sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (14): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Pronto, os pombinhos já estão arrulhados, custou mas foi, ela soube tomar a dianteira, e no local próprio. Paulo está doido de alegria, dá conta da sua felicidade a um amigo de longa data, compincha de trabalhos, dão-se muitíssimo bem, será Gilles o primeiro a saber que tudo se alterou na vida daqueles cinquentões, saltaram, graças à roda da fortuna, por cima da sua solidão e têm sonhos entusiásticos que atravessam fronteiras.
Nesta altura da trama ficcional ainda não se sabe muito bem como vão reagir os filhos de ambos, para Annette é a felicidade dos dois que está no cume da montanha, e antes de partir para Berlim ela disse-lhe claramente: "O futuro a Deus pertence, cabe aos nossos filhos verem-nos felizes. Paulo, continua a escrever o romance, já temos quase 3 meses de Guiné e tu disseste-me que vão aparecer agora eventos sangrentos. Quero saber a verdade, conta tudo".

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (14): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Gilles Jacquemain, Venho agradecer-te muito calorosamente a ajuda que me deste nas reuniões que tivemos segunda e terça-feira, acho que os teus pareceres sobre a publicidade comparativa e a etiquetagem do calçado enlaçaram perfeitamente com os documentos que enviei para a Comissão, vamos ver agora o andamento dos trabalhos. Disseste que eu estava com ar muito feliz, dei-te respostas curtas, mas na verdade tu és merecedor, graças à nossa amizade e trabalho contínuo há mais de 10 anos, tens-me recebido tão bem em tua casa, e gostas tanto de me visitar em Lisboa que quero neste momento dar-te uma notícia importante, presumo que totalmente imprevista para ti. Sabes que sou um cinquentão há muito divorciado, procuro trabalhar afincadamente, com gosto e com sentido de dever, até tenho alguma compensação material. Não me perguntes porquê, em novembro passado, tu não foste a essa reunião, tratava-se de uma atividade para representantes de organismos públicos, vim a pé desde o hotel até à Rue Froissart, trazia a cabeça cheia de recordações da minha guerra na Guiné, procurava pôr alguma ordem no tropel dessas memórias, entro na sala da reunião, olho para a cabine, vejo alguém e avanço por ali fora, bato à porta e explico à dita senhora que pretendia estruturar um romance, havia no contexto um par amoroso, cada um do seu país, ela pede-lhe para saber coisas sobre o seu passado, está muitíssimo interessada em conhecer esse ponto tropical onde ele combateu, que o marcou indelevelmente, pedi então a essa senhora se podíamos almoçar para eu lhe falar da trama ficcional e ver se ela estava em condições de me dar ajuda. Tenho a impressão que a senhora ficou arrelampada e talvez mesmo a pensar que eu vinha com outras intenções, o pedido que eu trazia era estranhíssimo.

Pois bem, imagina tu que gerámos empatia, a senhora embarcou nesta história da trama ficcional, comecei a enviar-lhe textos, a telefonar-lhe com regularidade, mails em catadupa, demos connosco a falar de intimidades, tanto ela como eu a dizermos ao outro que sentíamos falta de companhia, era inacreditável como nos sentíamos bem. Viajei várias vezes e pude confirmar que algo amadurecera, havia aquele espinho da distância, mas que paradoxalmente dava azo a uma comunicação redobrada, quase compulsiva.

Sei que começas a rir-te de mim, achas que isto é uma farsa, asseguro-te que não é. E assim preparamos mais um encontro, havia feriado na Bélgica na sexta-feira, tanto Annette (é o seu nome) como eu tínhamos disponibilidade de estarmos juntos três dias, ou quase, ela tinha um voo para Berlim ao fim da tarde de domingo, iria trabalhar como intérprete numa conferência de ministros da agricultura toda a segunda-feira. A nossa relação era muito convivial, mas cada semana que passava havia mais entusiasmo, mais saudade, mais exigência da presença física.

