quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21941: Historiografia da presença portuguesa em África (253): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A tese de doutoramento de Carlos Lopes na Sorbonne constitui um indesmentível esforço para procurar clarificar a presença Mandinka e a fundação do reino do Kaabú, que se espalhou essencialmente nas terras do que são hoje os países da Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal. Este reino do Kaabú marca o fim do Império do Mali, deu origem a um Estado autónomo em que os Mandinka detinham grande poder político e cultural. Carlos Lopes consultou inúmera documentação que permite trazer luz à estruturação social Kaabunké, à organização do seu território e à sua consolidação graças fundamentalmente ao tráfico de escravos. Chegados ao século XIX, os Mandinka envolveram-se numa prolongada guerra com a etnia Fula, perderam a capital Kansalá, o Mansa suicidou-se, acabou o seu reinado, os Fulas ascendiam ao poder.
Iremos no próximo número apreciar as conclusões apresentadas por Carlos Lopes face à herança Kaabunké, há ali observações com muita dinamite.

Um abraço do
Mário


A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, um trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (2)


Mário Beja Santos

O
importantíssimo trabalho do historiador Carlos Lopes sobre o reino do Cabo detalha a expansão Kaabunké, o seu declínio e a sua herança. Sobre a expansão e lógica do poder falou-se no número anterior, vejamos agora como se passou da consolidação ao declínio. O Kaabú era um reino de escravatura, vivia do tráfico negreiro. E o autor observa: “O tráfico prejudicou o desenvolvimento de outros sistemas de produção orientados para a produção de mercadorias e enviesou o comércio para uma troca ainda mais desigual do que as anteriores”. O fenómeno decorria do acordo das aristocracias do Kaabú, da sua aliança de interesses e dos negócios com os europeus. A aristocracia vive dos impostos e da guerra, e esta lógica de funcionamento desce até às aldeias, tem a caução dos poderes religiosos. O autor estuda atentamente as lendas sobre a queda de Kansalá e retém uma frase de um autor português de 1945, Viriato Tadeu, em Contos do Caramô: “Na Guiné de bandeira portuguesa, só há brancos e Mandingas. O resto são os pobres coitados”. Subentende-se que estava a subir de tensão a luta entre poderes a partir do século XVIII. O Kaabú entrara em declínio devido ao permanente sobressalto da guerra e à reorientação do comércio transatlântico. Os Fulas tinham começado a revoltar-se contra a exploração Malinké, vão começar as longas guerras entre dois Estados – Kaabú e Futa-Jalo. Os Malinké não desistiam de ser os senhores do território e vão enfrentar os franceses no Senegal. Os territórios do Kaabú precisavam cada vez mais do poder militar, a centralização política ia-se esboroando. Chegara-se também a um limiar intolerável na coexistência pacífica entre o Islão e o animismo, quer Fulas quer Mandingas estavam agora confrontados com uma lógica de Guerra Santa. Isso devia-se ao papel crescente do Islão, até então o poder islâmico tratava o relacionamento interétnico com uma enorme flexibilidade. Não é novidade para ninguém que ainda hoje os chamados islamizados da Guiné não prescindem de amuletos tradicionais, aliás, a penetração do Islão no meio animista socorreu-se do uso de talismãs que encerravam versículos do Corão. Escreve Carlos Lopes: “O Kaabú é o símbolo de uma coabitação islamo-animista desde o século XII e esta relação foi sempre favorável ao primeiro, através dos tempos. Foi por o Sudão Ocidental estar em plena transformação no século XVIII que o Islão continuou a progredir. Os Fulas do Futa-Jalo não são a principal razão, mas antes a ponta do icebergue”. Mas também na Senegâmbia meridional os europeus iam pondo de pé uma nova estratégia de conquista territorial, a partir do momento em que o tráfico de escravos tem os seus dias contados havia que redefinir a presença colonizadora, e franceses, ingleses e portugueses facilmente se entenderam neste ponto: havia que destruir os grandes espaços políticos, sabendo de antemão que teriam que conviver com sociedades islamizadas.

A situação do Kaabú também se agravara devido a novos conflitos relacionados com as interpretações islâmicas de diferentes confrarias (a Tijaniya e a Kadiriya), apoiadas por chefes diferentes. Havia lugares de peregrinação até aos centros religiosos islâmicos. “No século XVIII, o Islão tornou-se mais militante que nunca, não apenas devido à existência das confrarias, mas também por ser apenas desse meio que provinham as elites educadas e alfabetizadas. Hoje em dia, ainda é possível distinguir diferenças significativas entre as práticas religiosas das diferentes confrarias, mas as grandes querelas dos séculos XVIII e XIX estão ultrapassadas, o que prova bem como o essencial dos argumentos tinha sido uma natureza política”.

