segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21219: Notas de leitura (1296): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2017:

Queridos amigos,

Confirmo a importância deste trabalho de Álvaro Nóbrega, convido a todos à sua leitura. Trata-se de uma investigação rigorosa que viaja do passado ao presente, que cuida da história, da sociologia, da antropologia e da etnologia, toma-as como parcelas e objeto de análise e profere um grande olhar sobre um processo democrático que tem encontrado inúmeros escolhos, daí a identificação que ao autor pretendeu ao estudar a transição democrática, colocando-a no local certo, África, repertoriando os elementos do Estado, pinçando os dados sob as elites, o papel político dos militares, o presidencialismo, a fragmentação partidária, e muito mais.

Doravante, esta obra será incontornável para o estudo da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (3)

Beja Santos

Em “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, Álvaro Nóbrega, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), 2015, dá-nos um estudo admirável sobre as sinuosidades do processo democrático guineense, a partir da luta de libertação, das tensões que esta mesma provocou, dos equívocos entre um sonho de modernização e as múltiplas dificuldades do Estado se encontrar com a nação e com as populações nela residentes.

No texto anterior aflorou-se o papel político dos militares, questão que se agudiza com o golpe de Estado de Nino Vieira, em 1980. De modo sub-reptício foram-se organizando fações, que exploraram questões étnicas, descontentamentos, questiúnculas internacionais como a dissidência do Casamansa e a venda de armas, um dos fatores que despoletou a crise político-militar de 1998-1999.

Os ajustes de contas passaram a ser cada vez mais ferozes, com assassinatos ao mais alto nível. As forças armadas guineenses são únicas no mundo: é um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados (31%), uma autêntica pirâmide invertida. É óbvio que se procura a promoção para ganhar um pouco mais.

“A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e em cumprimentos das obrigações de parentesco, os chefes militares que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida dos combatentes da Liberdade da Pátria”.

O número destes últimos supõem-se situar entre os 7 e os 10 mil. Outro aspeto que contribui para as dificuldades da construção da democracia na Guiné-Bissau é o papel político das forças armadas. O autor fala nos golpes de Estado mas refere igualmente que os militares estão conscientes das implicações políticas e financeiras negativas que a sua ação pode comportar perante a comunidade internacional. Nino Vieira terá sido o presidente da República mais temido e admirado pelo seu passado. Mas não compreendeu, no seu regresso em 2005, que tudo se alterara na Guiné-Bissau, o narcotráfico, o clientelismo e o sistema de influências retirara-lhe peso, quando chegou a hora do ajuste de contas, foi sujeito à humilhação de lhe entrarem portas adentro de casa e o retalharem.

Os poderes tradicionais retomaram a sua importância e os órgãos de soberania sabem que não podem prescindir de uma boa relação com eles. E nos órgãos de soberania assiste-se a uma difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, invadindo os respetivos campos, daí a permanente discussão em aberto se o regime deve ser presidencialista ou semipresidencialista.

Álvaro Nóbrega escalpeliza a fragmentação do sistema partidário. Com exceção do PAIGC e da FLING e da Resistência da Guiné-Bissau (RGB) nascido no exílio, os outros partidos guineenses são muito jovens, o seu número ultrapassava em 2008 o número de 30 partidos legalizados. Citando Francisco Fadul, grande parte dos partidos são encarados como propriedade privada:

“Todos os partidos da Guiné começam por ser partidos de um dono. Todos eles têm patrão que é aquele que coloca lá algum dinheiro para fazer funcionar a máquina e que se sente o dono. Se alguém não gosta da sua atuação, só tem é que abandonar o partido”.

Em consequência a luta é tanto mais dura quanto maior é a possibilidade do partido de vir a conquistar cargos governativos. São confrontos que podem levar ao descrédito do próprio partido, caso da batalha que opôs Hélder Vaz a Salvador Tchongo, foi uma picada mortal nos créditos eleitorais da RGB, que se mostrou aos eleitores desunida e fragmentada. Kumba Ialá aproveitou a brecha e liquidou o partido.

O autor dá inúmeros exemplos de conflitos em todos os quadrantes, as mensagens partidárias acabam por ser estandardizadas como o investigador sueco Lars Rudebeck já observara nos discursos partidários concorrentes às eleições de 1994:

“Os partidos políticos da Guiné-Bissau não podem ser distinguidos uns dos outros meramente pelo estudo dos seus programas e plataformas. As suas palavras de ordem e slogans são quase idênticas”.

A visão patrimonial do poder é cuidadosamente observada pelo autor. Há uma frase que pode resumir a situação:

“Na Guiné, quer pela vivência tradicional quer pela moderna, os indivíduos, habituaram-se a ver os carros de Estado como a solução para os seus problemas financeiros. Os régulos, por o serem, recebem as compensações de vida ao seu estatuto. Nas etnias que não têm régulos, os anciões têm direito pelo seu estatuto a exigir a prestação de trabalho e receber dádivas das classes de idades mais jovens”.

Quando abandona o poder, alguns titulares de cargos públicos e altos funcionários do Estado procuram a todo o transe manter as regalias que tiveram.

Em 2003, Álvaro Nóbrega publicara um importante livro "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau", é dossiê que conhece bem: a luta decorre em muitas instâncias, na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil, pode envolver entidades sobrenaturais, convocar adivinhos, lançar feitiços…

E a Justiça? A Guiné dispõe de um sistema judicial sem meios humanos e materiais para cumprir a sua missão. A luta pelo poder também passa por aqui, quando o presidente não gosta das decisões dos tribunais exonera seja quem for. Basta ler os relatórios da Liga Guineense dos Direitos Humanos um número indiscritível de violações e desrespeitos.

Álvaro Nóbrega passa ao crivo a sociedade civil, as organizações não-governamentais, a liberdade de expressão, radiografa a comunicação social guineense que é materialmente pobre e como se processa a africanização do voto, realçando questões como o voto coletivo ou solidário, a compra dos votos, a intermediação etno-regional, a votação etno-religiosa e o fator relioso propriamente dito.

Nas conclusões, o investigador sumaria todas as problemáticas abordadas na sua análise:


  • baixo grau de comprometimento das elites políticas com a democracia; 
  • um Estado com falta de soberania; 
  • a etnicidade encarada como um dos maiores calcanhares de Aquiles da democratização guineense; 
  • a falta de autenticidade do poder e a sua personalização; 
  • a intervenção abusiva dos militares na política; 
  • a visão patrimonial do poder que não distingue os bens e capitais públicos dos privados e amplia consideravelmente o fenómeno da corrupção;
  • a luta pelo poder em todos os patamares institucionais e cívicos; 
  • a excessiva fragmentação partidária; 
  • os problemas das elites;
  • um sistema judicial enfermo e inerte; 
  • uma opinião pública que não é desinteressada da política nacional mas que espelha toda a heterogeneidade e a complexidade da sociedade guineense.


Tudo conjugado, o regime guineense é um misto de hegemonia e democracia e o autor atribui ao seu estudo o papel de contribuir para um melhor conhecimento do que emperra a democracia guineense e apela à necessidade de se continuar a estudar e a compreender as expressões políticas modernas que coexistem com as manifestações e estruturas das antigas instituições, é imprescindível compreender essa articulação e o seu impacto no Estado moderno. Para que a Guiné-Bissau progrida.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21202: Notas de leitura (1295): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Mário, é mais um livro que fica "lido"... Já conhecia o livro do Álvaro Nóbrega, que citas, "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003)... Vejo que o autor passa a ser uma referência para que se interessa pelos destinos da Guiné-Bissau. Ab, Luís