sábado, 4 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22510: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VI: A lenda de Djanqui Uali, o último Mansa Bá (imperador) do Cabú


Ilustrações do mestre Augusto Trigo (pp. 44, 45, 46 e 47)


1. Transcrição das págs. 43 a 48  do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > 
Lendas e contos da Guiné-Bissau


O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA, 
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


A lenda de Djanqui Uali 

(pp. 43-48)


O Mansa Djanqui Uali Sané quando chegou o seu tempo de ser Mansa Bá (Imperador) de Cabú, predisse que o Império de Cabú iria terminar.

Eu vou ser o último Mansa – disse ele.

Quando a guerra com o Futa Djalon (19) começou, Djanqui Uali enviou ao Futa Djalon uma embaixada, na qual se incluía um representante de cada um dos 32 Reinos sob o seu domínio, ou com os quais tinha alianças, mas a sua chegada ao Futa Djalon não foi bem aceite, e questionaram a embaixada:

– Como se atrevem a colocar um pé nas nossas terras, não sendo muçulmanos? Vão morrer por isso!

Perante o massacre dos embaixadores Djanqui Uali compreendeu que a guerra era inevitável, e reunido com os Mansas dos diversos Reinos emnCansalá, questionou-os:

– Como vamos responder a terem morto os 32 representantes que enviámos? 
– mas eles nada responderam, pois nenhum queria avançar para a guerra.

Segundo os marabus, quem derramasse o primeiro sangue em Cansalá perderia a guerra. Assim os fulas engendraram um plano, para que o primeiro sangue em Cansalá fosse derramado pelos mandingas.

Os fulas apanharam um macaco de cor avermelhada (orangotango), o qual deixaram vários dias sem beber, depois deram-lhe água numa tigela, mas a água tinha um mésinho misturado que o transformava num homem, embora as pessoas apenas vissem um macaco. Assim, após ele beber a água, bateram-lhe nas costas e disseram-lhe:

- Vai para Cansalá e sobe ao poilão sagrado.

Quando o macaco subiu ao poilão sagrado de Cansalá, causou grande confusão e temor, sendo confundido com um espírito maligno, pois nunca ninguém tinha visto um macaco daquela cor. Pensaram então que a sua presença no poilão sagrado, era uma ameaça para os espíritos que
protegiam Cansalá.

As pessoas perguntavam-se:

– O que trouxe este macaco aqui?

– O que trouxe este macaco ao nosso poilão?

Djanqui Uali disse-lhes:

– Não se preocupem. Este macaco vem do Futa Djalon, é o símbolo da sua traição, não vamos fazer-lhe mal.

Contrariando a vontade de Djanqui Uali, um tiro foi disparado contra o macaco, e o seu sangue foi derramado em Cansalá, traçando-se assim o fim do Império de Cabú.

No Futa Djalon, a água da tigela onde o macaco tinha bebido, tornouse vermelha, e os homens do Futa Djalon souberam que tinha sido derramad sangue em Cansalá.

Após algumas incursões, os fulas do Futa Djalon
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avançaram para Cansalá, com um poderoso exército de 40.000 homens, enquanto que Djanqui Uali tinha apenas 600 guerreiros.

Djanqui Uali era também um poderoso feiticeiro e as serpentes eram o animal da sua magia. Foram elas que o avisaram, que um poderoso exército fula estava a caminho de Cansalá.

Djanqui Uali enviou um dos seus filhos, para saber quais eram as forças do inimigo, para se poder preparar para a batalha, ao mesmo tempo que enviava pedidos de ajuda aos diversos reinos, dos quais nunca teve resposta.

O filho de Djanqui Uali cavalgou durante todo o dia, sem nunca conseguir ver o fim das forças inimigas, e quando Djanqui Uali lhe perguntou qual era o seu número, ele pegou com as duas mãos num monte de areia e respondeu:

– Os homens do Futa Djalon são tantos quanto os grão de areia deste monte, se alguém conseguir contá-los saberemos o seu número.

Djanqui Uali ainda enviou o seu sobrinho com a mesma missão, mas a resposta foi a mesma.
 
Face à desproporção de forças em confronto, Djanqui Uali optou por se defender em Cansalá. Na verdade as incursões anteriores dos fulas tinham bloqueado o acesso a Cansalá, e além disso, os seus irmãos mandingas, membros do clã Mané com quem estava em conflito, tinham-se aliado aos fulas.

Djanqui Uali preparou-se para a batalha e para morrer. Assim deu ordens para que pequenos grupos de várias profissões abandonassem Cansalá, pois queria preservar a sua história, o seu saber e a sua cultura.

Djanqui Uali sabia que não conseguiria vencer o exército fula, mas iria fazer pagar caro a sua derrota. A sua sorte seria também a dos atacantes, seria a destruição total, o fim da sementeira, o que na língua mandinga se designa por turubam.

