1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2017:
Queridos amigos,
Não se deve esperar desta literatura de viagens uma qualquer visualização da Guiné do século XX, tal como a conhecemos. Estes navegadores e comerciantes partiam habitualmente da ilha de Santiago e percorriam a Costa naquilo que mais tarde veio ficar a ser conhecido por Grande Senegâmbia, ou seja, Senegal, Gâmbia, a atual Guiné-Bissau, a orla da Guiné-Conacri e a Serra Leoa. Repare-se como na descrição de André Donelha se fala livremente do reino da Etiópia, aliás vários autores falarão da região guineense dando-lhe o nome de Etiópia Menor. A Serra Leoa era fundamental por causa do ouro, naquele tempo ninguém falava em diamantes. A descrição de Donelha deixa bem claro que a nossa presença o que é hoje a Guiné era francamente residual.
Um abraço do
Mário
Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (2)
Beja Santos
Dando continuidade ao que há de melhor da literatura de viagens na Costa da Guiné, desde o século XV ao século XVII, dirigimos a atenção para um relato que, não podendo competir no brilho da observação da obra de André Álvares de Almada, complementa e enriquece muita informação anterior sobre as paragens entre o rio Senegal e a Serra Leoa. O Almirante Teixeira da Mota trabalhou arduamente neste documento e na investigação sobre o autor. Vamos agora dar a palavra a Donelha, perceber como o seu sentido crítico e a sua capacidade de observação se tornaram um valioso contributo para a literatura de viagens do século XVII. Logo no capítulo 2, falando de árvores, diz que as malagueteiras são umas árvores que dão boa madeira, altas; a casca pisada serve de estopa para os navios e dela se faz morrões e mexas para escopetas de boa brasa. Os frutos são umas malaguetas compridas como dedos de galinhas; Tem por dentro sementes e pimenta. O veludo é árvore de boa altura, dá boa madeira; o fruto do tamanho de um botão de veludo preto e dessa cor e afeição, tomada nas mãos engana a muitas pessoas por ser macio e parece ser veludo, mas não se come. Diz que há na Serra Leoa um unicórnio e Teixeira da Mota comenta assim:
“Os primeiros portugueses que viajaram ao longo da costa da Serra Leoa trouxeram de perto do Cabo do Monte um cativo africano que em Lisboa asseverava que havia unicórnios na sua terra (leia-se Cadamosto); e em 1470 alicorne era um dos produtos da Guiné declarados como monopólio real. O produto era presumivelmente o chifre do rinoceronte, ainda que seja duvidoso que algum tenha sido obtido na Guiné”.
No capítulo 7 fala dos Sossos e Comchos e dos imperadores chamados Farins que há pelo sertão do nosso Guiné e do grande Mandimansa. Diz que os Sossos são muito belicosos guerreiros. A sua terra é rica de ouro, marfim, panos, ferro, gado vacum, carneiros. São grandes frecheiros; as suas frechas são de ferro, envenenadas. Fala igualmente de Farim Cabo, é o Farim que está mais ao Norte de todos, pelo sertão do rio da Gâmbia, a mais de 120 léguas, onde está o porto de Cantor, onde há grande resgate de ouro, cera e marfim. Este Farim em Mandinga. O outro Farim chama-se Farim Brasó, está sobre o rio grande de Bonabo, é também nação Mandinga. Este Farim é senhor de diversas nações – Casangas, Banhuns, Bramos, Balantas, Beafares e outras nações. Há um outro Farim que é o Farim Cocali que está sobre os Nalus e é também terra de grande resgate de ouro. Diz que das terras destes Farins vem todo o ouro que corre pelo nosso Guiné. Todos pagam um tributo ao grande Mandimansa, que é o monarca de toda a Etiópia. A este grande rei devem obediência os Fulas, Jalofos, Berbecins, Mandingas e todos os demais reis que há para além da Serra Leoa.
Diga-se a propósito que o topónimo Serra Leoa foi empregado pelos portugueses nos séculos XVI e XVII para designar uma longa extensão de cota da Guiné, normalmente do cabo da Verga ao cabo do Monte. A descrição de Donelha prossegue no rio Sanaga, província de Jalofos e diz que o rio de Sanaga é um dos três rios maiores que há no nosso Guiné. É muito largo, alto, todo de água doce; pode-se navegar por ele com naus grossas mais de cem léguas. Deste rio Sanaga para a banda do Sul corre o reino dos Jalofos. O seu rei intitula-se Grão Jalofo. A Costa dos Jalofos corre até ao Cabo Verde. E diz que os Jalofos é gente mui guerreira, mui valentes cavaleiros e mui destros a cavalo. Estes Jalofos eram gentios: há menos de 80 anos que tomaram a lei de Mafamede. Vivem no seu reino judeus portugueses e portugueses cristãos, que andam lá lançados.