E chegamos aos factos. Cheguei quinta-feira muito tarde, nem por sombras queria que a Annette se preocupasse em trazer-me de Zaventem para o centro da cidade, acordámos num encontro a hora matinal, ela já tinha desenhado um programa para a manhã, era segredo, queria surpreender-me. Sabes como eu aprecio Arte-Nova. Ela marcou uma visita com espaço magnífico que eu creio mesmo que não conhecia o exterior, o Hôtel Hannon, podes ver pela imagem o requinte, a fantasia e a extraordinária conjugação dos materiais do exterior, as janelas bem rasgadas, e entras na habitação e ficas petrificado no átrio a olhar uma escadaria como não há outra igual, foi uma visita demorada, até porque lá dentro funciona um centro fotográfico, o que mais me interessou foi a tal conjugação de mármores, mosaicos, vitrais e trabalhos de marcenaria como raramente tenho visto. Annette tinha carro, fomos depois tomar um café e ela perguntou-me o que é que eu pensava de Saint-Gilles. Lembrei-me de uma visita guiada, eu vinha para um curso de três dias sobre contratos e respetivas cláusulas, os organizadores no fim da tarde do primeiro dia deram-nos este passeio, o guia era um homem de grande franqueza e deplorava como entre as décadas de 1950 e 1970 tinha havido tanta destruição, tudo fruto, como tu sabes melhor do que ninguém da criação das Comunidades Europeias, a necessidade de muito mais espaço para os milhares de recém-chegados, e daí aquela estranha mistura entre prédios modernos e imagens da prosperidade de uma Bélgica industrial e colonial. E então a Annette disse-me que íamos para o Parque do Cinquentenário, entraríamos no Pavilhão das Paixões Humanas, tratava-se do primeiro monumento de Victor Horta, ainda não estava marcado pela Arte-Nova, o intuito era visitar a monumental escultura de Jeff Lambeaux e o seu tratamento do tema da felicidade e dos pecados humanos, sem iludir o tema da morte. Annette estudara bem o que estava a mostrar, estava calorosa e carinhosa, olhava-me fixamente, e num dado momento agarrou-me pelas mangas do casaco, aproximámos os rostos, pôs a mão na minha nuca, beijou-me docemente. Senti nesse instante que a minha vida mudara, era uma autêntica felicidade a dois, e o local da declaração o mais apropriado possível. Pegou-me na mão, saímos do monumento, sugeriu-me irmos comer ligeiro, sopa e tarte, e passámos a tarde em Lovaina, eu tinha a presunção que conhecia bem a cidade, Annette acompanhou-me à beguina, mostrou-me como viviam desde a Idade Média as viúvas e solteiras com algumas posses em ambiente comunitário, tudo muito bem enquadrado por relvados, buxos e arvoredo. Quis-me fazer uma surpresa, há um casal de ceramistas de quem ela é amiga, fomos recebidos de braços abertos, ele é holandês, mas tem um apelido que eu penso que é francês, Gilot, mostrou-me como trabalha, ali estivemos em amena conversa o resto da tarde, na despedida Annette e eu recebemos prendas, mais gentileza não podia ter havido.

Regressámos a Bruxelas, no caminho Annette avisou-me que tínhamos endívias com presunto e molho branco, um bom Bordéus, uma sobremesa de mirtilos e outros frutos campestres. Annette abriu a janela onde eu estive a contemplar o fim do dia, enquanto preparava o jantar. Conversámos imenso, ela é espantosa a descrever certos comportamentos de participantes, um deles ficou furioso por ela não ter tido a expressão apropriada, fez um quase charivari à porta da cabine, acabou por se desculpar pelo destempero, a expressão era mesmo embrulhada e prestava-se a confusão. O que tu ficas a saber é que eu não voltei ao hotel nem nos dias seguintes, isto é, fui buscar as minhas coisas, protestei um regresso súbito a Portugal, só vejo um futuro radioso para mim com a Annette, amamo-nos profundamente. Agora, aqui em Lisboa, tenho que sopesar todas as consequências deste amor, para ela e para mim, espero que tenhamos a capacidade de superar as distâncias físicas, é impossível qualquer um de nós reformar-se, temos obrigações com os filhos, é tudo agora uma questão de saber lidar com o próximo e o distante. Somos tão vincadamente amigos, tudo isto aconteceu no teu país, um país que eu tanto amo, impunha-se que tu fosses o primeiro a saber que tenho a vida virada do avesso, e por um ditoso bem. O anúncio está feito, dentro de dois ou três dias vou começar a preparar o documento com que me comprometi com o diretor-geral, e ficas também com a responsabilidade de dar o teu parecer, felizmente que tenho aqui peritos a quem posso recorrer. Oxalá que tu partilhes da minha alegria. Deixo um beijo para a tua mulher e afago os teus filhos, deseja-me sorte para o meu provir, Paulo.

(continua)

 Edifício do Hôtel Hannon, Saint-Gilles

 Hôtel Hannon, detalhe da entrada e escadaria

 No interior do Pavilhão de Victor Horta, esta esplendorosa escultura de Jeff Lambeaux

Rua do Eclipse, Bruxelas, aqui a minha vida mudou de rumo
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21214: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (13): A funda que arremessa para o fundo da memória

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