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Os fulas cercaram a fortificada povoação de Cansalá e dispararam três tiros à chegada, e os sitiados responderam ao “cumprimento” com quarenta tiros.

Durante vários dias, os mandingas combateram com bravura e mataram muitos dos atacantes, mas o número destes era demasiado grande para poder ser contido, e os fulas começaram a transpor as rudimentares muralhas, construídas de madeira e lama.

Djanqui Uali perante a derrota iminente, chamou os seus filhos, e disse-lhes:

– Vou mandar abrir os portões, e quando os fulas entrarem todos, incendeiem a pólvora dos paióis.

Os portões foram abertos, e quando os fulas entraram, os paióis explodiram e todos os defensores morreram, mas os 40.000 soldados do exército fula ficaram reduzidos a 40.

Os 40 elementos do exército fula que 
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sobreviveram, foram perseguidos,  a maior parte mortos em emboscadas durante a sua fuga para leste. E assim, apenas sete guerreiros fulas conseguiram regressar ao Futa Djalon.

Apesar da derrota, os mandingas referem-se ao turubam Cansalá com orgulho, dada a valentia dos defensores de Cansalá.

Perto de onde era Cansalá, os portugueses ergueram a cidade de Nova Lamego, hoje em dia chamada Gabu, sendo a terceira maior cidade da Guiné-Bissau.

O local onde foi travada a batalha é agora um local sagrado, árido e infértil, onde vivem os espíritos.

O Império de Cabú caiu com a invasão fula, mas a sua história e a sua grandeza não foram esquecidas, e a sua cultura contínua viva e a ser transmitidas ao mundo, nomeadamente através de uma das suas invenções, o corá (20).

Esta é a lenda dos valentes guerreiros mandingas, que morreram em Cansalá (**). É uma das muitas lendas existentes, mas é uma versão mandinga da mesma, e como manda a tradição é cantada ao som do corá.

[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
___________

Notas do autor;

(18) Mansa Bá: era o título dado pelos mandingas aos Mansas que possuíam nos seus domínios poder sobre outros Mansas (Reis), a palavra bá em mandinga significa grande, dai o significado de Grande
Rei ou Imperador, por vezes, por lisonja os súbditos chamavam ao Rei, de Grande Rei, apesar de não o serem. Também existem referências a Imperadores chamando-lhes apenas de Mansa, o que é usual.
Os portugueses chamavam a todos eles de “Régulos”, o que significa pequenos reis.

(19) Futa Djalon: este reino fula situava-se na Guiné-Conacri (República da Guiné).

(20) Corá: é um instrumento musical de cordas parecido com uma harpa, tem 21 cordas, sendo 11 para a mão esquerda e 10 para a mão direita. A caixa de ressonância é constituída por uma cabaça, forrada com couro, e as cordas são de fio de nylon, mas antigamente eram de feitas de tendões de boi ou de couro de gazela. Embora o número de cordas seja normalmente de 21, pode variar entre 19 e 24.

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Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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Vd. postes anteriores da série:

26 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas

20 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22390: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte III: Lendas bijagós

10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22359: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II A: Comentário adicional sobre os balantas: "Nhiri matmatuc Fortunato. Nhiri cá ubabe. Nhiri god mara santa cá cum boim. Udi assime?"...Traduzindo: "O meu nome é Fortunato. Eu sou branco, não sei falar bem balanta. Percebes o que estou a falar?"... Uma conversa com Kumba Yalá, em Bissorã, a dois dias da sua morte, aos 61 anos

9 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22349: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte I: Vamos dar início a uma nova série, um mimo para os nossos leitores

(**) Vd. também poste de 15 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cam Salá ou Cansalá ? Qual a grafia correta ?

(...) A batalha de Cam Salá foi traumática para a etnia Mandinga que viu reduzido o seu poder em toda a região Leste, procedeu a uma emigração para a região de Farim – Binta, alguns milhares desceram até ao Sul. Esta lenda confirma a avalancha do exército Fula e o suicídio dos Mandingas que não suportavam a ideia de ficarem submetidos aos Fulas.(...)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2013/03/guine-6374-p11255-notas-de-leitura-465.html

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Grafia correta: corá, Cansalá... Korá, Kansalá...estão mal grafados. O "K" não faz parte do alfabeto da língua portuguesa...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Augusto Trigo (n. Bolama, 1938), um grande artista luso-guineense que importa conhecer, acarinhar e divulgar:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Trigo

Abilio Duarte disse...

Olá Luís.

Quando a minha Companhia, Cart./Ccaç.11, passou a quadricula, em Paunca, eu e mais uns curiosos, criamos a Radio Lacrau, eu só contribuía, com as cassetes e discos que levei daqui do pais das couves.

Outros como o Siva ( Furriel de Trans.), o Valdemar ,o Cunha etc. traziam ao nosso estúdio, que transmitia para as vales e abrigos, o nosso sinal.
E então, enquanto eu metia musica, havia sempre, um soldado fula, daqueles, que hoje se chamam talibans, pois eram gente educada e instruída, contavam historias dos seus antepassados, em fula.

Foi um sucesso, pois nos desconhecíamos todas aquelas guerras, entre Fulas e Mandingas.

Quando da instruçao em Contuboel, nao se podia ver , na aplicaçao militar, um Fula ou um Mandinga a cavalo noutro, e na corda, tinha que estar mandingas de um lado e fulas de outro, nada de misturas.

E nós sem conhecimento daquela realidade, para ali fomos armados em instrutores, e sem conhecimento, do que nos esperava.

Abraço.

Valdemar Silva disse...

Mais uma bela história de fulas e mandingas.
'...apanharam um macaco de cor avermelhada (orangotango)....'
O macaco de cor avermelhada não podia ser um orangotango, não há orangotangos em África.
O orangotango (pessoa da floresta, em malaio) é um primata das florestas da Indonésia, principalmente das Ilhas de Bornéu e Sumatra.

Duarte, nunca conseguimos obter a tradução daquelas histórias que os nossos soldados fulas contavam na nossa célebre Rádio Lacrau, em Paunca, e que os que estavam à noite na vala tanto gostavam de ouvir.

Abraço
Valdemar Queiroz
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, tens toda a razão, há aqui um erro de tradução: primeiro o Orangotango não é um macaco, é um símio, e depois não existe no Continente Africano, apenas nas ilha do Bornéu e Sumatra.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Orangotango

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não seria antes um macaco fidalgo vermelho (ou fatango, em crioulo) ?

Ou até talvez um "dari", chimpanzé.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A batalha de Cansalá (ou Cam Salá) travou-se em 1866. O local fica perto de Pirada...

Sobre o reino do Gabum vd. entrada na Wikipedia:

(...) O reino de Gabu (também conhecido por Kaabu, Ngabou ou N’Gabu) foi um reino mandinga que existiu entre 1537 e 1867, estendendo-se da região da Senegâmbia (mais especificamente a Casamansa, no Senegal, e o leste da Gâmbia) até o nordeste da Guiné-Bissau.

O reino deveu a sua ascensão na região graças à sua origens como antiga província do império do Mali. Após o declínio do Império do Mali, Gabu tornou-se num reino independente.

Mantinha capital em Cansalá, que actualmente corresponde a vila-secção de Camalija Durbali, no sector de Pirada, na Guiné-Bissau.(...) As quatro principais cidades do império eram Canquelifá (Kankelefa), Gabunto (Kabintum), Cansalá (Kansala) e Samaracunda (Samakantentensuto). As três primeiras eram as principais cidades natais do clã dos mansas que governaram o reino de Gabu durante esse período. (...)

https://pt.wikipedia.org/wiki/Reino_de_Gabu

Abilio Duarte disse...

Obrigado Luís,

Nós que andamos por aquelas paragens, na altura, desconhecíamos toda esta realidade.

Na altura, quem me viesse dizer, que por aquelas paragens, tinha havido Impérios e reinos,

sinceramente, não acreditaria.

Abraço.

Abílio Duarte

Anónimo disse...

Carlos Fortunato (by email)
5 set 2021 21:28

Olá Luís

Não sei responder com rigor qual era o macaco da lenda, a nota que coloquei que era um orangotango é pouco credivel, embora os portugueses tivessem chegado à Malásia nos anos de 1500 e este eventos tenham ocorrido em 1867, é altamente improvável que alguém tivesse levado um orangotango para o Futa Djalon, o que existe por ali com cor vermelha é o fatango ou fidalgo.vermelho, só conheço este, mas não se enquadra na lenda.

Na descrição que me foi feita, era um macaco vermelho que era uma pessoa, mas as pessoas só viam um macaco, isto não existe é uma fantasia da lenda, por outro lado era um macaco que as pessoas não conheciam (o fatango era conhecido), o mais parecido com a descrição seria o orangotango, mas aparecer por ali um deles não é credivel, por outro lado escrever que era um fatango, este não se enquadrava na descrição, o que me deixou sem poder ter o rigor necessário.

Achei necessário deixar uma nota para os leitores poderem visualizar o animal e optei pelo orangotango, pois poucos sabem o que é um fatango, teria que estar a fazer mais uma nota a explicar e quis tornar mais fácil a leitura.

É esta a razão da referência ao orangotango.

Mais uma vez obrigado pela colaboração do blog.

Aquele abraço e saúde.

Carlos Fortunato