sábado, 3 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22063: Os nossos seres, saberes e lazeres (444): Quando vi nascer a Avenida de Roma (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
No princípio era o Verbo, o Verbo foi a chegada à Rua António Patrício, chegar, ver e vencer. Dizem que a nossa infância tem muito de aborrecido, dei pouco por isso, com uma mãe daquelas, combativa e solícita, falando sempre verdade quanto às nossas dificuldades, ensinando-me cedo as regras da autonomia, com aquele olival em frente de casa, talvez ali plantado nos tempos do Sr. Marquês de Pombal, as brincadeiras, os amigos de todas as proveniências, a escola, a Biblioteca Municipal das Galveias, com o Mosquito, o Cavaleiro Andante e o Mundo Aventuras, a geografia em plena ebulição, ver aquelas artérias rasgadas, as alterações do comércio e os primeiros vagidos da sociedade de consumo. Assim aconteceu na minha infância e adolescência, num bairro configurado em linhas morais do Estado Novo, casas grandes para famílias grandes, até chegar ao que hoje designamos por T2, e que podiam ser casais com dois filhos. Muitos funcionários, no meu prédio havia alguém ligado ao Sindicato dos Caixeiros, outro nos serviços administrativos no Hospital Júlio de Matos, uma enfermeira-parteira, um funcionário das atividades económicas, que nos alegrava os fins de tarde a dedilhar o piano com valsas nobres e sentimentais. E tudo muito próximo, um elétrico punha-nos até á entrada do Lumiar em 18 minutos, autocarros que vinham da Encarnação até ao Cais do Sodré, seguiu-se o metropolitano que ligava Entrecampos aos Restauradores, a malha alargou-se, vimos nascer a Cidade Universitária, a Biblioteca Nacional, desapareceu uma fábrica de têxteis e apareceu um quartel, hoje edifício da Lusófona. E preparem-se, serei naturalmente excessivo nos epítomes e litanias ao frondoso Campo Grande da minha meninice. E afinal tão próximo da Avenida de Roma.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (2)

Mário Beja Santos

Cheguei às quintas do Visconde de Alvalade em 8 de março de 1952, a rua de nome António Patrício, diplomata e escritor assim-assim, praticamente esquecido, coube-nos um rés-do-chão no n.º20, neste roteiro de memória fixo a imagem do n.º 12, do rés-do-chão esquerdo saía pelas 8:10, 8:15 da manhã o Luís Filipe Salgado de Matos, recentemente falecido, estávamos na mesma turma do Colégio Moderno, eu esperava-o à porta do n.º 20, lá íamos à galhofa Campo Grande fora, às vezes fazíamos paragem no regresso numa biblioteca municipal ao ar livre num espaço onde atualmente há um amplo ginásio, perto de um lago que na nossa juventude estava pejado de cisnes e belo arvoredo envolvente. Muitas vezes fui lanchar a sua casa, a mãe do Luís Filipe, de nome Maria Luísa, gostava muito de mim, eu gostava muito da companhia do Luís Filipe, inteligente e bom conversador.

A zona residencial cheirava a fresco, tinha aquele contraste um tanto grotesco de haver uma quinta com muros ainda setecentistas encostados ao alcatrão, comércio não havia, virá mais tarde com os prédios verdes, quando nascer a Avenida dos Estados Unidos da América, Avenida de Roma abaixo até à Praça Mouzinho de Albuquerque. Descia com uma lista de compras até à Rua de Entrecampos, era a via comercial por excelência do tempo, ali se ferravam equídeos, havia drogarias, a ampla mercearia de esquina com a Praça Mouzinho de Albuquerque, cabeleireiros, um talho de carne de cavalo, um sapateiro remendão, e muito mais. A miudagem entretinha-se nas suas brincadeiras quer no olival, o remanescente da quinta ao abandono, que confinava cá em baixo, já junto da esquadra com os armazéns que irão desaparecer quando o novo projeto arquitetónico ocupar a velha quinta e plantar ali a Clínica de São João de Deus. Lá para cima, é a Avenida de Roma, tem curiosamente ainda casas do bairro, já lá iremos.