Falando no do resgate e trato comercial, Donelha refere coiros, ceras, marfim e algum ouro, se lá vai navio das ilhas de Cabo Verde, como antigamente iam quatro ou cinco navios carregados de cavalos, lá se carregavam de escravos e outras coisas. Homens e mulheres andam bem vestidos, com sapatos mouriscos calçados.
Donelha prossegue viagem e fala-nos de Cantor, terra onde há grande resgate de tudo e refere o rei Fula Dulo Demba, que chegou ao reino dos Beafares em Guinala (Quínara e Forreá), nosso porto antigo do rio Grande de Buba, o melhor e da melhor escravatura e toda a Guiné. Saiu-lhe ao encontro Famena, rei dos Beafares, os Fulas foram vencidos, o rei Dula Demba morto, ficando tantos mortos e cativos, que, por memória, dos ossos dos mortos, depois dos corpos serem gastados das aves, fizeram os Beafares uma grande cerca.
Estamos finalmente no capítulo 14, descreve-se a viagem da costa que corre do rio de Gâmbia até ao de S. Domingos, depois rio Grande de Guinala e Biguba, diz-se que se passou do rio de Casamansa cujos habitantes são os Cassangas, ali há um rei mui ufano guerreiro, amigo dos brancos, mui liberal de nome Masatamba, que conquistou o reino dos Banhuns. Descreve costumes e diz-nos depois que Cacheu é terra dos Bramos e observa que o rei dava por um cavalo, se fosse bom, 10 a 15 negros. A viagem de Donelha prossegue até Bolama e depois dá-nos uma pormenorizada descrição da Guinala de cujo reino fala com detalhe, reconhecendo-lhe a importância para o comércio.
Da leitura que se faz desta descrição de Donelha depreende-se que os navegadores e mareantes tinham uma visão bastante fluída do território desta porção da costa Ocidental africana, não há um só documento que nos deixe uma ideia clara o que se entendia por “o nosso Guiné”. Acresce que a descrição deixa na sombra a presença de outros navegadores e comerciantes, neste tempo de domínio filipino o mais poderoso adversário eram os holandeses, seguindo-se os ingleses e os franceses. Não há uma menção à presença missionária mas há referências esporádicas a lançados e aos escassos representantes da Coroa. Em jeito de conclusão, a nossa presença episódica estende-se do rio Senegal à Serra Leoa, neste tempo aquilo que virá a ser a Guiné Portuguesa é um território longínquo, não mensurável.
Mapa de África datado de 1572
____________Notas do editor
Poste anterior de 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 30 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20109: Notas de leitura (1213): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (21) (Mário Beja Santos)
6 comentários:
Quando vemos estas descrições da costa africana, e vemos um mapa com tanta (im)perfeição que localizam povos e países no mapa-mundi pela primeira vez na história dos homens, de facto não será absolutamente correto chamar a este trabalho hercúleo, os "descobrimentos", dignos de um "museu dos descobrimentos".
Esse fabuloso esforço que foi de explorar mares e continentes e localizá~los geograficamente no globo terrestre, poder-se-ia chamar as Explorações.
Vasco da Gama, não "descobriu" o caminho marítimo para a India, "explorou" o caminho marítimo para a India, e mapeou-o.
Magalhães não "descobriu" o estreito de Magalhães, "explorou" aquele estreito.
Como anda para aí a discussão do museu dos descobrimentos a que muitos lhe querem chamar o museu da escravatura, talvez haja alguma razão, pois a escravatura era de facto uma prática costumeira que esses "exploradores" foram encontrar em África.
Ainda não há um verdadeiro museu da escravatura africana, em África.
E também não há ainda um museu da "Exploração" africana, em África, em que apareçam desde Diogo Cão, até Vasco da Gama e Serpa Pinto e Cécil Rhodes, Stanley...por exemplo.
Foi um trabalho bem duro a exploração, tinha uma coisa a favor, não se passava muito frio.
Nos anos 70, do século passado, ainda havia alguns recantos de Angola por "explorar", mas aí já havia rádios motorola, foi fácil explorar.
Grande Beja Santos.
Grande António Rosinha!
Afinal não descobrimos nada foi tudo "exploração". Ai , o embarcar no "politicamente correcto", nas modas de hoje, foi tudo "escravatura e colonialismo." E já agora, nós todos, a tropa fascista...
Grande António Rosinha, acorda, rapaz!
Abraço,
António Graça de Abreu
– «Se um inglês ao passar me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: - Pois bem!
se tens agora o mar e a tua esquadra ingente,
fui eu que te ensinei a nadar, simplesmente.
