quarta-feira, 31 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22054: Antropologia (41): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Esgotada que foi esta edição de Grandeza Africana, o Comissariado da Mocidade Portuguesa fez uma larga edição policopiada, lembro-me perfeitamente de ter encontrado no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa estes textos que eram ofertados e seguramente difundidos em meio escolar.

A recolha a que Manuel Belchior procedeu no Gabú vai do século XIII ao período da pacificação do século XIX-XX, nascimento, apogeu e queda de impérios, a supremacia Mandinga e a chegada dos Fulas, que irão tornar-se o poder dominante do Gabú. 

Fala-se da escravatura africana praticada entre etnias, do poder dos adivinhos, da assombração das aves e das forças da natureza, por detrás destas narrativas estão moralidades: o combate à inveja, o prémio da fidelidade, o heroísmo, o papel dos cantores-tocadores, a indumentária, a lembrança dos cavalos, símbolo de poder e riqueza. 

As narrativas mais longínquas não escapam ao discurso árabe e ao seu modo de contar, é incontestável que a literatura oral dos Fulas e Mandingas tem dado páginas muito belas que a literatura da Guiné-Bissau deverá esforçar-se por recolher e transmitir, é um dos veículos da sua identidade.

Um abraço do
Mário


Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa, por Manuel Belchior (1)

Mário Beja Santos

Manuel Belchior, já aqui abordado a propósito dos seus livros Contos Mandingas e Os Congressos do Povo da Guiné, era funcionário colonial com habilitações superiores, uma longa carreira administrativa no Ultramar Português (de 1938 a 1961), depois foi investigador da Junta de Investigações do Ultramar, em serviço da qual se deslocou à Guiné numa missão que está na base que tornou possível a publicação deste livro. "Grandeza Africana" foi editado pela Mocidade Portuguesa, não se menciona a data. A capa e as belíssimas ilustrações são de José Antunes. 

No Gabú, contatou o régulo Alarba Embaló, descendente dos Embalocundas, que governaram durante muito tempo o Gabú unificado – o régulo Monjur era descendente desta família. Alarba Embaló deu meios a Manuel Belchior para ir conhecendo narrativas orais transmitidas de geração em geração, neste caso o repertório envolve duas importantes etnias, Fulas e Mandingas. Como escreve o autor, 

“As primeiras lendas que vão seguir-se têm o seu cenário longe das fronteiras da nossa Guiné, no velho Mandem (foco original dos Mandingas) ou no reino Fula de Maciná, e os personagens nelas referidos viveram, segundo a cronologia estabelecida por escritores e viajantes árabes, entre os séculos XIII e XV. Quanto às últimas lendas, já se passam no nosso território ou nas regiões vizinhas e narram factos ocorridos no século XIX. As lendas do Mandem e do Maciná são património histórico e intelectual tanto dos Mandingas e Fulas da Guiné Portuguesa, como dos indivíduos das mesmas etnias que se espalham por vários Estados africanos onde, se tomarmos os dois povos em conjunto, chegam nalguns casos a constituir a maioria das respectivas populações (Mali e República da Guiné) ou importantes minorias (Senegal, Nigéria, Camarões)”.

A primeira lenda diz respeito a um herói cuja memória ainda vive em toda a África Ocidental, Sundjata Keita, aquele que haveria de ser o fundador do Império do Mali, filho do rei de Mandem. Nascera paralítico, foi sujeito a uma operação miraculosa, revigorado, afrontou o usurpador, Sumaôro, que morreu em combate. Manuel Belchior aproveita a ocasião para explicar a importância dos cantores-tocadores de korá, os “judeus”. 

Em notas de rodapé, observa que Sundjata Keita venceu o rei Sôsso Sumaôro em 1225. O Império do Mali foi fundado por Sundjata e substituiu o Império de Ghana. Segue-se a lenda do cavalo Indjaru, observe-se a importância que a fauna e a flora têm nesta esplendorosa narrativa oral, mas fala-se também da fidelidade e da inveja. Ter cavalos era prova de poder e riqueza, mas a tripanossomíase destruiu a generalidade das manadas de cavalos. A terceira lenda tem a ver com uma águia, e pela sua trama sente-se a influência da cultura árabe:

“Um dia, uma águia, poisada no ramo mais alto do mais alto poilão, pôs-se a cantar os feitos do herói Gueladge. Eis o que dizia a rainha das aves: Gueladge, filho de Ambodejo, rei de Maciná, tinha um primo chamado Bubo Gorgolo, nascido da única irmã do seu pai. Bubo era valente e ninguém o igualava em beleza mas não tinha a generosidade nem a irradiante simpatia de Gueladge. Além disso, invejava o primo que, pelo contrário, era verdadeiramente seu amigo”. 