O que agora se impõe referir é que eu andava frenético, viera a meio da primeira classe, supliquei à minha mãe para irmos prontamente até à Escola Primária n.º 151, que hoje dá pelo nome de Escola Básica dos Coruchéus, situada entre a Rua Mário de Sá Carneiro, Rua Fernando Pessoa e Florbela Espanca, queria a tempo e horas retomar os estudos. Caiu-me a alma aos pés, acompanhei a minha mãe, todo ufano, tinha uma sacola feita pela minha avó, livros e cadernos, uma ardósia, lápis e giz. A diretora foi categórica, só podia voltar em outubro, ainda não tinha completado os 7 anos, fiz berraria, pedi à minha mãe para voltar para Algés para acabar o ano letivo, o que é que eu ia fazer até outubro, a minha mãe sossegou-me, não era por acaso que se diplomara no Magistério Primário, pôs-me a fazer cópias e contas, trabalhava na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, muitas vezes levava-me e deixava-me no serviço de registo dos recém-nascidos da Maternidade. Ali ficava sentado a ouvir uma senhora de nome Natércia a convocar para o registo seres humanos que vinham com ar feliz ou infeliz, comecei a ouvir falar em mães solteiras, vi pais desgostosos, parecia que aquelas crianças em vez de ser uma fonte de alegria tinham vindo ao mundo para ser um estorvo, a Natércia depois de pedir a identificação aos pais ia preenchendo a certidão, fazia a leitura em voz alta, os presentes assinavam, saíam felizes, menos felizes e até contrafeitos. E assim foi passando o tempo e no início de outubro entrei na escola, conhecia muitos dos miúdos, um grosso era totalmente desconhecido, era a malta de Telheiras, de pé descalço, roupas remendadas ou adaptadas de gente mais crescida, calções com fundilhos, adoravam a escola porque havia uma cantina que dava as refeições sociais, uma sopa bem adubada, um bom carquejo com torresmos e uma peça de fruta, ao findar a escola um lanche, um leite com cevada e pão com talisca de marmelada. Guardei a alegria destes meus companheiros que viviam na miséria, esta comida era-lhes uma bênção.
A minha professora era a D.ª Emília Santos, sempre com o ponteiro na mão, não admitia graçolas. Com os meninos de Telheiras e a malta do bairro mal sabíamos que estávamos a aculturar-nos. Como se fosse hoje, estou a ver a D.ª Emília no estrado em frente ao quadro a garatujar uma sofisticada subtração, houve um ruído insólito, um verter de águas, virou-se de chofre e apanhou o Hermenegildo em flagrante, a parede fumegava urina. “Tu és um selvagem Hermenegildo, porque é que não pediste para ir à casa de banho?”. E o Hermenegildo, com cara de caso, respondeu-lhe com toda a inocência: “Eu estava à rasca Senhora Professora, ou mijava agora ou sujava-me nas calças!”. E D.ª Emília Santos parecia apoplética: “Meu bruto, para que é que se fizeram as casas de banho?”. E o Hermenegildo replicou com a candura e a sinceridade que o timbrava: “Lá em casa não há casa de banho, Senhora Professora!”.

Esta é a minha escola, em bairro novo a crescer no meio dos descampados, confluem filhos de operários com a pequena burguesia, os meninos de Telheiras vêm de autênticas alfurjas em quintas decrépitas e das azinhagas para lá do Campo Grande.