Se nas Índias flutua essa bandeira inglesa,
fui eu que t'as cedi num dote de princesa.
e para te ensinar a ser correcto já,
coloquei-te na mão a xícara de chá...
E se for um francês que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: - Pois bem!
Recorda-te que eu tenho esta vaidade imensa
de ter sido cigarra antes da Provença.
Rabelais, o teu génio, aluno eu o ensinei
Antes de Montgolfier, um século! Voei
E do teu Imperador as águias vitoriosas
fui eu que as depenei primeiro, e ás gloriosas
o Encoberto as levou, enxotando-as no ar,
por essa Espanha acima, até casa a coxear.
E se um Yankee for que me olhar com desdém,
Num sorriso de dó eu pensarei: - Pois bem!
Quando um dia arribei á orla da floresta,
Wilson estava nu e de penas na testa.
Olhava para mim o vermelho doutor,
- eu era então o João Fernandes Labrador...
E o rumo que seguiste a caminho da guerra
Fui eu que to marquei, descobrindo a tua terra.
Se for um Alemão que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: - Pois bem!
Eras ainda a horda e eu orgulho divino,
Tinha em veias azuis gentil sangue latino.
Siguefredo esse herói, afinal é um tenor...
Siguefredos hei mil, mas de real valor.
Os meus deuses do mar, que Valhala de Glória!
Os Nibelungos meus estão vivos na História.
Se for um Japonês que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: - Pois bem!
Vê no museu Guimet um painel que lá brilha!
Sou eu que num baixel levo a Europa á tua ilha!
Fui eu que te ensinei a dar tiros, ó raça
belicosa do mundo e do futuro ameaça.
Fernão Mendes Zeimoto e outros da minha guarda
foram-te pôr ao ombro a primeira espingarda.
Enfim, sob o desdém dos olhares, olho os céus;
Vejo no firmamento as estrelas de Deus,
e penso que não são oceanos, continentes,
as pérolas em monte e os diamantes ardentes,
que em meu orgulho calmo e enorme estão fulgindo:
- São estrelas no céu que o meu olhar, subindo,
extasiado fixou pela primeira vez...
Estrelas coroai meu sonho Português!
p.s.
A um Espanhol, claro está, nunca direi: - Pois bem!
Não concebo sequer que me olhe com desdém.»¹
(¹) Afonso Lopes Vieira (26Jan1878-25Jan1946)
Exploração, explorar, isso não se diz, dos nossos grandes navegadores do séc. XV, que é feio e pode incomodar, por estes tempos, pessoas mais sensíveis.
(...de vez em quando lá se abre a gaveta da à lá mode fossilizada)
Senão vejamos:
Explorar - Dicionário da Porto Editora
-percorrer uma zona ou local para aprofundar o seu conhecimento.
Cronologia no ano 1455
-Bula Romanus Pontifex o Papa Nicolau V confirma as explorações portuguesas e declara que todas as terras e mares do sul do Cabo Bojador são pertença dos Reis de Portugal.
-Cadamosto explora do Rio Gâmbia ao Rio Geba e as ilhas Bijagós.
Valdemar Queiroz
p.s. como é que seria o poema do Afonso Lopes Vieira, se em 1662 Angola, não fosse um entreposto negreiro e local de degredo, tivesse ido no dote de D. Catarina de Bragança.
Oh, Valdemar, o teu pensamento à la mode, moderníssimo,ao invés, perfeitamente fossilizado.
Negreiros e degredados,assim seriam os colonialistas portugueses, já no século XVII,gente do piorio, a escumalha da espécie humana.
O que nos separa é que eu tenho orgulho em ser português, tenho oito anos de vida em três continentes, fora de Portugal. Não somos melhores, nem piores do que ninguém. Somos portugueses. Descobrimos mais de meio mundo.Aprendi a amar e a respeitar o meu povo.
Abraço,
António Graça de Abreu
Graça Abreu
Eu só estive em dois continentes.
Em África por as piores razões: na guerra da Guiné.
Na Europa, no nosso querido Portugal e nuns 'caramelos' ali ao lado, na Holanda a visitar o meu filho (e os meus netos) por ele ter ido pra lá trabalhar e por lá ficou.
O que nos separa? com a excepção de nunca ter estada na Ásia, NADA.
Mas, não aprecio os 'bonitinhos' poemas de Afonso Lopes Vieira, gosto de mais modernos com 'As portas que Abril abriu', de Ary dos Santos.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Estamos entendidos, meu caro Valdemar, "As portas que Abril abriu', de Ary dos Santos.
Política, pura política. E as portas sempre entreabertas. Ainda bem que vivemos em sinuosa liberdade.
Abraço,
António Graça de Abreu
Enviar um comentário