Algo de profundamente novo tinha acontecido nas sociedades Fulas, a partir do século XVIII eram inteiramente dirigidas por chefes religiosos. “A evolução política do Futa-Jalo introduzirá discórdias graves entre os Fulas que estão cativos dos Malinké do Kaabú, que podiam aliás contar com aliados no interior da estrutura social Kaabunké. Uma parte das camadas intermédias Kaabunké está insatisfeita e recetiva a uma aliança com novos interesses, que utilizarão o Islão como porta-estandarte”. Portugueses e franceses estavam atentos ao crispar destas tensões, reduziram o volume de trocas com os chefes Malinké, começou o isolamento das regiões e no Futa-Jalo sentiu-se que o apoio europeu estimulava os Fulas a lançar uma ofensiva. É exatamente o que escreve Carlos Lopes, o Kaabú já não conseguia manter o controlo indireto das várias províncias que constituíam a sua base territorial. Havia por um lado a penetração europeia e a pressão do Futa-Jalo fazia perigar as formações políticas existentes desde a época medieval. E vão-se dar batalhas que culminarão com a queda de Kansalá. Atenda-se agora a considerações um tanto controversas, umas, e complementares ao que nós já sabíamos sobre o colonialismo português na Guiné no século XIX: “O verdadeiro fim do Kaabú e o verdadeiro início da colonização coincidem no tempo. Estão ligados, pois ambos se desenvolveram a partir do tráfico negreiro. O fim deste foi o princípio do fim do Kaabú. Mas os colonos tinham uma estratégia económica. No final do século XIX, os colonialismos vão intervir indiretamente no jogo político com o objetivo confesso de controlarem o território – era a lógica da Conferência de Berlim. No Senegal, os franceses produziram estratégicas económicas virando-se para a exploração da mão-de-obra local e para a sua utilização como mercadoria de troca. Vai ser assim com a cultura do amendoim. Em 1846, Aurélia Correia já tinha uma plantação respeitável em Bolama, bem como João Marques de Barros. A presença portuguesa ia-se reduzindo a Norte, a hostilidade africana era clara, como Andrade Corvo escreveu em 1884, falando de um gentio bárbaro e indómito, que raramente está em completa paz, e que muitas vezes abusa da nossa falta de força na Senegâmbia Portuguesa. Não devemos iludir-nos acerca das condições do nosso domínio da Guiné”. Ao tempo, e segundo ainda Andrade Corvo, havia concelhos em Bissau, Bolama e Cacheu; dependendo do primeiro Geba, do segundo Buba, e do terceiro Farim e Ziguinchor. Quem irá dar configuração a uma boa parte do que é hoje a Guiné-Bissau foi Honório Pereira Barreto.

No Sul da colónia, a situação era muito instável, como recorda Carlos Lopes: “Os portugueses tinham procurado assinar tratados no Forreá para controlarem integralmente esta região, mas tiveram problemas com Bakar Kidali. Um dos indícios disto é o ataque de Mamadu Paté de Koyade ao entreposto de Buba. Aliás, os portugueses não intervieram nas lutas intestinas do Forreá, embora apoiassem indiretamente os escravos a revoltarem-se contra os seus donos, fornecendo-lhes armas”. São tempos de acordos com os Fulas. Mas a lógica colonialista era imparável, houve destituições e nomeações de chefes locais impostas por Paris ou Lisboa. “O exemplo de Alfa Yaya que procurou desesperadamente manter o controlo do Labé, Kaabú, Forreá e Kadé ilustra bem o desespero dos últimos grandes homens políticos africanos dessa outra época. Nem ele nem Mussa Molo serão bem-sucedidos. O século XIX terminava uma História de África. E o Kaabú tornava-se para a história da região o fim de um ciclo histórico: o dos poderes independentes africanos. Os colonialismos invasores acabavam de destruir um sistema político e económico secular”. Iremos seguidamente falar da herança Kaabunké, sem dúvida o ponto mais polémico da tese de doutoramento de Carlos Lopes.

(continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21911: Historiografia da presença portuguesa em África (252): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

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