1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:
Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1
Mário Beja Santos
Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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