sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21950: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O dia-a-dia de Annette é um baú de surpresas, há reuniões em que os intérpretes saem completamente esgotados, outras têm um teor interessante ou permitem folgas para dar um bom passeio, neste dia o grande amor de Paulo Guilherme ciranda pelo Parque do Cinquentenário, uma construção grandiosa com que Leopoldo II quis homenagear os cinquenta anos de independência da Bélgica, é um espaço de natureza e de vários museus temáticos, o mais importante é o de Arte e História, ali estão depositadas riquezas inexauríveis de várias civilizações. Annette dá conta ao seu amor do inventário que está a fazer referente a dois meses, agosto e setembro de 1969, partilha de mágoas e inquietações, Paulo dá sinais de completa exaustão, estão a reduzir-lhe os efetivos, os patrulhamentos a Mato de Cão são rotina interminável. Coisa curiosa, quando ele e os seus caçadores nativos se encaminharem para Bambadinca tudo se alterará na navegabilidade do Geba, o porto do Xime entrará em funcionamento. E anos depois será tomada a decisão de criar um aquartelamento em Mato de Cão, decisão que só pecou por ser tardia. E se os dois cinquentões se reformassem mais cedo? Vivendo cá e lá, não teriam mais despesas, é certo que com os rendimentos minguados. Annette, nesta fase da proposta, nem se atreve a dizer ao seu amado que ele podia ficar ali em Bruxelas a trabalhar naquele mundo em que se tornou perito, aquela associação europeia de que ele é um dos diretores até tem escritório em Bruxelas, ele bem podia mais tarde ali ficar em trabalho avençado, ela continuaria nas suas atividades de intérprete. Haverão de conversar, ela está ansiosa por quebrar esta distância, esta paixão a conta-gotas.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, estive no Luxemburgo, como te disse, foram dois dias, um com os peritos da Estatística, comissão mais enfadonha não há, felizmente que temos manuais que nos auxiliam a compreender todo aquele jargão das siglas, o dia seguinte foi dedicado aos medicamentos, o trabalho foi mais atrativo, discutia-se a revisão de folhetos informativos das benzodiazepinas e de potentes anti-inflamatórios. Aproveitei para levar o dossiê da documentação de agosto e setembro de 1969, sem dúvida alguma que corresponde a um dos períodos mais árduos e desgostosos da tua experiência na Guiné. Procurei ler cuidadosamente os aerogramas que enviaste aos teus entes-queridos, logo aquele episódio da flagelação a Missirá em que um dos teus soldados se expôs e te cobriu o corpo, na tentativa de te salvar a vida; aqueles patrulhamentos nos mangais do Geba a destruir canoas, como tu escreves, a confirmação de que gentes da guerrilha atravessam o rio seja para se abastecerem ou trocar informações, seja para viajar para outros lugares do rio Corubal; embora o assunto seja compreensivelmente grave, não pude deixar de sorrir com as tuas discussões com um alferes que veio de Bambadinca e andou a pôr minas e armadilhas à volta de Missirá e por possíveis caminhos que sirvam de acesso aos guerrilheiros que vêm foguear Missirá, gargalhei mesmo quando tu argumentaste em estado de fúria que nem lhe passasse pela cabeça pôr armadilhas junto da fonte de Cancumba e muito menos nas proximidades dos campos lavrados; adoeceste de exaustão, veio um médico de nome David Payne Pereira e obrigou-te a passares dois dias no repouso em Bambadinca; tu desanimas, ainda não há condições para transferir o gerador que está no porto de Bambadinca para o Cuor; barafustas na sede do batalhão porque te vão retirando efetivos continuando com as mesmas exigências dos teus patrulhamentos e numa altura em que continuam trabalhos de renovação não só nos abrigos como nas moranças da população civil de Missirá…

Paulo adorado, encontrei num aerograma uma conversa tua com esse teu amigo aí de Lisboa, Queta Baldé, conversa havida quando ele estava no posto de vigia, o Queta começou na milícia em 1964, na Ponta do Inglês, referiu outros camaradas do pelotão, caso do Mamadu Djau, que também ali vivia, depois a ida para Finete, a seguir a formação do vosso pelotão em Bolama, já me mandaste a fotografia desse conjunto, no verso diz que foi uma oferta de alguém que se chama Jorge Rosales. Não sei como tinhas tempo para passares ao papel aquele conjunto de recordações, mas a verdade é que num aerograma datado do fim de agosto tu reproduzes essa conversa com Queta Baldé: “Há poucas terras mais ricas na Guiné, nosso alfero, que estas aqui do Cuor e dos regulados à volta. Todos aqueles quilómetros de Malandim até Ponta Nova, subindo de Finete até Boa Esperança, e à volta de Gã Joaquim, até à Aldeia de Cuor, dá arroz com fartura, pode ter muito gado. A população de Finete fugira para o mato no princípio da guerra. O régulo vivia em Missirá mas deslocou muita gente para Finete, e depois da vinda da milícia veio também mais povo ali viver, originário de Canturé, Chicri, Sansão e Aldeia do Cuor. Havia ali muitas lojas de comércio, brancos e cabo-verdianos que venham buscar mancarra, arroz e coconote. Todas essas lojas desapareceram com a guerra. Fiquei em Finete até 1966, altura em que fui tirar a recruta em Bolama com o alferes Rosales”.

Mais adiante, encontrei referências à repetição de uma operação na região do Xime, acho que se procurava destruir um acampamento situado na estrada entre Xime e Ponta do Inglês, envolvia três contingentes, competia-te ficares na mata do Poidom, aí emboscarias esse grupo, acaso fosse atacado o acampamento. Ao amanhecer, vocês ouviram um forte tiroteio, e cerca de meia hora depois apareceu o contingente que atacara a casa de mato, houvera um acidente, morrera um dos soldados logo à entrada do acampamento, e tu descreves o transporte do morto numa padiola, lembrou-te uma marcha fúnebre, um caminhar por dentro da mata densa para fugir aos trilhos potencialmente armadilhados e assim regressaram ao Xime e partiram logo para Bambadinca; posso estar equivocada mas entre agosto e os primeiros dias de outubro encontrei referências a cinco pequenas flagelações a Missirá e uma a Finete, flagelações pequenas, morteiradas, só numa delas é que se aproximaram com espingardas metralhadoras junto dos cajueiros, em frente à porta de armas.

As idas a Mato de Cão prosseguem, é uma rotina estafante, para não parares as obras em Missirá há que permanentemente negociar com as milícias de Finete de gente que também vai a Mato de Cão. Paulo, estive ontem a ler aquele episódio em que ao alvorecer, tu irias diretamente de Missirá para Mato de Cão com quinze homens, ao sair do abrigo deste com o pelotão completamente formado em U, à porta, bem indumentados da cabeça aos pés, percebeste que havia ali coisa séria, regressaste ao abrigo para igualmente te bem indumentares, regressaste e perguntaste ao que vinham, o porta-voz era o cabo Domingos da Silva, só estavam presentes os militares guineenses, queriam lembrar a nosso alfero que o pelotão nascido em 1966 tivera em Porto Gole e Enxalé, após um ano tinham vindo para Missirá, não regateavam trabalho, não estavam revoltados contra nosso alfero, mas queriam uma mudança para Bambadinca, estavam cansados. Tu escreves nos teus apontamentos que o cabo Domingos estava verdadeiramente inspirado, vieram ao de cima os seus dotes de orador, tu apercebes-te que há plena legitimidade no pedido deles, mas sentes o prenúncio da despedida, e não vale a pena dizeres-lhes que a canseira não abrandará, eles certamente já falaram com quem faz intervenção no setor de Bambadinca, é-se pau para toda a colher, tu próprio ouves queixumes de quem por ali anda a apoiar o ordenamento dos Nhabijões, nos patrulhamentos e nas emboscadas, nas intermináveis colunas dos regulados próximos com toda a sorte de carregamentos, e não faltará a participação nas operações ou colunas de reabastecimento ao Xitole. Sublinhei uma frase tua, a respeito da resposta que lhes deste para tal reivindicação: “Se for essa a determinação do comandante de Bambadinca, vou com vocês, mas deixo o meu coração aqui”. Neste momento estou a juntar o que falta de setembro, fiquei apavorada com o colapso nervoso que tu descreves de um teu colaborador de nome Casanova, assim que os apontamentos estiverem ordenados, como de costume pedirei esclarecimentos e darei conta do produto final, tanto quanto me é dado perceber vocês só irão para Bambadinca em meados de novembro.

Trabalhei hoje na Rue Stevin, muito perto das instituições da Comissão Europeia, o presidente da sessão disse ter necessidade de fazer uma pausa de duas horas do tempo do almoço, havia que negociar um documento final com um conjunto de países que estão a pedir adesão às Comunidades Europeias, como tu sabes vão entrar um grande número de países da Europa de Leste, Malta, Chipre, etc. Desisti de ir almoçar ao refeitório do Edifício Berlaymont, havia sol e uma temperatura amena, fui passear para o Parque do Centenário, levei duas sandes e uma garrafa de água, não me esqueci de um pedido teu, quando acabar a reunião, tenho que fazer comprar na Rue Neuve, e irei rezar na Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, dizes-me que sempre que podes quando estás em Bruxelas aqui vens rezar os teus mortos e pedir mais fé no teu amor a Deus. Assim será, está prometido. Mando-te estas imagens do parque, sei que muitas vezes por aqui tens passeado. Quero informar-te que a previsão meteorológica para o tempo da Páscoa é bastante má, frio e aguaceiros, talvez seja conveniente reconsiderarmos os tais dias nas praias do Mar do Norte e nas ilhas holandesas, programas mais caseiros, exposições não faltam, podíamos ir num dia que não haja chuva à região das Ardenas e almoçar em França, já que tu gostavas de visitar a Basílica de Avioth, podíamos voltar a Orval, tu gostaste muito.

Que saudades tenho de ti meu querido, às vezes penso (talvez esteja a ser imprudente) que nos podíamos reformar mais cedo e vivermos tanto em Lisboa como em Bruxelas, não havia acréscimo de despesas, embora isso significasse redução de proventos. Mas gozaríamos da companhia um do outro, sem maltratar as ajudas que dedicamos aos nossos filhos. Conversaremos a seu tempo, se achares bem, não escondo a impaciência de ter-te sempre ao pé de mim. Vamos então conversar sobre as férias, valeu? Hoje janto com dois irmãos da minha família de adoção, em Anderlecht, amanhã telefono-te, preciso de ouvir a tua voz, sentir o sopro do teu amor, bisous, milles et plus milles, Annette.
Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, Bruxelas
Escultura de Constantin Meunier, O Ceifador, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Pormenor de escultura, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Arco do Triunfo do Parque do Cinquentenário, Bruxelas, nas colunatas à volta funcionam museus
A Esfinge Misteriosa, Museus Reais de Arte e História, Parque do Cinquentenário, Bruxelas
Entrada do antigo Quartel do Centro de Instrução Militar, Bolama
Aqui funcionou o Centro de Instrução Militar de Bolama, onde se prepararam os soldados de Paulo Guilherme
Imagem dos Rápidos de Cussilinta/Saltinho, a ponte e o Corubal
Um prisioneiro, fotografia oferecida ao blogue Ephemera, de José Pacheco Pereira, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21919: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (40): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

paulo santiago disse...

Mário
Na foto,são os rápidos e a ponte do Saltinho.
Cussilinta,fica mais juzante.

P.Santiago