1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2010:
Queridos amigos,
Não sei se não estou a ir por um caminho perigoso nestes preparativos de viagem.
A verdade é que se já instalou alguma confusão entre a realidade e a ficção. Mas este mapa existe, encontrei-me de facto com o Sousa Pires e até estou a ler o André de Faro. Mas preferia ter a imaginação mais solta e preparar-me para as pessoas e locais que não visito há décadas, conhecer até as pessoas que me procuraram aniquilar. Vamos ver.
Um abraço do
Mário
Operação saudade 2010 (4)
Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (2)
Beja Santos
31 de Outubro
O furriel João Sousa Pires foi um dos meus mais dilectos colaboradores, tanto no Cuor como em Bambadinca. Não só me ajudou nas idas a Mato de Cão, como, sobretudo ao nível das entediantes fainas administrativas, foi um leal arrimo na logística e na pagadoria. Quando comecei a escrever os meus diários sobre a comissão militar, contei novamente com a sua devoção e solicitude. Encontrávamo-nos na Livraria Barata, ao fim da tarde. Agora, surpreendi-o completamente com a nova viagem à Guiné. E voltamos a encontrar-nos na Livraria Barata. Trazia-me um presente, uma carta da Guiné datada de 1933, reedição do Instituto Geográfico do Exército. É espantoso como aquela região se transfigurara em 30 anos. Como é natural, fixei-me na região do Cuor e na de Bambadinca. Coisa estranha, o Cuor aparece com o nome de Gufié e as povoações mais importantes eram Sambelchior ao pé de Enchalé. Mais acima, no que é hoje o Cuor, destacam-se os nomes de Sambel Nhantá e Caranqué Cunda. Ao fundo, Aldeia do Cuhor. Na região de Bambadinca, a maior parte dos nomes das povoações são irreconhecíveis. Mas aparece o Xime e Chitoli. Há pouquíssimas estradas, o Cuor até à região do Oio só tinha picadas. Será que estas disparidades em nomes das localidades não foi um puro delírio do geógrafo e dos topógrafos? É facto que na documentação que eu consultei sobre o Cuor se referia a importância de Sambel Nhantá e Caranquecunda, na campanha militar de 1908 aparecem claramente mencionadas, Infali Soncó viveu em Sambel Nhantá (que eu visitei, na carta geográfica aparece com o nome de Sansão, em 1968 só havia vestígios de algumas hortas do passado) e em Caranquecunda ficaram os soldados macuas e do regimento de infantaria de Bragança.
Vi-me em apuros para identificar alguns dos locais por onde andei e aonde quero voltar. Embora esteja datado de 1933, muito certamente este mundo era muito mais anacrónico, deviam ser dados ainda do século XIX ou até anteriores.
O Pires voltou a um dos assuntos que sempre abordou com entusiasmo nas nossas conversas: a pobreza de instalações de Missirá, aquele absoluta falta de conforto onde, sobretudo depois dos grandes incêndios de Março de 1969, fomos pondo solidez, segurança e habitabilidade. O Pires nunca entendeu a ira do Spínola e do Felgas quanto ao estado do quartel, aquilo era mesmo uma tabanca onde, pela força das circunstâncias, se tinham incrustado algumas instalações militares. Encolhi os ombros, tenho essa perplexidade já resolvida, nunca aceitei pôr a população em gueto, tanto mais que a generalidade dos soldados tinha ali as suas famílias.
Gosto muito desta fotografia: tinha feito 24 anos, nascera um dia cheio de sol, o que parecia ser uma simples coluna de abastecimento transformou-se numa viagem até ao Enxalé, cuja estrada estava fechada ao trânsito há cerca de dois anos. Estou de braço dado com Djassió Soncó, recentemente falecida. Aliás, dos 4 desta fotografia sou o último dos vivos.
À despedida, mostrei-lhe a fotografia que ele me tirou, de braço dado com Djassió Soncó, a mulher do irmão do régulo, com o Trilene ao fundo. Não havia que enganar, no verso da fotografia consta o nome Foto Pax, Beja, foi ele que mandou revelar, veio de férias. Lembrava-se da odisseia daquela ida a Mato de Cão com viagem até ao Enxalé, para muita fúria do pessoal guerrilheiro em Madina, que há cerca de dois anos não via aquela estrada frequentada por viaturas.
À noite voltei a arrumar papéis. Descobri uma fotografia que logo separei para juntar aos materiais que têm a ver com a minha estadia em Ponta Delgada, entre 1967 e 1968. Era o juramento de bandeira, perto do Natal, não havia altifalante, bradei aos céus pelo megafone. No verso, envio uma saudação natalícia à minha querida Mãe, agradecendo tudo o que ela tinha feito por mim.
Estamos perto de Natal de 1967, impontaram-me o discurso do juramento de bandeira daquela recruta, no Batalhão de Infantaria Independente, n.º 18. Voltei lá em Julho deste ano, aproveitei uma viagem de trabalho para ir vasculhar elementos para o meu livro. Esta estrutura foi ligeiramente alterada, mas mesmo assim é ali que têm lugar as sessões solenes da unidade.
traquitana, no porto de Bissau, quase houve um acidente terrível, partiram-se as cordas e uma das caixas entrou no batelão de chofre, o David Payne escapou por um triz. São insignificâncias, mas são as minhas insignificâncias, naquelas caixas seguiam o que eu tinha de mais precioso, os livros comprados ou oferecidos, a mais doce das companhias. Ainda hoje o Cherno me fala nas cinzas da minha morança. Eu repondo-lhe: “Não foi assim tão mau, ainda lá achei uma moeda de prata de 20 escudos, que mais tarde dei à minha filha”.
É muito estranho o modo como eu estou a preparar este regresso à Guiné, mistura a todo o momento o que estou a escrever para o livro com as notas das missões a que me proponho. A “Peregrinação de André de Faro à Terra dos Gentios” é a história, mal comparada, de um aventureiro tipo Fernão Mendes Pinto que andou pelas terras da Guiné, isto no tempo da regente Luísa de Gusmão. Esta peregrinação será escrita no hospício de Cacheu e o caderno manuscrito, datado de 10 de Agosto de 1664, irá parar a um convento de Vila Viçosa. Uma viagem num simples patacho, correndo todos os riscos possíveis, passaram pelas Canárias e Cabo Verde, assim chegaram ao Cacheu. A Guiné é uma terra de ídolos, os missionários não têm sucesso na sua pregação. André de Faro percorre a costa acidentada da Guiné. É um relato de mártires, um registo de usos e costumes, uma exaltação da fé evangelizadora, a descrição de reinos estranhos e até dos sertões da Guiné. Vou ler tudo minuciosamente, a ver se André de Faro pode entrar na Viagem do Tangomau, há sempre circunstância feliz para dois aventureiros se encontrarem em qualquer ermo do mundo e esbaterem as distâncias, criando amizades.
E agora vou-me deixar de efabulações, tenho que trabalhar para o blogue sintetizando as memórias do Luís Cabral.
Assim seja.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7232: Notas de leitura (166): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (3) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7228: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (3): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1) 30 de Outubro
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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