O discurso da D.ª Emília é para ser tomado a sério, muito do que ela verberava eu já tinha ouvido à minha mãe: a escola serve para inculcar valores, roteia-nos para os princípios, aqui iremos descobrir que pertencemos a um povo com imensa História, que os Portugueses estão espalhados pelo mundo. Aqui aprende-se que a Pátria é coisa que não se discute. Primeiro vamos aprender a língua pátria, dominar as vogais e as consoantes, descobrir os sons que envolvem as sílabas, martelar, articular, abrir e fechar, dou um exemplo: “É um dia de verão. Faz muito calor. Os ceifeiros, curvados, ceifam as cearas. Com as foices cortam os caules. Os carros levam os cereais para as eiras”.
Mal acabava a escola, íamos fazer o reconhecimento das redondezas. Naqueles primeiros anos da década de 1950 este edifício filipino era um pardieiro, aqui os varredores guardavam os seus carrinhos de mão, pás e vassouras, estava tudo decrépito. Anos mais tarde esta região dos Coruchéus embelezou-se com a construção de estúdios destinados a artistas, ainda lá estão e espero que beneficiem muitos e talentosos artistas. O bairro tinha uma curiosidade que nos facilitava a exploração: caminhos alcatroados, uma verdadeira rede arterial entre todas as ruas. Aqui há uns dias atrás, subi com a minha neta a Rua Violante do Céu, junto do antigo cinema Alvalade, passámos pela Escola Primária N.º 33, onde também a minha mãe deu aulas na Campanha Nacional de Educação de Adultos, e andámos por esses caminhos, passando por ruas transversais da Avenida da Igreja, fui-lhe mostrando jardins aprimorados ou desmazelados, outros transformados em arrecadações e até reconheci um pombal, tivemos um nas enormes traseiras da Rua António Patrício, que dava para os jardins da Escola Primário N.º 151.
A minha mãe encontrou rapidamente uma solução financeira para os seus pesados encargos em função do seu magro vencimento de segunda oficial da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Aceitou em horário pós-laboral entrar na Campanha Nacional da Educação de Adultos. E a primeira ocupação que lhe saiu na rifa foi na Fábrica de Borracha Monsanto, na Rua do Centro Cultural, era a artéria do Bairro vocacionada para ter edifícios de escritórios, armazéns, fábricas e até igrejas. Subia-se a Rua Acácio Paiva, transversal da Avenida da Igreja, passava-se o Clube Atlético de Alvalade (onde hoje faço ginástica de manutenção) e do lado direito havia a fábrica, guardei o cheiro da borracha e a indizível alegria de um operário, vestido de fato-macaco, todo brunido depois do seu duche, as mãos enegrecidas e gretadas a percorrer as linhas, e num dado momento formou a palavra esperança, foi silabando e quando acabou olhou para a minha mãe como se lhe tivesse sido dada a notícia do nascimento de um filho, abria-se uma janela para a sua autonomia, para voar mais livremente. No regresso a casa, a minha mãe comentou: “Habitua-te, filho, são estes momentos da vida que nos fazem esquecer todo e qualquer sofrimento”. Muitos anos mais tarde, quando viver na Avenida do Brasil, percorrerei esta rua com duas filhas pequenas e o cão de nome Golias, vamos até à Avenida Rio de Janeiro visitar um poeta octogenário, José Gomes Ferreira, um amigo do coração.
Esta imagem é recente, dá conta como tudo mudou, entaiparam-se os velhos caminhos que permitiam circular resvés os quintais, do lado direito o muro da escola, descíamos a caminho de um espaço onde jogávamos à bola ou ao berlinde, passávamos ao lado da secção feminina, a separação de sexos era obrigatória, a convivência impossível, mesmo na partilha de jogos.
Temos aqui prédios do Bairro Social de Alvalade na Avenida de Roma. Nunca entendi a organização do Bairro, o que é hoje a Praça do Santo António estava destinado a ser um grande pavilhão polivalente, outros interesses se sobrepuseram, de modo que há um lado da Avenida da Igreja dominado ainda por construções do Bairro Social, do lado de lá, em direção à Igreja de S. João de Brito já é outro tipo de construção, mas nas ruas transversais mantém-se a lógica do Bairro Social, um pouco como se irá encontrar na Avenida Rio de Janeiro.
Sempre me acicatou a curiosidade este edifício contíguo ao último prédio do Bairro Social na Avenida de Roma, em direção à Praça do Santo António. Vi-o nascer e cedo me deixei surpreender como é que aquele caixote de cimento ganhara uma outra dimensão com a estrutura posta no 1º andar, trata-se de um detalhe, seguramente económico, que deu outro caráter à construção, ainda hoje contemplo com emoção, está perto do que foi a Pastelaria Sul América, atravessando a rua resta uma relíquia dos primeiros tempos, a Pastelaria Jacaré Paguá.
Importa explicar o porquê desta imagem, não tem nada de atrativa. Mas foi neste ponto que lá de baixo, bem pertinho da estátua dedicada aos Heróis da Guerra Peninsular, vimos os caterpílares, iam começar a escavacar o olival, terraplanou-se toda a estrada até ao Campo Grande, o resto veio por acréscimo, estas quatro belíssimas torres que enquadram o cruzamento, muito mais tarde os prédios verdes do lado direito, e a construção igualmente moderna mas com outros toques de inspiração do lado esquerdo, não se vê, encostada a uma parede ergueu-se um cinema com filmes de culto, o Quarteto, quatro salas, quatro filmes, descia-se em direção ao Bairro de S. Miguel ou subia-se em direção à Avenida de Roma.
Por último, uma referência a quem, construída a Avenida dos Estados Unidos da América, veio habitar por estas paragens. Eram declaradamente quadros, gente de posição, paravam o carro e saía o general Arnaldo Schulz, parava outro carro e saía o maestro Frederico de Freitas, também nos prédios verdes vivia José Estevão Sasportes, mais tarde ministro, mas que era um estudioso da dança, frequentador das tertúlias do Vá Vá, onde se encontravam gente ligada à Poesia 61, ali pontificavam Eduardo Prado Coelho e Laura António. Vamos voltar à Rua António Patrício e passar à Avenida de Roma, vê-la nascer e crescer.
(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22043: Os nossos seres, saberes e lazeres (443): Quando vi nascer a Avenida de Roma (1) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: