sábado, 1 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13835: (Ex)citações (245): Dia dos Fieis Defuntos: o povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

 1. Comentário de Francisco Baptista ao poste P13833 (*):


[ Foto à esquerda, Francisco Baptista, ex-alf mil inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); transmontano de Brunhoso, Mogadouro


Quando eu era garoto, em Brunhoso, os mortos tal como os vivos tinham um tratamento pobre. No cemitério não havia campas nem jazigos. Minto,  havia somente dois jazigos de duas famílias mais ricas. A minha avó paterna, viúva desde os 40 anos, farta de amealhar DINHEIRO das tiragens da cortiça, que nunca dividiu com os filhos, também quis ser rica depois de morrer e vai daí mandou construir um grande jazigo para família.

Esse jazigo foi construído teria eu oito ou nove anos, a minha avó terá durado mais dois ou três. Nesse tempo os mortos eram enterrados, os ricos com grande pompa com missas celebradas por muitos padres, os pobres somente com o padre da paróquia. Não havia carros funerários nem para uns nem para outros, os parentes próximos, com possibilidades fisicas, transportavam a urna.

Não havia flores para o morto, a gente da minha terra nesse aspecto era muito prática, para quê flores se o morto não as vê. Havia muita gente da aldeia, quase toda, e das aldeias próximas, que aumentava na medida da riqueza ou do prestigio do morto. No cemitério o padre rezava os responsos, à medida que as moedas de uma croa ou mais iam caindo na bandeja. Finda a cerimónia cada um ia à sua vida e o morto ficava no seu descanso.

No dia de finados, dia 2 de Novembro, instituido há secúlos pela Igreja Católica ( o dia 1 de novembro sempre foi o dia de todos os santos, talvez por ser feriado as pessoas dos grandes centros passaram a homenagear os seus mortos nesse dia). A minha aldeia mais obediente à curia romana homenageava os seus mortos no dia dois. De manhã cedo o padre rezava a missa e no final ia com todos os crentes em procissão ao cemitério onde rezava alguns responsos a pedido de uns e de outros.

No final as pessoas tinham o dia livre para poderem ir para as suas fainas. Ninguem tinha a preocupação de arranjar as campas onde a erva crescia por vezes a bastante altura já que não havia animais que a pastassem. Se os falecidos não se incomodavam com o aspecto do cemitério, e aquele relvado com papoilas, malmequeres e outras flores até nem era feio, porque se haviam de incomodar os vivos. Até um dia em que o coveiro pela primavera vendo erva tão tenra e viçosa no cemitério decidiu meter lá duas mulas que tinha, de noite. Alguém do povo viu e espalhou a notícia e o povo que no seu intimo e nas suas orações respeitava muito os seus mortos, mesmo sem os visitar nem lhes enfeitar as campas, não gostou e despediu o coveiro.

O povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada, é a melhor terra da aldeia, a terra dos seus antepassados ou filhos e não deve ser pisada por outros animais além do homem.



Portugal > Bragança >  Mogadouro > Brunhoso >  Terra com história, património e gente de carácter. Foto de Aníbal Gonçalves, grande divulgador da sua região, em particular o nordeste transmontano. Professor, alia a fotografia ao geocaching.  É natural de Bragança, vive em Vila Flor. Tem página no Facebook. Cortesia da sua  página dedicada a Brunhoso.

Isto,  camarada Luís Graça, poeta e escritor que aprendi a admirar muito para lá de reticências e preconceitos iniciais, é o poema sem rima e a prosa que não explica tudo do manancial que os povos de todas as latitudes têm para expressar a sua compreensão do sagrado, do eterno, enfim desse grande abismo que nos aguarda.

Eu, como tu,  gostava de encontrar lá esses jovens que morreram na Guiné dos nossos tempos, nessa guerra anacrónica mas em que muitos acreditaram que eram uma guerra patriótica e eu,  respeitando as ideias e a forma de sentir de uns e outros,  digo que viva Portugal.

Para acabar,  amigo Luís Graça quero dizer-te que gostei do teu poema tão expressivo e tão longo, e desejar-te muitos anos de vida, para que a tua voz não se cale e que continue a lembrar e homenagear esses nossos camaradas que tão novos nos deixaram e que com eles levaram parte da nossa alma e da nossa vida.

Um grande abraço, Francisco Baptista.



Portugal > Bragança > Mogadouro > Brunhoso > Cemitério local > 5 de novembro de 2011 > "A tradicional visita ao cemitério que costuma fazer-se no Dia dos Fieis Defuntos (que foi no dia 2 de novembro)". Foto de Aníbal Gonçalves. Cortesia da sua página dedicada a Brunhoso, freguesia do concelho de Mogadouro, distrito de Bragança.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2014 >  Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41):Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

5 comentários:

Anónimo disse...

Francisco Baptista
1 nov 2014 22:14


Camarada e amigo Luís, se puderes, se para tal achares que tem qualidade, gostaria que editasses este texto, em resposta ao teu tão longo e belo poema e em homenagem aos nossos camaradas que morreram nessa terra vermelha e quente da Guiné e em homenagem às gentes da minha aldeia a maior parte tão humilde na vida como na morte.

Um grande abraço
Francisco Baptista

Luís Graça disse...

Francico: Não foi preciso "meter cunha"... Só agora, de manhã, li a tua mensagem. Já ontem às 20 e tal da noite tinha feito o teu poste...

Fico com ganas de conhecer a tua terra maravilhosa e as tuas nobres gentes... Eu, que tenho a mania de conhecer Portugal inteiro, de lés a lés, nunca fui a Brunhoso... Já andei lá perto, mas não é a mesma coisa. Tirando as Berlengas, a Madeira e os Açores, há ainda 89 mil quilómetros quadrados de Portugal para explorar e conhecer pelos portugueses...

Bom domingo. Luis

Luís Graça disse...

Mandei uma mensagem para a página do Facebook do Aníbal Gonçalves:

Obrigado, Aníbal, pelas fotos de Brunhoso. "Emprestadadas". É por uma boa causa. Mas o autor está lá, citado e elogiado. Um abraço transmontano do lisboeta Luís Graça.

Anónimo disse...

Mais uma interessante descrição dos tempos idos, agora em cenário funéreo mas, mesmo assim, uma tela agradável de se mirar - estão ali a rudeza da vida e o conformismo com a morte, o respeito por aquela e por esta. É Trás-os-Montes no seu melhor.

Um abração
Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

Em aditamento:

No lugar da Ponteira, concelho de Montalegre, ainda na década de setenta, havia a tradição de, no fim do funeral, à porta do cemitério, a família da pessoa falecida distribuir um pão por cada pessoa a quem também era dado a beber vinho por uma malga. Parece-me que o tamanho do pão variava com as posses da família.
Um abração
Carvalho de Mampatá