sábado, 8 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21235: Os nossos seres, saberes e lazeres (405): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Com exceção do período das férias, todas as semanas durante os últimos catorze anos acompanhei um querido amigo nonagenário que perdera a visão, mas recrudescera em curiosidade pelos livros e pelas Artes Plásticas. Correspondi sempre aos livros que queria ler, fundamentalmente tudo aquilo que aparecia no mercado e que lhe merecia o entusiasmo imediato: os trabalhos sobre as direitas portuguesas, o surrealismo literário e plástico português, as polémicas sobre o Cristóvão Colombo português, os novos estudos sobre Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, e muitíssimo mais. Mas Ponte de Lima e também Viana do Castelo, onde estudou, lhe suscitava imensa curiosidade. Daí a correnteza de jornais que lhe lia todas as semanas, com destaque para A Aurora do Lima e Cardeal Saraiva, mas não faltavam as publicações periódicas limianas.
Isto para significar que fui a Ponte de Lima todas as semanas sem nunca lhe ter posto os olhos em cima. Este meu querido amigo partiu, para meu profundíssimo desgosto, e fui-lhe dar esta satisfação, mais não lhe posso fazer como forma de agradecimento do muito que lhe fico a dever.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (1)

Mário Beja Santos

Durante cerca de catorze anos, uma, duas ou até três vezes por semana, fiz leituras a um grande amigo que tinha perdido a visão, o limiano Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, morreu nonagenário em janeiro de 2020. Lia-lhe o que ele me pedia, logo dois jornais, o Aurora do Lima e o Cardeal Saraiva, mantinha-se permanentemente informado sobre o que se passava na terra-berço, e logo que se noticiava uma publicação havia que a encomendar. Chegavam revistas como a Limiana e o Anunciador das Feiras Novas, eram outros meios de convívio em que eu me via envolvido. Mal surgia um título sobre o poeta António Feijó, por exemplo, era indispensável adquiri-lo depressa e lê-lo quase de um só fôlego. Isto para dizer que Ponte de Lima, a mais antiga vila de Portugal, tem andado comigo sem eu nunca, até agora, lá ter posto os pés. E jurei a mim próprio, quando o meu querido amigo partiu para as estrelinhas, que iria até este Alto Minho que conheço aos farrapos, iria lembrá-lo em sede própria, era este o último penhor de amizade que queria cumprir. E em 6 de março parti, era algo como uma romagem de saudade, de confirmação, de paraninfo. E um deslumbramento aconteceu nesse universo que incidentalmente conheci na juventude através de um grande poeta que se estudava em literatura portuguesa, no então sexto ano do liceu, Diogo Bernardes, nascido talvez na Ponte da Barca ou em Ponte de Lima, mas que cantou essas terras vicejantes, verdejantes. Aqui estou num alojamento local, sito na Rua do Souto, impossível não captar esta rua algo medieval, na continuidade, tudo aqui aparenta respeito pelo património. Desço e vou até à igreja primaz, tem a escultura do Cardeal Saraiva (que foi cardeal patriarca) ali ao pé. Ao fundo, avisto o Lima, esse formidável Lima, que li ao meu querido amigo cego, milhentas vezes.


O portal, belíssimo, é tardo-gótico, com grande equilíbrio e sobriedade, o templo foi alvo de imensas alterações, a rosácea que se sobrepõe é relativamente recente, mas de modo algum desfeia a singeleza da fachada, pelo contrário.


Entra-se no templo e uma litografia logo prende a atenção, faz parte de um tempo em que eu já vivi, com anjos da guarda a proteger criancinhas, havia imagens da Imaculada Conceição e muito mais. Empolga-me a fé dos homens, a sua capacidade de moldar graças às Artes Plásticas figuras que nos possam fazer entender um quadro de mentalidade e de valores, este São José parece tirado da imagem de um cavalheiro do princípio do século XX, não interessa esta conjetura, é a imagem cativante que fica, pronta para a exultação da Sagrada Família.


Sei que aqui voltarei outras vezes, o que importa é que avanço pela nave central até à cabeça do templo e não resisto a fixar o contraste das luzes entre as paredes laterais e o abobadado, é tudo lavra severas só quebrada pelas riquezas do altar.


Logo à saída do templo, temos a atração pela esplendorosa esplanada que vai beijar o rio Lima, é inevitável olhar à direita para o seu ex-líbris, uma ponte medieval que entronca numa ponte romana, do lado de Arcozelo. Mas fica-se especado a ver os restos dos panos de muralha que se adossam a edifícios, não é chocante. A imagem permite ver ao fundo do lado esquerdo a Igreja da Misericórdia, uma congregação que tem grande peso na vila mais antiga de Portugal.


Ouve-se ao fundo um rumor de música, tipicamente minhota, não há que enganar, e o grupo avança, é dia fasto para apresentar a concertina, as violas e o reco-reco, os sons troam no casco histórico de Ponte de Lima, e que beleza.


A vila está em animação, já se fala do Covid-19, mas o estado de despreocupação sobrepõe-se. Verifico que são escassos os panos de muralha que restam, estão bem cuidados, bem embebidos pelos edifícios e dá gosto entrar no casco histórico por esta porta medieval.


Quantas vezes vi e li esta Avenida dos Plátanos ligada às feiras e mercados que aqui se realizam. É frondosa, apetece nela caminhar, fazer paragens para contemplar o Lima e a sua corrente vagarosa, a outra margem, de Arcozelo até ao infinito, e os montes ao longe, é ali que se abre caminho que leva à majestosa Serra d’Arga. Para ganhar os benefícios de todo este efeito cénico, caminho para lá e depois regressarei também contemplando o casario, os jardins, a beleza da fachada do Museu dos Terceiros.



Este o Lima que tanto cativa poetas, esta a nova ponte que alterou a política urbanística e garantiu a preservação da ponte romana e medieval que vemos ao fundo, o açude dá-lhe imensa beleza.


Vou parando aqui e acolá, o Lima, ao longo de tempos imemoriais encheu-se de veios de água, ilhotas de tufo, formas de uma flora aquática, multiplicação de verdes, sobreposições de arvoredo, constatarei depois, em certas horas do dia, a atração romântica que sugere, quando surgir aquela neblina que marca uma identidade da região. Por hoje chega. Vou documentar-me sobre a rota das camélias em Ponte de Lima, os monumentos de visita indispensável, dar umas passadas pelo chamado Caminho Português de Santiago em Ponte de Lima e preparar passeios a Ponte da Barca, Arcos de Valdevez e Viana do Castelo, veio comigo a obra Alto Minho, de Carlos Ferreira de Almeida, Editorial Presença, 1987, é o meu guia de viagem, tenho seis dias por minha conta, quero fruí-los por inteiro, tudo em memória desse querido amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo.




(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21215: Os nossos seres, saberes e lazeres (404): Alfredo Keil, um bom pretexto para ver a pré-primavera no agreste Cabril (Mário Beja Santos)

Sem comentários: