domingo, 21 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21926: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (8): O casqueiro nosso de cada dia... ou a feliz história do Jobo Baldé, o improvável padeiro do Mato Cão, que nos matou... a malvada (Luís Mourato Oliveira,ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)


O Casqueiro Nosso de Cada Dia Nos Dai Hoje...


Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Padeiro de Mato Cão (*)

por Luís Mourato Oliveira


O pão é um alimento extraordinário que caso não tivesse sido criado há mais de 6.000 anos na Mesoptâmia, provavelmente a existência humana tivesse sido comprometida. Não conheço ninguém que não goste de pão nas suas múltiplas formas de fabrico e, em particular, nós, portugueses, não o dispensamos para acompanhamento ou mesmo como elemento principal de uma refeição.

Em Mato-de-Cão [ou Mato Cão] embora o efectivo dos europeus se limitasse a dez elementos, um deles tinha a “especialidade” de cozinheiro que também abrangia a de “padeiro”. Infelizmente tratava-se de uma pessoa com enormes limitações cognitivas, recordo-me que entre outras confusões achava que “valor declarado” e “louvor declarado” eram a mesma coisa e, não fora as grandes dificuldades de recrutamento da época , o nosso jovem “cozinheiro” seria certamente adstrito ao contingente de básicos.

Na cozinha, dada a simplicidade e a repetição dos menus, as coisas iam correndo, mas no que dizia respeito ao pão, o homem não se safava e a nossa dentição só resistia devido aos vinte e poucos anos de uso que tinha na altura e o produto do nosso padeiro só era tragável numas sopas de café.


Propus-me a alterar esta situação, para mim desastrosa, e com calma e paciência arranjei umas medidas para que ele respeitasse as quantidades de farinha e fermento, indiquei-lhe o tempo da levedar da massa, mas continuavam a sair pedras, ao invés de pães do nosso forno. A paciência perdida e um exemplar da padaria na cabeça do “cozinheiro/padeiro” que ia originando um traumatismo craniano no funcionário, levou-me a desistir de o transformar num padeiro capaz.

Ma, como o homem é criativo e sabe aproveitar as oportunidades, um soldado do pelotão [de caçadores nativos] 52, o Jobo Baldé, abordou-me com oportunidade e a sua habitual irreverência:
– Alfero, Jobo passa a fazer o pão para o pessoal!
– Não sabes fazer pão, Jobo, não te metas nisto que arranjas problemas.
– Jobo sabe fazer pão, alfero, deixa experimentar e vais ver.

Perante sua insistência e convicção e no desespero de não haver outra alternativa, resolvi experimentar as aptidões do Jobo para novo responsável da padaria. Expliquei-lhe as medidas para a farinha e para o fermento, o tempo para levedar, e ele atacou de imediato a nova função.

Não sei se por milagre ou se pelas aptidões inatas do Jobo, no dia seguinte quando este me chamou para ver o pão acabado de cozer, tive das grandes alegrias gastronómicas da minha vida. O pão estava quente, tinha crescido por obra do fermento e da forma carinhosa com a massa tinha sido tratada, o som da batida no “lar” parecia um tambor a acusar uma boa cozedura e o abrir a crosta estaladiça evidenciava um miolo macio, fumegante e com um cheiro delicioso. Regalámo-nos de imediato com pão quente e manteiga e o Jobo ganhou o lugar!

O Jobo estava feliz com a nova função e cumpria-a com pontualidade, brio e grande competência. Posteriormente ensinei-o a fazer merendeiras com chouriço e ele começou a produzi-las sem grande esforço de explicação. Quando as tinha cozido, trazia-me de imediato uma e eu recordava as que a minha avó fazia na Marteleira [, Lourinhã,] quando era dia de cozedura.

No que dizia respeito ao pão, tínhamos atingido, graças ao Jobo Baldé, a felicidade. O Jobo também estava feliz, era casado com uma mulher, bem mais velha, que ele herdara do irmão entretanto falecido. Embora esta mulher fosse divertida e senhora de um grande sentido de humor, já tinha perdido o fulgor e a beleza da juventude e o nosso amigo e saudoso Jobo Baldé, quando acabava de fazer o pão, tinha sempre visitas de exuberantes bajudas a quem ofertava uns pães a troco de inconfessáveis favores.

A felicidade conquista-se com pequenos acordos e cedências. Estávamos todos satisfeitos…até as bajudas. (**)



Luís Mourato Oliveira: lisboeta, vive atualmente na Lourinhã.
Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá (1973/74), 
pelotão que foi comandado por membros da nossa Tabanca Grande 
como  o Henrique Matos, o Mário Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves.
Tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue.


______________

Notas do editor:

(*) Excerto do poste de 10 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16706: De Cufar a Mato Cão, histórias de Luís Mourato Oliveira, o último cmdt do Pel Caç Nat 52 (2) - Experiências gastronómicas (Parte II): Restaurante do Mato Cão: sugestões de canibalismo ("iscas de fígado de 'bandido' com elas"), "pãezinhos crocantes com chouriço" e... "macaco cão [babuíno] no forno com batatas a murro"!...

(**) Último poste da série > 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21866: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (7): Receita caseira de Bourbon County, Kentucky, USA... Enquanto se aguarda a vacinação contra a Covid-19... (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Jobo Baldé deveria ser fula, pelo apelido. Os fulas cultivam cereais, mas não propriamente trigo nem centeio...Tinham o milho painço. Nunca os vi a fazer o nosso pão de trigo. Mas os nossos soldados aprendiam. Tudo se aprende... Nas tabancas talvez se fizesse bolinhos à base de milho, já não me recordo. Mas a base da alimentação era o arroz.

No nosso caso, gastávamos uma boa energia a rebastecermo-nos uns aos outros. E as colunas logísticas no tempo das chuvas eram um inferno. Seria bom que alguém recordasse isso: quantos sacos de farinha se gastava por mês, qual era o "stock" de segurança, quem eram os padeiros...Como nãõ estive numa companhia de quadrícula, nem em nenhum destacamento por mais de quinze dias, falta-me informação relevante... Nas tabancas em autodefesa passava-se sem pão, a não ser quando éramos reabastecidos...

Valdemar Silva disse...

"OS GAVIÕES - "MATAR OU MORRER"
Nas cores da Bandeira Nacional uma ave de rapina e uma caveira de pirataria.
Divisa esquisita nos tempos que correm, mas... era assim naquele tempo.
E por lá fomos comendo o inestimável pão, até a "chica", uma cabra comprada para repasto, que estava prenha e ficou mais uns meses a subir as escadas da nossa Messe, em Nova Lamego, para ir ter connosco e comer pão com manteiga ao pequeno almoço.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Henrique disse...

Bonita crónica de Mato Cão que no meu tempo era apenas um ponto de passagem “sempre perigoso” a caminho de Missirá ou Bambadinca
Passei por uma situação semelhante quando fui para o destacamento de Porto Gole. Quem nos desenrascou foi o 1.º Cabo Luís Cunha (reside em Coruche) que tinha jeito para a cozinha.
Quando falei com ele no último Natal perguntou: “Ainda te lembras da grande travessa de rabanadas que fiz há 54 anos?”
Abraço aos Luíses
Henrique Matos

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Henrique, estou a imaginar o vosso gozo e alegria ao contemplar, mesmo ali à frente dos olhos, essa grande travessa de rabanadas natalícias!... Obrigado pelo abraço, que volta à origem carregado de saudades e afectos. LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Luís: a Alice cozeu pão, com farinha de trigo Barbela (do moinhgo de Aviz, lá do Montejunto) e eu lembrei-me da tua histÓRIS, bem conseguida, do Jobo Baldé... Como é que se põe uma fula a fazer pão para um Pel Caç Nat ?...Fui recuperá-la de um outro poste que metia outras habilidades gastronómicas vossas... E fazia pão com chouriço e Alá perdoava-lhe!...

Mantenhas!... Luís

PS - Já agora, quanto gastavas de farinha, em média, por mês ? Só a gestão dos "stocks" dos géneros devia dava-te cabo da cabeça... Mas os teus soldados deviam ser desarranchados como os da CCAÇ 12... Sempre eram mais 24$50 por dia...(igual para o soldado e o general, dizia-se).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Beja Santos foi pescar esta "preciosidade"!... Tem 15 anos... ainda o blogue era uma criança...


4 DE OUTUBRO DE 2006
Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): "Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa" (Jobo Baldé, antigo padeiro)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2006/10/guin-6374-p1149-operao-macaru-vista.html