sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Num estado um tanto lastimável, em desnorte, Paulo Guilherme parte para Bissau, nem lhe passa pela cabeça o que é uma cura de sono num hospital militar, metido num quarto com um capitão que pediu uma evacuação Y porque se esquecera de enviar nesse dia correio para a mãezinha e outra parentela, e um furriel que tivera a sorte bendita de pisar um sistema de minas antipessoal, andou pelos ares, não perdeu uma nesga de carne mas ficou frenético, não havia soporífero que o domasse; assistir-se-á a visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino que deixarão umas revistas puídas e alguns aerogramas; sob o olhar severo de um 1º cabo que se vangloriava de ter algumas coristas por conta num inesquecível Parque Mayer; e aquele trágico espetáculo que era a corrida de doentes de toda a espécie até à varanda para ver chegar qualquer helicóptero, para medir o estado de quem chegava e fazer a comparação dos aleijões, às vezes suspirando de alívio porque a contabilidade soprava a seu favor... Pois foi assim, para além de se ter sentado numa cadeira de dentista, ter tirado montanhas de porcaria dos ouvidos e ter tido o regozijo de o novo oftalmologista lhe ter assegurado que não havia danos nos olhos, os efeitos da mina anticarro tinham passado sem deixar marca.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo, mon adoré, mon Ulysse, estou quase a partir para Lisboa, o número de reuniões tende já a diminuir, disse-me o meu coordenador que de sexta-feira a oito dias é o último dia de trabalho, estarei três dias no Luxemburgo e até lá andarei por diferentes edifícios das instituições, reuniões da Comissão e do Parlamento. Telefonou-me a proprietária da galeria Tempera, Chantal de Elsouth, referindo que aguarda a tua decisão quanto à compra de uma das duas obras de Frédéric Brigaud, um bronze onde se vê a figura de um coelho e um desenho a grafite intitulado Cabeça de Herói. Vê se me comunicas rapidamente o que pretendes comprar, irá comigo até Lisboa.

Foi com muito agrado que recebi a tua encomenda com o livro Postais Antigos da Guiné, com uma linda dedicatória do autor, João Loureiro, tu dás a explicação de que é a maneira mais óbvia de ele conhecer a cidade de Bissau por onde circulaste durante aquele mês de abril de 1970. Juntaste um conjunto de folhas com matéria explicativa de tudo o que consideras mais relevante sobre este período em que tiveste a circunstância de te recompor psicologicamente, mesmo contrafeito pelo internamento na Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Pouco antes de partires para tratamento, andaste pelos Nhabijões com um príncipe de nome Xisto Bourbon-Parma, que dizes ter sido muito gentil e muito perguntador, vinha como repórter, tinha como fito avaliar os reordenamentos planeados pelo governador. Juntas várias imagens dos Nhabijões com dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo os antigos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga. Já tinhas referido haver sucessivos patrulhamentos a montar segurança ao empreendimento, dizes nos teus apontamentos que só meses mais tarde é que a guerrilha começou a implantar minas anticarro, mas não tinhas dúvidas que as populações de Madina-Belel e Baio-Buruntoni mantinham relações familiares amigáveis, quem vivia no mato queria abastecer-se de víveres e informações. Referes igualmente nestes apontamentos que não foi uma nem duas vezes que encontraste nos terrenos a beijar o Geba embarcações camufladas e indícios seguros da presença humana.

Em notas separadas, envias o registo dos teus dias a partir de 14 de abril: reunião com os furriéis para apreciar os pagamentos às praças, as trocas de fardamento, a chegada de novos equipamentos que vinham substituir o que já estava por um fio. Receberas a garantia do major de operações de que o teu pelotão ficaria seja na ponte do rio Undunduma, ou a apoiar colunas ao Xitole ou a fazer patrulhamentos dentro do setor, não haveria participação em operações de grande porte. E gostei muito daquelas duas folhas em que tu mencionas o que te vai na mente enquanto viajas de Bambadinca para o aeroporto de Bafatá, aquela intensa e viva rememoração do que se tem passado na tua vida desde que foste classificado como ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, parece que foi ontem, te adaptaste a viver lá num mato profundo do leste da Guiné, que um dia te ardeu um quartel, terá sido talvez o maior desafio da tua vida repor ordem, reconstruir, melhorar as condições de vida tanto dos civis como dos militares; que tinhas dois destacamentos para gerir com recursos mínimos, problemas graves de abastecimento para todos, constantes idas ao médico, assegurar professores para as crianças, os dias passavam vertiginosamente, continuava a ser um mistério como havia tempo para ler, escrever e ouvir música e que jamais esquecerias aqueles dolorosos momentos de lágrimas amargas pelos mortos e feridos; que um dia acordaste estremunhado e saíste do abrigo e tinhas o pelotão formado à porta para reivindicar mudança de poiso, queixavam-se daquele esforço quase desumano, aquelas caminhadas de 25 ou mesmo 50 quilómetros por dia, patrulhas e emboscadas e as operações também não faltavam, queriam sair do Cuor, como saíram, foi um abalo na tua vida, nunca te conformaste até ao fim da comissão com aquela pletora de intervenções multiusos, e sobretudo aquele punhado de operações que pareciam não ter pés nem cabeça, e assim chegavas àquele estado de desalento, à deriva como um pária, estranhamente sentias aquela fortaleza da camaradagem e fidelidade dos teus soldados, até mesmo da atmosfera agradável da vida entre oficiais e sargentos, em Bambadinca, só que o Cuor deixara saudades sem fim, quantas vezes desceste a rampa da Bambadinca só para ir ver o sol a caminhar para o acaso sobre o coberto florestal de Mato de Cão. Prometo-te, meu adorado amor, que tudo farei para pôr ordem em tudo quanto garatujaste durante esta viagem até embarcares para Bissau.

