terça-feira, 16 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10535: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (2): Como fui parar a Gadamael, por acção do meu pai e reacção do 'Paizinho' ...

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires, que bebeu a água do Rio Cacine e que, depois da passagem à peluda, deixou a Pátria em 1972, passando a viver desde então nesse grande país lusófono chamado Brasil...

Ficamos a saber que ele conheceu o nosso blogue em circunstâncias infelizes: no "estaleiro", em recuperação das sequelas de um acidente automóvel. 

Daqui de Angola, e com alguns problemas de comunicação com a nossa Tabanca Grande Global, aqui vai um afetuoso abraço para ele, desejando-lhe completa recuperação, e para os demais amigos e camaradas da Guiné, incluindo o Rosinha que está ansioso que eu lhe mande umas fotos da rua e da casa onde ele morou em Luanda...  Infelizmente, regresso já na 5ª feira, sem tempo para sair da "ilha" de Luanda, onde estou "prisioneiro" das 9 às 18h... (LG):


A CAMINHO DE GADAMAEL... Ou como a acção de meu pai e a reação do "Paizinho" me levaram lá.)

Caros Luis Graça/ Carlos Vinhal,

Estas mal traçadas linhas são a minha modesta homenagem à vossa coragem e determinação, para trazer à luz do dia, e administrar, tantas emoções de uma geração, guardadas lá no fundo do subconsciente (Valha- nos "São" Lacan!!!), moderando magistralmente tantas visões de uma realidade multifacetada.

É também uma oportunidade para eu agradecer a todos que me ajudaram a chegar de volta ao Aeroporto da Portela. Não poderia deixar de agradecer também a Maria Helena, que me acompanhou nos anos "pós-Guerra", e criou meus filhos.

Saí de Portugal, ainda no mesmo ano de 72, em que voltei da Guiné, e por aí vou andando até esta data, sou um desses milhões da multissecular diáspora Lusitana, que deve ter começado lá pelo século XV, quando as caravelas jogavam em terra os "lançados", que tinham pegado nas ruas ou tirado das prisões, para na volta servirem de "linguas".

A Artilharia da Guiné era de rendição individual, para oficiais, sargentos e alguns especialistas, sendo soldados e cabos da guarnição local, inexistindo posteriormente essas reuniões que vão alimentando o espírito de corpo, das Companhias e Batalhões. Dificultado o contacto com os camaradas,esses três anos de serviço militar vão ficando no fundo do "baú de recordações".

Após um acidente de automóvel recente, que me obrigou à recuperação em casa , conheci o blog. Então, como a história é mais benevolente com quem a escreve, ousei rabiscar este meu, "A CAMINHO DE GADAMAEL".


Eu venho lá da Bairrada pofunda, que na década de 50 era mais conhecida como terra da batata, ao invés de terra do vinho, o vinho ainda se vendia a granel. Apesar de haver registro de vinhas na região no século XII, a região sofreu por muitos anos da determinaçao do Marquês de Pombal de as arrancar.

O meu pai vinha de um grupo familiar, que se poderia enquadrar no que Gramsci apelida de "intelectuais rurais"; a escola de Samel no fim do século XIX começo do XX, era na casa do meu avô, sendo ele professor, como o foram meu pai e meus tios.

Meu avô materno era filho de comerciante e, como seus irmãos,  emigrou para o Brasil, e ao contrário deles voltou a Portugal, no fim da primeira década do século XX, casou com uma professora, que era duma família profundamente ultramontana, originária da Madeira.

A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena Coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África.

Nesta caminhada de soldado-cadete, apareceu o Raul, que era da Mealhada, professor, com família constituida, e lá rumávamos todo Domingo para Mafra. O Raul era um gordo bem humorado, que fazia todos os exercícios como qualquer atleta, mas comer do rancho já era pedir muito, logo tratou de desarranchar e alugar apartamento, e lá fui eu "no vácuo". E assim foi-se amortecendo o choque da irreverência da Academia Coimbrã, com a disciplina do quartel.

Onde quer que estejas Raul, o meu muito obrigado!

Depois de uma recruta sem grandes altos e baixos, anúncio das especialidades. IOL, mas que raios será isso? e fui ouvindo as mais disparatadas interpretações dessa sigla enigmática. Até que uma alma caridosa explicou que IOL era a sigla de Informação, Observação e Ligação, teoricamente o Oficial que faria a ligação da Artilharia Divisionária com o Comando. Na prática tal como o PCT, Posto de Comando e Tiro, um puxador de cordão de obus.

