quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 14 de Outubro de 2012:

Prezado editor do blogue
Conheço-o de há longa data (ENSP e congressos de medicina do trabalho), sou admirador sincero da sua postura de cidadania e profissional, navegamos em águas comuns: as condições de prestação do trabalho.

Actualmente sou membro dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Medicina do Trabalho. Não viajo habitualmente por blogues, agora tive conhecimento do vosso através do António Graça de Abreu. Pelo que me apresento:

Em 1973 e 1974 fui o alferes miliciano médico do BCav 8323 - Pirada.

Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO.
Do que me ficou ressalto:

- A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entre-ajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).

- As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia - em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

- A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo.
Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes a ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses.

Junto duas fotos e um texto que conta um episódio da minha vida no batalhão.

Com os meus cumprimentos
Manuel G. Valente Fernandes


Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1975. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu à direita).


2. A minha história:

URGÊNCIA EM PAUNCA

Alferes miliciano, em 1973 era eu o médico do BCav 8323, em Pirada, mesmo junto ao marco fronteiriço 69.

Um fim de tarde, fui chamado ao bunker dos operadores de rádio, onde recebi um pedido de apoio do maqueiro que se encontrava no destacamento de Paunca, a cerca de vinte quilómetros, destacamento constituído por milícias e integrado no dispositivo do batalhão. Um homem, membro da população, estava com retenção vesical (incapacidade de urinar, apesar da bexiga cheia, provavelmente causada por adenoma da próstata). O procedimento adequado seria efectuar uma algaliação (introduzir na uretra do doente um tubo de borracha, adequada e macia e empurrá-lo até à bexiga) para permitir que a urina saísse e assim aliviar o doente.
O maqueiro nunca tinha realizado, nem sabia como realizar uma algaliação.

Falei com o comandante do batalhão que me confirmou o que eu já sabia: àquela hora não poderia sair um grupo de combate para me levar ao destacamento (não podemos esquecer o tempo que demoraria percorrer aquela distância numa estrada possivelmente minada); àquela hora também não teríamos apoio de helicóptero.

A retenção vesical provoca intenso sofrimento: o doente não poderia ficar à espera da algaliação que eu somente poderia realizar na manhã seguinte.
O meu maqueiro não poderia tentar a algaliação (mesmo com o meu apoio via rádio) por ser muito provável, não só não ter sucesso, como provocar um “falso trajecto” na uretra, com grave prejuízo para o doente.

Somente restava uma solução, provisória, mas com baixo risco para o doente: efectuar uma punção supra-púbica, isto é, perfurar a parede da bexiga do doente com uma agulha grossa, procedimento de baixo risco numa bexiga cheia, porquanto não se perfura o peritoneu, se a picada da agulha for efectuada a “rasar” o bordo do osso que temos sob os pêlos púbicos.

Dei indicação ao maqueiro para trazer o doente para o bunker do operador de rádio de Paunca, onde ficou deitado (os bunkers caracterizavam-se pelo tecto baixo). Disse-lhe para esterilizar uma agulha grossa, pelo método habitual (fervura em água num tacho).

Agulha esterilizada, indiquei ao meu (distante) colaborador que sob minha responsabilidade, iria perfurar a parede da bexiga do doente: Com terminologia pouco científica mas muito explícita, indiquei-lhe exactamente onde deveria perfurar a pele, com a agulha rigorosamente em posição vertical (o grau de sofrimento do doente “dispensava” a anestesia local).

Depois, fiquei ansiosamente à espera de notícias do meu maqueiro. E as notícias (de sucesso) foram um simples comentário, gritado de entusiasmo:
- Doutor, o esguicho de mijo chega ao tecto !!

Manuel Valente Fernandes


3. Comentário de CV:

Caro camarada Valente Fernandes
Não estranhes por ser eu a receber-te na Tabanca Grande. Primeiro porque sou eu que normalmente recebo todos os camaradas que se apresentam, pois sou uma espécie de relações públicas do Blogue; segundo, porque embora te tenhas dirigido directamente ao Luís, ele não poderia responder-te por estar ausente do País, em trabalho.