Podemos antever o desfecho e a moralidade e Manuel Belchior aproveita a ocasião para um comentário antropológico: 

“Ainda que entre os Fulas fossem reguladas pelo tipo de sucessão patrilinear, a herança do trono obedecia, pelo contrário, à regra da sucessão matrilinear. Deve ter-se dado a certa altura nos costumes Fulas uma alteração que tornou obrigatória a aplicação do sistema patrilinear à sucessão dinástica e é possivelmente esta modificação que esta lenda quer evidenciar”.

A lenda seguinte intitula-se Garba. Um pastor, durante a atividade de pastoreio, adormeceu e acordou ouvindo uma estranha canção que se elevava das águas, a partir daí não se quis afastar muito da lagoa, era um génio que a habitava, o autor da melodia. O pastor pediu ao génio que lhe desse um instrumento igual ao seu, era uma espécie de violão de quatro cordas. 

E logo se entronca outra história, o nascimento de duas crianças, filhas do patrão e de um escravo, é inevitável uma situação dramática, neste caso enfrentar o medo, uma temível cobra, toda esta moralidade para anunciar a independência do Maciná e Manuel Belchior fala também no simbolismo dos sentimentos da amizade que uniam os Fulas livres (Forros aos seus cativos cujos descendentes são conhecidos por Fulas-Pretos.

Nova história, desta feita com o título Bassaru, sempre com a musicalidade e a construção próprias para captar as audiências:

“Houve em tempos, no país Bambarâ de Segú, um rei chamado Semba Segú (força de Segú). Um dia, Semba, que já estava velho, mandou o seu filho Damansôa fazer uma correria às terras de Manciná, com o fim de obter escravos. Entre os que o príncipe trouxe, figurava um rapazito Fula, chamado Bokarjá”

Surge um sentimento afetivo entre a filha do príncipe e Bokarjá, há uma série de guerras entre o reino de Segú e o de Bassaru, este rei impunha pesados tributos a Segú, inevitavelmente é Bokarjá que derruba o déspota, o herói Bokarjá foi compensado.

Chegou o momento de falar de outra figura de renome, ainda hoje na boca dos tocadores-cantores, Coli Tenguelá, estamos em tempos recuados, um dos adivinhos do rei Samódo avisou-o que uma das suas mulheres que estava grávida ia dar à luz a criança que espantaria pelos seus feitos todo o imenso Sudão. Temendo que os outros filhos matassem o seu mais recente filho, entregou a mãe ao cuidado de um “judeu”, já estamos a ver como irá despontar o futuro herói. Teixeira da Mota referiu-se sempre ao conquistador Coli Tenguelá, que viveu no tempo do rei português D. João II.

Como o leitor pode constatar, avançamos do passado remoto para factos que ainda hoje são contados e lembrados: o reino de Alfá Moló, que compreendia territórios que pertenceram a ingleses (Gâmbia), franceses (Senegal) e portugueses (parte da Guiné Portuguesa), que acabou com o seu filho Mussá Moló, que nos primeiros anos do século XX foi destituído pelos franceses do Senegal; a batalha de Cam Salá, determinante para impor a supremacia Fula sobre os Mandingas do Gabú; a canção de Quelé Faba, que era natural de Badora e era considerado o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabú, esqueceu-se do juramento de que nunca voltaria a cara para trás, e segue-se uma história de redenção; Samory Touré fala da história de uma mulher que era desprezada e que deu a um homem riquíssimo um filho que ficaria conhecido, Samory Touré, que enfrentou os franceses, foi preso e deportado em 1900, Sékou Touré era sobrinho-neto do protagonista desta lenda; Fodé Cabá, homem de grande cultura, que tratava as suas duas mulheres de modo desigual e quando descobriu que a que tratava menos bem era inequivocamente a mais fiel anunciou-lhe que esperava que ela lhe desse um filho que fosse o orgulho da raça Mandinga…

Vale a pena continuar, mas já agora um apontamento sobre este Fodé Cabá que é contemporâneo (final do século XIX) do triunfo do Islamismo no imenso Sudão e na África do Noroeste, ele pretendeu a conversão dos Djolas animistas, lançou-se contra eles, o seu poder cresceu sem cessar. E ir-se-á dar um afrontamento entre Mussa Moló, rei de Firdú e Fodé Cabá, mas o significado destas disputas inter-étnicas é que todo aquele mundo estava em vias de desaparecer, os franceses arrasaram toda a oposição, estes senhores poderosos ficaram para a lenda.

(continua)

Ilustrações de José Antunes

10 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Beja Santos,

Obrigado por esta bela narrativa das epopeias mandingas e fulas do que foi o Mali (Sudao Ocidental) do antigamente.

Informar também que, contrariamente ao mito espalhado por adeptos de Sekou Touré, na verdade este nao tem nenhuma ligaçao de parentesco com o antigo Soberano e imperador Samory Touré, salvo a coincidéncia no apelido que ele ou seus seguidores aproveitaram para fins de propaganda politica. Ele é tao neto e descendente de Samory como eu sou de Moussa Molo Baldé. Muitas vezes as aparencias iludem. O fenomeno Sekou Touré nao passou de um usurpador aproveitando a ignorancia do seu povo e do mundo sobre a sua verdadeira linha genealogica para aproveitamento politico.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

No tempo em que me interessava por este tema, comprei o livro de Manuel Belchior "Contos Mandingas".
Na mesma colecção ainda comprei os dois volumes de "Contos Portugueses do Ultramar".
Os Contos Mandingas eram muito interessantes para quem tinha estado na Guiné. Não sei como é que o autor fez aquela recolha. Nunca encontrei - mandinga ou de outro grupo - que conhecesse a contasse contos do seu povo. Alguém sabe?
Ora informem se conheceram alguém que contasse contos/histórias populares, onde quer que fosse de qualquer que fosse o grupo étnico.

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Afinal,foram funcionárias coloniais como Manuel Belchior e António Carreira,a par dos missionários, que se interessaram pela etnografia guineense... E ainda bem,para todos nós, hoje.O conhecimento não tem dono.


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mas será que é estes homens dominavam as línguas locais, o mandinga, o fula, o balanta?

E será uma pena que estas línguas possam desaparecer dentro de duas gerações. Os filhos do Cherno Balde falam fula mas já não na luta... E os netos ?

Mantenhas.








Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mas será que é estes homens dominavam as línguas locais, o mandinga, o fula, o balanta?

E será uma pena que estas línguas possam desaparecer dentro de duas gerações. Os filhos do Cherno Balde falam fula mas já não na luta... E os netos ?

Mantenhas.








Cherno Baldé disse...

Caros amigos Luís e Tozé,

Nas sociedades africanas toda a educação e transmissão de conhecimentos sobre o passado, presente e o futuro fazia-se por via da oralidade, através de contos e de lendas bem construídas onde se misturavam partes da verdade histórica com muita ficção e onde cada povo tinha seus próprios herois de acordo com a capacidade criativa de cada um. Nesse particular, o povo mandinga é especialista, aliás é o povo "Djidiu" especializado na arte criativa de "re"construir histórias e lendas através dos seus "Djidius" Trovadores profissionais cujas linhagens ainda hoje fazem valer sua vocação artística e musical. Já o fula é diferente, a sua vocação primeira é o trabalho, de preferência a criação de animais que ele percebe como ninguém. A sua vida é solitária, muito individualista e agarrado a sua família e bens. Mata-lhe mas não toque nas suas vacas. Não tem tempo para se dedicar a arte e muito menos para a música e a poesia. Mesmo quando se transformaram em donos do Chão e soberanos os seus "Djidius" e interpretes continuaram a ser mandingas pois, para eles, era de todo indigno abrir a boca e gritar a frente de uma multidão e muito menos dançar. O fula é o orgulho em pessoa ao mesmo tempo que detesta a vaidade e a gula.

Ambos os grupos fula e mandinga são originários da mesma região e ambos já tinham abraçado a religião islâmica antes de chegarem as terras que hoje constituem a Senegâmbia. A agudização das suas relações e contradições são de natureza politica e económica, mas que também foram exacerbadas pelas manobras das potências coloniais no auge da politica e económica sobre os territórios em disputa no séc. XIX.

Antes de frequentar a escola já tinha ouvido contar em casa todos esses contos que aparecem no livro do Belchior que eu só vim a conhecer no inicio dos anos 70. Na zona Leste da Guiné, toda a gente conhece, pelo menos da minga geração para trás.

Caro Luis Graça, infelizmente e com grande desgosto dos meus pais, as minhas crianças não sabem falar fula e o entendimento que têm é muito fraquinho. No meio de tantas prioridades e pelo facto de sermos um casal misto e urbano não facilitou esta aprendizagem. Na verdade, pensando no futuro imediato, investimos mais nas línguas estrangeiras do que as maternas. Enfim a vida é curta e não se pode fazer tudo, ao mesmo tempo.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Cherno, é uma escolha difícil, é uma tarefa delicada, a educação dos nossos filhos: no meu tempo, a prioridade da aprendizagem das lingúas estrangeiras ía para o francês (além do latim, base das línguas românicas...).

O francês era, desde o séc. XVIII, a língua culta por excelência, a língua das luzes...Depois com a hegemonia da América, com a Internet (que surge no princípio dos anos 70), e a globalização, o inglês tornou-se a língua estrangeira nº 1, nas nossas escolas...

A geração dos meus filhos ainda fala, além do inglês, o francês, o espanhol, o italiano...De resto, o programa Erasmus (, nomeadamente o apoio ao intercâmbio no ensino superior) obriga os jovens europeus a aprender mais do que uma língua estrangeira... O meu filho, médico, fe em ano em Florença, Itália... A minha fiha, psicóloga, fez aum ano em Liêge, Bélgica...

Como sabes, os portugueses falam não extamente o latim, a língua dos conquistadores e colonizadores rmanos (séc. III a.C.) mas o português, que veio do latim...Nenhuma língua falada no Lusitânia na época da conquista romana chegou aos nossos dias... Eram línguas sem escrita... Infelizmente é o que se vai passar com a maior parte das línguas faladas hoje por "minorias"...

Em Portugal, há duas línguas oficiais: além do português, há o... mirandês (uma língua asturo-leonesa falada nordeste do país nos concelhos de Miranda do Douro, Vimioso, Bragança e Mogadouro). Terá no máximo 20 mil falantes...

Mesmo o crioulo de Cabo verde, falado pelos portugueses de origem cabo-verdiana, ou da comunidade migrante cabo-verdiana, tende a desaparecer, entre mais jovens, com muita pena minha...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O que é isso de lusofonia?
O que é isso de PALOP?
Através destes textos fica demonstrado que o idioma português deu o que tinha a dar e os idiomas local e efectivamente falados tenderão a impor-se a menos que seja decretado que o português ou brasileiro são obrigatoriamente ensinados e usados nos países que emergiram independentes. Por mim, prefiro assim. O facto de haver uma grande sobreposição - normalmente formal - entre idiomas não pode constituir um único, nem pode permitir que algum se sobreponha aos outros e muito menos por via de um "acordo". Era de calcular que isto iria acontecer nos países africanos e em Timor, especialmente porque os africanos sempre falaram línguas sem expressão escrita. O téctum tem uma expressão parecida com o crioulo, segundo vi nos outdors nas eleições do presidente Matan Ruak.

Um Ab.
António José Pereira da Costa

Antº Rosinha disse...

Mais uns 40 anitos de guerra fria, com uma União sovietica a bater o pé em África, e na Europa aos americanos, e a lingua portuguesa e assim como a francesa, ficava com muito mais resistência ao inglês.

Os soviéticos davam uma proteção muito grande ao português na Guiné e em Angola com tradução e divulgação nesses países de todas as suas propagandas e doutrinas traduzidas para português, e divulgação pela CAMINHO; a preços simbólicos, em livros de bolso, e propagandas nas rádios nacionais dos paises de leste em português de portugal e do brasil, ou seja vezes dois.

Contra minha vontade, gostei de uns tantos soviéticos em Bissau e no Gabu que conheci, quando da perestroica, e falavam um português porreiro.

Li muita coisa da Caminho a 1 conto, (preco de um papo seco)em Bissau, desde traduçoes sovieticas, até Saramago muito antes de ser Nobel, graças à guerra fria.

De certa maneira tenho pena que a guerra fria arrefecesse tão cedo.

Mas em Angola o português já não foge, fica como ficou no Brasil.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

"Mais uns 40 anitos (pelo menos) de guerra fria, com uma União soviética a bater o pé em África e na Europa aos americanos, e a língua portuguesa e assim como a francesa, ficava com muito mais resistência ao inglês" Espantoso!...
Conclusão: foi uma chatice a Guerra Fria ter acabado tão cedo.

Não compreendi, mas não faz mal...

Um Ab e boa Páscoa para todos
António J. P. Costa