Fizeste bem em me teres enviado os aerogramas que mandaste à família logo que chegaste à cidade. Havia amigos que tinham partido, caso do Teixeira da Mota e do Botelho de Melo, mas sabias, e por eles nutrias uma forte dedicação e gratidão, que estavam no batalhão de engenharia o Rui Gamito e o Emílio Rosa, não foi por acaso que mal chegado a Bissalanca pediste uma boleia até Brá para os ires visitar, aquele tão estranho quartel feito de barracas Mague, umas estruturas metálicas com teto de lusalite, convidaram-te para almoçar, guardaste a recordação desses belos momentos. Depois deram-te transporte até à messe de oficiais, em Santa Luzia, onde deixaste os teus haveres e partiste à redescoberta da cidade. Tu descreves minuciosamente o primeiro passeio, felizmente para mim os postais organizados pelo João Loureiro ajudaram-me a compreender o que ias olhando e registando.

Apeaste-te na Praça do Império, e pela primeira vez entraste no edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau, acicatado pelas soluções arquitetónicas, dois arquitetos lançaram mão a soluções espaciais que criaram espaço desafogado, tendo por detrás uma área desportiva, com campo de ténis. Foste vagarosamente descendo a Avenida da República pelo lado direito, sempre a ver ao fundo o Pidjiquiti, passaste pelo Hotel Portugal depois de tomar uma bica no Café Império, passaste o mercado e entraste nos CTT, marcaste telefonemas para o dia seguinte, mudaste para o lado oposto e foste à catedral rezar, passaste sem parar pela Pensão Central e encaminhaste-te para um café de nome Bento, a que deste o estranho nome de 5ª REP, pediste uma água e observaste o bulício da esplanada, oficiais, sargentos e praças, sobretudo os que estavam em trânsito, bramavam aos gritos sobre tiros e desgraças, só faltavam os estampidos das minas e emboscadas. E depois de pagar foste visitar a pequena livraria que guardava surpresas, sobretudo de livros que a Censura tinha apreendido em Lisboa, folheaste cuidadosamente três ou quatro, amanhã por aqui passarás para comprar dois.

Mas o Cais do Pidjiquiti é irresistível, passas ao lado do Bissau Velho e ficas especado a ver as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, a linha do Ilhéu do Rei e a sua vegetação frondosa. E num desses aerogramas que envias para Lisboa dizes ter sentido um cansaço esmagador, convinha regressar, doía a memória, havia mesmo aquela inescapável sensação de culpa, o teu lugar era estar ao pé dos teus soldados e não a tratar maleitas, só sentiste alívio quando pensaste que a tua guia de marcha incluía oftalmologista, otorrino, estomatologista e, com que arrepio não soletraste, a neuropsiquiatria, o imperativo de recompor os sonos, naquele vendaval de insónias tão desgastantes.

Foi assim, meu adorado Paulo, que tu chegaste a Bissau, percorreste artérias já conhecidas, como dirás no outro aerograma, com aquela estranha sensação de que não há uma emboscada à espreita e de que não sentes o peso da espingarda. E ficamos por aqui, pois antes de partir para Lisboa ainda te vou dar conta de tudo o que viveste até chegares à tragicomédia da Neuropsiquiatria, espero que não fiques zangado se te disser que me fartei de rir com as facécias que escreves, mesmo sentindo arrepios quando tu contas a chegada dos helicópteros que trazem sinistrados e os estranhíssimos comentários daqueles militares que estavam contigo à varanda, alguns com membros amputados, fazendo as mais bizarras comparações entre o seu estado e quem chegava com a vida por um fio. Aguardo o teu telefonema, Jules e Noémie mandam-te saudades, Jules está impaciente pela sua semana de férias em Lisboa. Mas mais impaciente estou eu todas as doçuras da tua companhia. Bisous mils, comme d’habitude, Annette.


Restaurante Pelicano na Avenida Marginal, desaparecido
Associação Comercial Industrial da Guiné, sede do PAIGC
Edifício dos CTT na Avenida da República
Avenida da República, com o edifício da Casa Gouveia à esquerda, Bissau
Fortaleza da Amura
Edifício da alfândega, Bissau
Aqui funcionou o Museu da Guiné Portuguesa e o Centro de Estudos, bem como aqui se preparava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

8 comentários:

Valdemar Silva disse...

Vendo a fotografia "Av. da República, casa Gouveia à esq.", no lado direito entre arvoredo julgo ser o Grande Hotel e a seguir a Catedral de Bissau. Então a Pensão da D. Berta, com a loja da Agência de Viagens, ficava antes do Hotel e não aparece no imagem.
Seria assim?

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A Pensão Central,da Dona Berta, ficava na Av Amílcar Cabral (antiga Av República) (vd. mapa do Google)... Nûnca lá pus os pés. Não sei exatamente de que lado é que ficava avenida, mas penso que era do lado esquerdo, no sentido descendente...

O descritor "Dona Berta" tem 15 referências no nosso blogue...

Antº Rosinha disse...

Da varanda da Dona Berta foi tirada a foto do edifício dos correios, como os correios ficam em frente à Sé...essa foto só era possível dessa varanda.

O Grande Hotel, não fica nesta avenida, fica na paralela que hoje tem o nome de Pansau Na Isna, (não me lembro do nome colonial), nas costas da Sé onde fica também o hospital, hoje Simão Mendes, que vai dar a Santa Luzia.

O que o Valdemar vê do lado direito da avenida é apenas a torre da Sé mas o arvoredo não permite vislumbrar o que era a pensão das Dona Berta.

Hélder Valério disse...

As observações do António Rosinha estão absolutamente corretas.

Hélder Sousa

Valdemar Silva disse...

Rosinha
Obrigado é como dizes.
A minha confusão foi com a situação do Grande Hotel, estava convencido que também ficava na Avenida. Fui lá uma vez comprar uma "Fred Perry" e meteu uns bioxenes com água Perrier e deu-me no "esquecimento".

Abraço
Valdemar Queiroz

José Botelho Colaço disse...

As fotos activam-me a memória dos locais que conheci em 1964 mas passados quase 58 anos nomes das ruas a memória não regista e não resiste.Abraço.

Anónimo disse...

Poste 22508:
Não li ainda o artigo, mas aprecio estas belas fotos de Bissau. Parabéns ao seu autor.
Virgilio Teixeira, disse:
Perfeitamente Rosinha, subscrevo por baixo, conheço aquilo tudo.
O Grande Hotel ficava na outra rua fiquei lá algumas vezes hospedado, e jantei até com o Spínola - mesas distantes. Dali seguia-se na direcção de Santa Luzia.
Comprava muita coisa que não havia nas outras lojas, tipo, Polos Fred Perry, boas bebidas com produtos não comercializados noutras paragens.
A pensão da D. Berta na Avenida estive lá algumas vezes, um colega meu de infância, casou antes de ir para a Guiné e levou a mulher em Lua de Mel num avião civil para Bissau onde ficou na Pensão da D. Berta, onde me encontrei algumas vezes. Era o homem - oficial do CHERET, parece que se escreve assim.
Por baixo tinha uma gelataria, no mesmo lado, quem sobe à direita, depois do Bento, e da Catedral, depois tinha a Renault-Peugeot, onde comprei as minhas 2 motorizadas. Acho que a seguir havia a agência de Viagens.
Mais acima tinha a bomba de gasolina, parece que ainda era da SACOR, não sei a certeza, onde ia abastecer as motorizadas, depois a oficina de mecânico de motorizadas, o- cinema, e outros edificios que não me interessavam. e sempre a subir por ali acima até ao Palácio do Governador, na Praça do Nosso Império.
No lado contrário a descer, lado direito, era a zona dos cafés e esplanadas onde se petiscavam as ostras e outras especialidades, e acabava mais ou menos na Casa Gouveia -Depois chamaram-lhe Armazéns do Povo (vazios em 1984) - e caminhava-se até à marginal.
Eu acho que conheci Bissau (e arredores, Safim, Nachra, Quinhamel, Biombo, e por aí acima como ninguém) graças ao meu transporte privativo, e isto nos momentos em que lá passei, que eram frequentes, mas de curta duração.
Mais tarde - 15 anos depois de regressar, voltei a conhecer melhor, mas nada tinha mudado para melhor, as minhas fotos ainda não publicadas, retratam isso mesmo.
Bom fim de semana a todos os leitores destas pequenas crónicas avulsas.

Virgilio Teixeira

Em, 2021-09-04

Patricio Ribeiro disse...

Boas

O Grande Hotel...foi deitado a baixo a alguns anos...para obras que não aconteceram.
Mas agora recomeçam...esperamos que desta vez cheguem ao fim.

Nos ultimos anos em Bissau, nascera diversos hoteis,com muitos andares.

Abc