Outra coisa que não vais estranhar é o tratamento por tu, modo que não implicará uma comunicação menos respeitosa, porque estabelecemos que pessoas que viveram as mesmas dificuldades de guerra, suportaram aquele calor húmido, pisaram aquela terra vermelha, atravessaram as mesmas bolanhas, suportaram aqueles mosquitos e viram morrer ou ficar feridos os seus companheiros, devem deixar do lado de fora da caserna os seus títulos honoríficos (não as profissões), as suas habilitações (úteis para ajudar quem tem mais dificuldade de expressão), as suas antigas (ou actuais) patentes (servem só para identificação e estatística), a sua posição social e até a idade. O tratamento por tu estreita a amizade e a camaradagem, e desinibe.

A tua entrada vem aumentar o número de camaradas Médicos em campanha e outros que se formaram após o serviço militar, que enfileiram a nossa tertúlia. Correndo o risco de esquecer algum, no primeiro grupo estão: Amaral Bernardo, Mário Bravo e Pardete Ferreira; no segundo temos os camaradas: Vítor Junqueira, Francisco Silva, Ernestino Caniço e Caria Martins.
Espero não ter esquecido ninguém.
Tens uma série no Blogue dedicada aos nossos médicos, a que podes aceder a partir daqui:  Os nossos médicos

Dependendo do tempo livre de que dispões, gostaríamos que nos remetesses algumas das tuas memórias (em prosa e fotos), especialmente que nos falasses da tua vivência de jovem médico que teve de improvisar e colmatar a sempre presente falta de meios e de pessoal habilitado. Aliás, a história que hoje nos contas é a melhor prova do que acabei de escrever.
Na minha Companhia (independente) Médico e Padre era coisa rara, situação que se inverteu a partir da altura em que se reactivou o COP6, em Mansabá, que nos permitiu ter médico a tempo inteiro. Tínhamos também a sorte (sem desprimor para os camaradas Fur Mil Enfermeiros formados na tropa) de ter um Furriel Enfermeiro que já exercia a profissão na vida civil, o que nos dava uma certa confiança e era uma mais-valia para os médicos que por lá apareceram para exercer as suas funções humanitárias.

Já agora, uma coincidência engraçada. No passado sábado, no convívio da Tabanca dos Melros, em Fânzeres, conheci o ex-Fur Mil Enf. José Pereira da 2.ª Companhia do BCAV 8323. Lembras-te dele? Julgo que me disse ser de Lamego.

Desviei-me na conversa, mas acho que deixei o essencial. O Luís brevemente entrará em contacto contigo, dando resposta à tua mensagem que fica aqui publicada.

Pela minha parte fico disponível para qualquer esclarecimento.

Resta-me enviar-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.
O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10478: Tabanca Grande (364): Júlio Madaleno, tocador de guitarra, feicebuqueiro e agora grã-tabanqueiro, nº 582, ex-fur mil, CCAÇ 1685 (Fajonquito) e CCAÇ 2317 (Gandembel) (1967/69)

13 comentários:

Hélder Valério disse...

Ora viva!

Quem diria que o meu amigo e Sr. Dr. Valente Fernandes, meu ex-colega de empresa, meu conterrâneo (em termos habitacionais) e meu vizinho, viria comungar deste espaço!

E porque 'carga de água' nunca descobrimos que ambos estivemos então na Guiné? E tantas vezes, e sobre tão variados assuntos, nós conversámos, sem que a memória, a referência à guerra ou mesmo qualquer pequena insinuação sobre isso (não) tivesse aparecido?

Pois então, que as portas (realmente inexistentes) sejam franqueadas e que a memória possa ser explanada, para que todos possam ter acesso a esses pedaços da história comum.

Um grande abraço, caro Valente Fernandes.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Caro amigo Carlos,
"Caria Martins" ou seria "Faria Martins", médico vimaranense que esteve em Mansoa, natural de Guimarães (já falecido).
Abraços
Filomena

paulo santiago disse...

