um anel de prata dizendo-me que tinha pertencido a Infali Soncó, agora era meu.

Minha adorada Annette, estou perdido de sono, preciso de te contar ao pormenor a minha última viagem a Mato de Cão e a partida para Bambadinca. Só voltarei a Missirá a caminho da Operação Tigre Vadio, a mais sangrenta de todas as minhas operações, em 1970.

(continua)
Bissau Velho, um pormenor
Capela de Bambadinca
Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início de março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
A imponência da árvore secular (ou quase) cravada num palmeiral
Missirá, 1966, a morança do alferes que me precedeu
Morança, entre agosto de 1968 e março de 1969
A minha morança, ardida na flagelação de 19 de março de 1969
____________

Nota o editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22039: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (45): A funda que arremessa para o fundo da memória

Sem comentários: