Nhacobá, entrada norte
© Foto: Vasco da Gama
© Foto: Vasco da Gama
1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.
7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ
Naquele dia os medos não me deixavam dormir e as piores antevisões do que poderia acontecer, nas horas pesadas que se aproximavam inexoráveis, sucediam-se na minha corrente de pensamento, não deixando espaço para admitir um só cenário otimista que fosse. Se no primeiro dia da tomada daquela tabanca tinham morrido quatro camaradas, quem acreditaria que não morressem dois ou três mais, no dia seguinte. E podia até ser eu! Porque não? Ou então podia calcar uma mina, como tinha visto acontecer ao Albuquerque, ir pelos ares e voltar ao chão, já sem uma perna, sob uma espessa nuvem de pó. Depois viria o helicóptero para me levar para o Hospital Militar. Nesse caso podia até ter mais sorte que o Albuquerque, sobrevivendo sem uma perna, a direita ou a esquerda, tanto fazia. Mas, sem a perna, ainda jovem, a minha namorada gostaria de mim assim? Bem pior, muito pior, era ficar sem as duas pernas ou morrer mesmo. Porque é que me resignei em ir para ali, para o meio do mato de África, lutar numa guerra sem fim? Afinal, não havia ali brancos que precisassem que os defendêssemos das catanadas dos pretos. Aquilo era um verdadeiro suplício de Sísifo, a uma vitória de hoje sucedia amanhã uma derrota, numa interminável caminhada sangrenta, iniciada, naquela pequena colónia, em 1963, e sem fim à vista.
Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.
Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.
De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.
No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!
O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.
A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.
Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.
Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.
De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.
No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!
O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.
A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
Nota do editor
Último poste da série de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
1 comentário:
Meu Caro Carvalho,
Li no teu último post o nome de Nhacoba e as minhas orelhas espevitaram-se já que, como sabes, Cumbijã era a primeira e Nhacobá a minha segunda habitação.
A seu tempo falarei, nas minhas memórias, sobre o que foi viver e dormir, todos os dias, com o inimigo.
Estou a acompanhar com muito interesse as tuas memórias, contadas com leveza e com um toque de humanismo que sensibiliza o leitor e define o narrador
Um AB
Joaquim Costa
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