Filomena

Não é Faria Martins,é Martins Faria
meu saudoso camarada e amigo.Antes de
Mansoa,esteve no Saltinho.
Antecipando a resposta do Vinhal,o
Caria Martins é um artilheiro de
Gadamael.
Abraço

jpscandeias disse...

Amigo e Camarada da Guiné. Em 1973 tinha eu deixado Cabuca para trás em direção à Ccaç 12, nessa época em Bambadinca. Não conhecemos por lá, apesar da pequenez do território, mas quando a vida profissional nos juntou, sentimos que já nos conhecíamos doutras lutas. Tínhamos Bebido água da mesma bolanha, pisado a mesma picada e sentimos o mesmo sol. Fico muito satisfeito por o ver aqui, onde eu venho algumas vezes deixar o meu testemunho, nem sempre coincidente com o sentido da corrente, mas não hesito e muito menos temo em deixa-lo. Curiosamente hoje quando procurava por um documento, encontrei algumas fotos daqueles tempos, rsrsrs, e agora ao entrar no site dou de caras com o Dr. Valente Fernandes. Coincidências? Aproveitei para lhe vir deixar um abraço.
João Candeias ex-furriel mil At. Infantaria Ccav 3404 (Cabuca) Cac 12 (Bambadinca e Xime) CIM (Bolama) Março de 1972 a Maio de 1974

Anónimo disse...

Obrigada Paulo Santiago pelo esclarecimento. Eu sabia que era Martins Faria, fomos amigos, aliás foi meu médico particular e médico na empresa onde trabalho, mas, como não sabia da existência de "Catia Martins", e pensei ser um lapso do amigo Carlos, não tive coragem de "rectificar dois nomes"
Um abraço
Filomena

José Marcelino Martins disse...

Caro Manuel Valente Fernandes, bem vindo ao poilão, onde cabe sempre mais um.
Estava a ler a história e a imaginar-me no posto de rádio de Canjadude: pequeno e de tecto baixo, apesar de ser de nivel de companhia. Como seria um posto de rádio de nivel de pelotão?
Não há duvida que o nivel de baixas, falo da Guiné, poderia ter sido muito mais elevado, não fora os homens do Serviço de Saúde.
Fico/ficamos a aguardar novas histórias. É "disto" que agora nos "alimentamos: do sabor da saudade daquela terra que foi e continua a ser martir.

Grande abraço.

JOSE CASIMIRO CARVALHO disse...

Camarada, estive em Paúnca de Abril a Agosto de 1974.Bem Vindo.
Estive em Pirada em 2010.
J Carvalho
Ex fur mil Op/Esp

Anónimo disse...

Caríssima Filomena

Não sou "faria" nem "catia"

Uma nova madrinha é sempre bem-vinda.

caria martins

Anónimo disse...

Caro Caria Martins,
Não é uma coisa nem outra....então o que é?
Posso ser madrinha, mas no mínimo, quero saber de quem.
Abraço
Filomena

Anónimo disse...

Caríssima Filomena

Não deve ter reparado mas escreveu CATIA, mas é caria...caria martins.

No último encontro em Monte Real tivemos oportunidade de nos conhecer pessoalmente.

Um abraço do "afilhado"

caria martins

Anónimo disse...

A foto supra é muito interessante

Mesa farta,contraste volumétrico entre dois comensais,e..e o quadro de parede é tão só a "guernica" de Picasso e por fim são servidos por um "empregado" de mesa a preceito.
Para os padrões da guiné..é obra.
"Ganda sortudos"

C.Martins

Anónimo disse...

ERRARE HUMANUM EST

Peço desculpa,mas confundi a Filomena com a Felismina.

caria martins

Anónimo disse...

bem me parecia, não é o primeiro. Já devolvi livros com dedicatórias à Felismina (de quem eu gosto e mantenho algum contacto), mas, não me eram dedicadas. A Felismina, deve ficar feliz com estas confusões (penso eu).
Abraços
Filomena