E lá fomos nós, eu e o Raul , para Vendas Novas, lembro que num Domingó à noite, parámos no caminho, para ver a descida do homem na Lua.

Na EPA, havia dois pelotões, um de PCT e outro de IOL, e se não me falha a memória com entre 30 e 40 alunos somados os dois. O "Jornal da Caserna" informou que quem ficasse nos primeiros lugares duma lista conjunta não iria para África, como era costume. Menos gente, tratamento um pouco melhor, lembro o Tenente Carita, que penso hoje é Coronel Reformado de Artilharia e Professor na Universidade da Madeira. E lá fomos todos, fazendo o nosso melhor, para ficar por lá mesmo (Portugal). Na EPA encontrei o Vinagre de Almeida que tinha sido aluno do meu pai.

Fim de curso e começo do estágio de um mês na própria EPA, já Aspirantes, pelo menos não seríamos praxeados como soldados-cadetes nos quartéis de destino.

Resultados conhecidos, quarto lugar no curso, RAP 3 , Figueira da Foz, comecei a antegozar umas prolongadas férias à beira mar. Chegado ao RAP 3, vários Alferes de cursos anteriores, estava confirmado, minha "Guerra" seria nas areias do Atlântico, mas, do Atlântico Norte. Figueira da Foz, fora de temporada, fácil de alugar apartamento, quando perguntado qual a previsão, falei com segurança: dois anos.

Aí começaram as notícias, Fulano foi para a Guiné, Cicrano para Angola, até aí tudo normal, os últimos colocados sempre eram mobilizados. E a fila continuou andando, até que chegou no décimo colocado, e acendeu a luz amarela, mas ainda tinha seis na frente. Quando o Aspirante Conceição quinto colocado foi chamado, acendeu a luz vermelha, provável dar Atlantico Sul!

Deu Guiné, e lá fomos nós, eu e o Vinagre de Almeida, de barco rumo a Bissau. GA 7, e logo o "Jornal da Caserna", informou em "Primeira Página": Cuidado, o "Homem" é louco, desafiou até o General. O Homem em questão era o famoso "Paizinho", controverso Oficial Superior de Artilharia, com relacionamento díficil com subordinados, bem como com superiores (o General Spínola, tinha-o punido com pena de prisão e tinham um relacionamento tumultuado). Abordava a todos com um "Oh meu filho...", daí a alcunha, era também conhecido como "o Homem da voz meiga", contudo não era nada meigo na hora da punição.

Na semana seguinte à minha chegada, recebi uma ordem através de um oficial, para me apresentar em tal data no Palácio do Governo, sem mais explicações. Nada sabia, e nada pude responder às perguntas, que deviam ter sido feitas por ordem do "Paizinho".

Apresentei-me, na data marcada (não era louco!), por acaso encontrei um conhecido de Coimbra que era Chefe de Gabinete, só disse que o General ia falar comigo. Acalmei, somente quando soube que o General e meu pai tinham amigos comuns, e que ele tinha-me chamado para me dar as boas vindas, e mais não disse. Sim Senhor, Meu General!

Ora o Homem não gostou nada, que o General, com tinha péssimas relações, tivesse chamado um Oficial do seu Comando, sem nada saber. Penso eu, como "prémio", escolheu o pior buraco disponível, que no momento era Gadamael Porto, e lá fui, trocando as "férias" da Figueira da Foz, por aquelas outras à beira do Rio Sapo.

De novo a sorte me acompanhou com relação aos superiores, a quem o comando do 23° Pelart estava subordinado: (Repetindo o que já disse anteriormente),

"Cheguei a Gadamael Porto, lá por meados de 70 para assumir o comando do 23° Pelart, encontrei uma Companhia em fim de comissão, comandada pelo experiente, então Capitão de Artilharia Rodrigues Videira, que me muito me ajudou nos primeiros tempos em zona de guerra. 

"Logo em seguida veio uma Companhia de Infantaria, comandada pelo saudoso Capitão de Infantaria Assunção Silva, morto em combate, generoso e intrépido oficial , que foi substituído pelo então capitão de Artilharia António Carlos Morais Silva, sobre o qual já falei neste blog, como um dos mais brilhantes Oficiais do Exército Português que conheci, nos meus três anos de serviço". 

O mesmo devo dizer dos Sargentos, dedicados e leais:

"O Furriel Miliciano de Artilharia, Lopes de Oliveira, foi professor dos soldados, e além de ser um esforçado cozinheiro, montou uma sofisticada logística, para garantir o abastecimento de carne e peixe com o pessoal da tabanca, e o Furriel Miliciano de Artilharia Krus coordenava com eficiência a atividade operacional do Pelotão".

Assim, pois, a conjugação da acção do meu pai, com a reação do "Paizinho", me levou até Gadamael Porto.

Cordiais saudações, VP

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Nota do editor:

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Fantasmas do fundo do baú (Vasco Pires) (1): Uma história do artilheiro de Gadamael, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos...

11 comentários:

Luís Graça disse...

Simples coincidência ?

Lá o "Tio Sam" da nossa terra, tinha uma especial predileção pela malta de Coimbra, quando "recrutava" artilheiros para Gadamael...

Estou-me a lembrar, assim de repente, de mais dois ou três camaradas nossos que passaram por Gadamael Porto, depois de terem jurado (e possivelmente cantado)que Coimbra tinha mais encanto na hora da despedida...

Não quero citar nomes...

Luís Graça disse...

Aqui fica, para conhecimento da Tabanca Grande e demais amigos e camaradas da Guiné, o pedido do Rosinha que me sensibilizou, mas que eu estou com dificuldade em satisfazer, dada aminha curta estadia em Luanda, desta vez (três dias úteis)... LG

De: António Rosinha
29 Set 2012

Amigo Luís Graça, desculpa se de vez em quando te vês na necessidade de justificar as minhas aparições no blog.

Como te disse, se fores a Luanda e se disfarçadamente me tirasses um retrato a dois ou três lugares era porreiro. Se não fôr possível paciência.

Então é o seguinte: No quarteirão formado pela Lello e mais umas portas ao lado, nas costas desse quarteirão há um largo pequeno na esquina oposta à Lello, que se chamava Largo Bressane Leite onde ficam os Serviços Geográficos e Cadastrais, um prédio típico Edifício do Estado e era uma foto da fachada só para ver o estado da porta e janelas onde estive alguns anitos da minha vida, e mostrar aos meus colegas no almoço anual da 3ª idade.

No Google Earth vem ainda com o nome Largo Bressane Leite, está com uma definição muito boa.

Nesse largo começa a rua Direita de Luanda, hoje Rua Maj. Kanhangulo, e seguindo até ao Bungo, perto do campo do Ferrovia (no Google Earth campo em terra do lado direito), a rua Kanhangulo cruza com a Rua Luis Mota Feo, ainda com esse nome no Google Earth, que vem da marginal.

Indo pela marginal a partir da Ilha, de automóvel, essa rua Mota Feo fica antes de chegar ao Laro do Porto mais de 500 metros.

Ora eu gostava de ver a fachada de um prédio que faz na esquina (Sul) da rua Mota Feo com a Rua maj. Kanhangulo, era conhecido como prédio de Ricardo Gaspar, onde morei no meu tempo de cabo milº e furriel.

Isto se não houver complicações. Ouvi dizer que pretendem deitar a baixo o cine-teatro Nacional, se fôr verdade vê se consegues tirar uma foto à fachada do mesmo.

Bem são três fotos pessoais se houver total possibilidade.

Obrigado

PS Aquilo da política da Guiné está do piorio, agora os fulas filhos dos antigos comandos assassinados pelo PAIGC estão a tentar esboroar o PAIGC por dentro e por fora o que também é mau, que é ódio sobre ódio.

E o Senegal não desiste por caminhos ínvios.

Um abraço

Antº Rosinha


2. Rosinha:

O tempo por aqui está esquisito...Está abafado, não há sol, há um capacete como em Braga ("penico") ou no Funchal...As pessoas dizem que o clima está a "mudar": já não chove como antigamente, já não há tempestades tropicais... Sempre enovoada, Luanda... Pode fazer sol, sem nuvens, dois ou três dias por mês...

Daqui onde estou, no "condomínio" da Clinica da Sagrada Esperança, tenho a baía a meus pés, o porto pejado de navios e, como dizem alguns ironicamente, vejo Manhatan não em frente mas mais à direita, os arranha-céus de Luanda...

Olha, da outra vez, estive mesmo na livraria Lello, podia ter-te tirado as tais fotos... Desta vez, estou limitadíssimo, mas vou tentar pedir amigos que cá vivem e que são de cá...

Quando saio da sala de formação, é já noite escura...

Sobre o destino do velho cineteatro Nacional, vou inteirar-me do que se passa... Aqui o "camartelo camarário" também segue a política do "é mais fácil, mais barato e dá milhões, deitar abaixo e construir em altura do que preservar o ADN da memória histórica da velha baixa luandense"...

Os "camartelos camarários" são iguais em (quase) toda parte... E a China veio para ficar... O mandarim já se ouve nas salas de esperas e corredores da Clínica, em programas da televisão chinesa via satélite... Afinal, os chineses também adoecem e precisam de cuidados médico-hospitalares...

Um abraço de saudade. LG

Manuel Reis disse...

Caro Vasco:

Bonita essa tua história da ida para Gadamael. Fomos vizinhos também na Guiné, embora um pouco desfasados no tempo, só em Dezembro de 73 passei por Gadamael e lá regressei em finais de Maio de74.

O teu Paizinho atendeu às tuas boas qualidades de Artilheiro e aí vai o Vasco para um local paradisíaco, em tudo parecido com a bela Figueira!

Tenho uma opinião diferente do Luis Graça sobre a predilecção especial que o Tio SAM tinha pela malta de Coimbra. No dia da apresentação das três companhias saídas de Estremoz, houve uma reunião de oficiais com ele e após acesa discussão, de cariz político, com um dos alferes da escola coimbrã, e pertencente à Companhia do Vasco da Gama,o Alferes em causa acabou por ficar em Bissau.O mesmo aconteceu com os envolvidos na Direcção do Movimento de 69 que apareceram na Guiné com a especialidade de Atirador de Infantaria, quando já eram licenciados em Direito. O "Paizinho" chamou-os para o Serviço de Justiça, após breve conversa, e não foram para o mato. Claro que tudo isto tem um preço e o Barros Moura ao prontificar-se a pegar no processo do então Major Coutinho e Lima foi, de imediato, recambiado para o Norte.

Um abraço.

Manuel Reis

Manuel Reis disse...

Errata:

Onde digo que passsei por Gadamel em Dezembro de 73 devia dizer Dezembro de 72.
Onde digo " regressei a Gadamael em Maio de 74" devia dizer Maio de 73

paulo santiago disse...

Olá Vasco
Não sei se o "Paizinho" é o tipo que
foi comandante do Maj.Gaspar quando
este veio para 2ºcomandante do GA7.
Uma noite em Bissau,já muito bebidos,
o Gaspar desfiou umas histórias negras do comandante,tendo chegado,ou
quase,a vias de facto com o tal Cor.
ou Ten-Cor.
Recebe um abraço

Anónimo disse...

Caro Paulo,
É esse mesmo.
Fazia parte do "folclore" de Bissau na altura, é certo, como em todo "causo", "quem conta um conto acrescenta um ponto", mas muitas eram verdade.
forte abraço
VP

Anónimo disse...

Olá Camarada
O Paizinho era mesmo paranóico, não tenho eu hoje dúvidas. Um dia, deram-lhe como 2º Cmdt o Maj. Gaspar, homem sério e de grande valor humano e as coisas só podiam acabar à chapada. O 2º Cmdt anterior já se tinha queixado dele, mas coisas ficaram por ali. Ambos sairam mal. O Paizinho, mesmo hiper-protegido, punido, e o Gaspar comprou caro (severamente punido também), após uma passagem por Mansabá, o regresso a Lisboa, com uma saúde quase à beira do colapso.
Um Ab.
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Caro António J. P. Costa
Cordiais saudações.
Na altura, o "Jornal da Caserna", deu que ele e a Major Gaspar, tinham "saído no braço". Verdade ou lenda, não sei.
Muitas histórias corriam por Bissau.
forte abraço
Vasco Pires

Anónimo disse...

Caro Vasco
Sairam, de facto, mas não creio que "de braço dado". Fui (e sou) inimigo do Paizinho e fui (serei) amigo do Gaspar que faleceu em 1978ou 79, depois de ter cumprido, creio, que um ano "de forte". Já falei dele no blog a propósito da frase: Siga a Marinha! (que o Exército já lá está e a Força Aérea já anda no ar há meia-hora) Nessa altura, mostrei a célebre nota sobre a situação do aquartelamento de Nhamate, e que considero um tratado da (nossa) logística. É de um humor fino, que dá para chorar, e só os homens inteligentes escrevem assim. Um dia hei-de contar a minha perspectiva sobre o sucedido, uma vez que algumas cenas vi-as em directo, ao vivo e a cores.
Um Ab.
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Caro António J. P. Costa,
Cordiais saudações.
Quando disse (Na altura, o "Jornal da Caserna", deu que ele e a Major Gaspar, tinham "saído no braço".), talvez tenha usado um termo regional ou em desuso, desculpe a imprecisão. Usei "saido no braço", no sentido de,confronto físico.
Realmente, não sei se é facto ou lenda,o confronto físico.
forte abraço
Vasaco Pires

Anónimo disse...

OK Camarada Vasco.
Voltarei ao tema.
Um ab.
António J. P. Costa