segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13806: Notas de leitura (645): “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, organizadores Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Temos aqui uma visão sequencial do desenvolvimento urbano de Luanda e Lourenço Marques, mas os olhares dos historiadores, sociólogos e antropólogos convocados nesta publicação vão do antes ao depois, há um estudo interessantíssimo sobre o que se passou no norte de Angola a seguir aos acontecimentos de 1961, quando se tratou do planeamento urbanístico para os milhares de foragidos que entretanto regressaram; e há a Lisboa dos anos 1940 e 1950 e 1960, A Casa dos Estudantes do Império, o impacto da cidade nesses africanos já tocados pela ideia independentista e pan-africana; e o depois do termo do império, o modo como os guineenses procuraram vínculos de pertença na área metropolitana de Lisboa.
Muito interessante.

Um abraço do
Mário


As cidades do Império Português e depois

Beja Santos

O livro intitula-se “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, os organizadores são Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70, 2013. Reúne estudos de historiadores, antropólogos, especialistas em estudos pós-coloniais e outros cientistas sociais. Os organizadores explicam o objetivo da obra: “O estudo do urbano permite identificar o modo como a dinâmica de urbanização colonial e pós-colonial no espaço português se integra num conjunto de tendências que acompanha o sistema-mundial (…) As cidades coloniais constituem-se como centros de administração e de poder colonial e como locais de fluxo e bens e serviços. São importantes locais de transferência da cultural imperial e capitalista moderna para novos espaços. Não obstante, o urbano colonial e pós-colonial governado por Portugal foi e é também um espaço de criação de autonomias, de projetos e resistências, de circulação de pessoas, hábitos, ideias, de apropriação e adoção de práticas e representações”. Em sequência, o autor encontrará o estudo de cidades africanas do colonialismo português, as lógicas do ordenamento do território e da integração social, cidades com um centro europeu ou “civilizado” e uma grande e precária periferia, o típico universo africano. Os organizadores observam que “A influência política de outras potências coloniais, bem como de organizações internacionais, sobre o rumo do colonialismo português, a presença de inúmeros estrangeiros no quadro de decisão institucional económica e política e a influência dos quadros económicos regionais revelam que o colonialismo era um projeto global. As redes urbanas africanas, as que ligavam, por exemplo, Moçambique e Angola à África do Sul, à Rodésia ou ao Congo, criaram autonomias próprias que reproduziam o ritmo do colonialismo internacional”. Mas a experiência imperial teve uma poderosa ressonância no tecido metropolitano, basta pensar nos importantes fluxos migratórios e no pós-colonial emergiu uma cultura nostálgica, há imigrantes cabo-verdianos, angolanos, guineenses e são-tomenses, sobretudo, temos hoje uma cidadania lusófona e nas cidades pós-coloniais replicam-se formas de organização que recordam o sistema colonial urbano. A memória imperial tem mais significado do que muitos pensam, envolve narrativas como o Mosteiro dos Jerónimos, o Padrão dos Descobrimentos, a Expo 98, por exemplo.

Os investigadores que intervêm neste livro asseguram capítulos sobre a presença portuguesa em África no século XX, caso de Luanda e Lourenço Marques; fala-se da reação portuguesa aos levantamentos no Norte de Angola, em 1961, e, como escrevem os organizadores “Dos relatórios políticos e administrativos, emerge uma conceção estatal das populações locais. Enuncia-se a lógica do exercício político que junta a coerção e a violência a técnicas de urbanização, de reordenamento do território e de povoamento”; fala-se de Mueda, no Norte de Moçambique, sobre o que sobrou das antigas cidades da Índia portuguesa no final do século XIX, a partir do olhar de um historiador goês estabelecido em Bombaim. Noutro ângulo, impõe-se olhar para Lisboa onde, a partir da década de 1940, onde se juntou um grupo de estudantes das colónias africanas. Escreve-se o seguinte: “O espaço criado pelo Estado Novo para formar elites coloniais, a Casa dos Estudantes do Império (1944-1965) foi para estudantes, tais como Mário Pinto de Andrade, Alda Espírito Santo, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Noémia de Souza e Amílcar Cabral, o local de maturação de um conjunto de ideias sobre a condição dos seus territórios e populações. A Lisboa triste do salazarismo surgia para estes jovens como uma zona de contacto, um espaço moderno de leituras e partilhas. A geografia da cidade ficou marcada por um conjunto de percursos africanos, de encontros políticos, consumos literários e trocas teóricas que circulavam por cidades europeias: a negritude, o pan-africanismo, o marxismo, o nacionalismo. No coração do Império colonial português, mau grado as diferenças que os separavam – a origem, a cor da pele, a classe social – os estudantes discutiram o futuro do continente africano que dispensava tanto a soberania portuguesa como a dos outros Impérios coloniais”.

E chegamos à Lisboa contemporânea, a partir de 1975 o legado do poder colonial passou a ser manifestamente visível nas pessoas, nos restaurantes, nos novos hábitos, nos alimentos importados. São populações emigrantes que procuram adaptar-se e conquistar o seu lugar na cidade, trazem saberes e procuram avidamente a coesão étnica ou a imisção sem complexos, nasceram barracas, procedeu-se à autoconstrução, organizaram-se guetos, estabeleceram-se ágoras, os guineenses podem ser vistos a qualquer hora do dia no largo de S. Domingos. Bairros degradados tornaram-se nos espaços de acolhimento desses novos migrantes.

Enfim, o leitor parte pelas construções coloniais, visita as casas angolanas e aprecia a atitude colonizadora em diferentes regiões, pode comparar com as habitações destinadas aos funcionários coloniais, apreciar a evolução da arquitetura angolana; segue-se Lourenço Marques, também uma cidade segregada com os seus organismos e o seu sistema de coerção; os acontecimentos de 1961, no Norte de Angola, dão azo a perceber como o regime se viu obrigado a criar novos mecanismos de controlo da vida social indígena, assistia-se ao retorno inesperado de milhares de africanos “das matas”, havia que estabelecer uma nova política habitacional e de vigilância. O leitor não ficará insensível à visita ao Império Português da Índia na segunda metade do século XIX, é uma viagem espantosa, a que nos proporciona o goês Gerson da Cunha. Lisboa, ao tempo da Casa dos Estudantes do Império, é um local de encontros que irão preparar as lutas de libertação, aqui se adquiriu consciência de que estavam a germinar sonhos nacionais e afiliações transnacionais, dois nomes sonantes do independentismo, Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral, aparecem por Lisboa, aqui debatem com os outros a luta que os espera. E daqui partem para outros lugares: Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos irão até Paris, Lúcio Lara e Viriato da Cruz até a Alemanha, Cabral circulará por Londres, irá até ao Norte de África e daqui partirá para Conacri, todos estes dirigentes se irão encontrar temporariamente em Argel, Rabat, Cairo, Adis-Abeba, Tunes, Acra ou Dar es Salam. E chegada a independência, cresceu a diáspora, o leitor irá encontrar várias ideias de África em Lisboa, por exemplo, vivências habitacionais como em tabancas, surgirá o fenómeno da “barraca pós-colonial”. Está concluído o ciclo à volta da cidade como objeto de investigação desde as sociedades coloniais até ao desabamento nas metrópoles em contextos pós-coloniais. Um estudo profundo, original, que seguramente catapultará novos estudos. Magistralmente organizado e de uma inegável polivalência para os estudos sobre o Império português e o depois.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13793: Notas de leitura (644): "O Mundo em AZERT - cadernos de um repórter”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984 (Mário Beja Santos)

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