segunda-feira, 11 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1833: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (49): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (4)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > Espectacular vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, havia um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca, e nomeadamente na zona do Mato Cão. Este troço era um pesadelo para as embarcações civis. Durante largos meses, o Pel Caç Nat 52 assegurava o patrulhamento, quase diário, desta zona. Será depois substituído pela CCAÇ 2590/CCAÇ 12, colocada em Bambadinca nos finais de Julho de 1969.

Em carta enviada à noiva, Cristina Allen, o comandante do Pel Caç Nat 52, Mário Beja Santos, escreve: Resisto, mas ando de rastos, não sei como hei-de pôr ordem nesta existência automatizada a ir vigiar barcos junto ao Geba ou estar dentro de água à noite à espera do inimigo que não vem atacar-me junto de Missirá. Desde que nos retiraram mais 10 milícias sem quaisquer contrapartidas fazemos das tripas coração. Chego a ir a Mato de Cão com 18 homens. (LG)

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


49ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 17 de Maio de 2007.

Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (4)
por Beja Santos (1)

Para Paulo Ribeiro Semedo, no Hospital Militar Principal >

Paulo, querido amigo,

Recebo notícias tuas pela Cristina e pela minha irmã, que te dedicam particular estima. É por elas que soube que a operação aos teus olhos correu bem mas continuas a falar pouco. Em nome de todos os teus amigos de Missirá, peço-te o favor de não adiares por mais tempo os teus deveres de amizade, ao menos escreve ao Domingos e ao Uamsambo, que nunca mais esqueceram o bravo 40.

Por aqui, o quartel está muito bonito, mas temos muitos militares doentes na época das chuvas e com a canseira das idas diárias a Mato de Cão e emboscadas nocturnas. Ussumane Baldé e Gibrilo Embaló, teus camaradas de cubata, querem que te diga que o primeiro abrigo foi deitado abaixo e, se houver flagelação, será mais fácil reagir ao fogo nesta construção mais segura.

Espero poder no próximo mês de Julho mandar-te o gira-discos por um Cabo da CCS de Bambadinca que vai de férias, a minha mãe tratará do conserto para que rapidamente possas matar saudades das tuas mornas e coladeras. Os teus amigos querem que te mande mais um disco do Bom Assim, bem como o teu álbum de discos. A situação militar do nosso sector está a piorar, no Xitole/Saltinho há muitas flagelações, as tabancas de Mansambo estão a ser flageladas, o mesmo se passa entre Xime e Amedalai.

Encontrei há dias em Bambadinca o Zé Pereira que trabalha no Xime, ele manda-te um grande abraço, está roído de saudades de Missirá. O teu amigo, o Furriel Casanova, bem como o Mamadu Camará andam doentes, o primeiro com uma grande tristeza, o segundo anda cheio de paludismo.

Peço-te que não me deixes sem notícias tuas, quem me escreve e fala de ti é o Jolá Indjai, que continua aí, nas doenças infecto-contagiosas. Continuo sem perceber porque é que não somos atacados em Mato de Cão, embora seja muito difícil emboscar-nos pois percorremos sempre caminhos diferentes. Mas há dias, entre Gambaná e Mato de Cão os nossos vizinhos de Madina puseram uma mina anti-carro num pontão, devem-nos ter avistado ao longe, tentaram fazer saltar a mina, mas nada aconteceu.

Dentro de dias vou a Bissau, por causa do julgamento do Ieró Djaló, que adormeceu na operação que fizemos a Madina e em que o Fodé Dahaba ficou muito ferido, quando acordou o prisioneiro tinha fugido. Espero então trazer um gerador para Missirá, e acabarmos então com o tormento de acendermos os petromaxes debaixo de chuva. Aceita um grande abraço deste amigo que só te quer bem e com muito mais saúde.

Para o Carlos Sampaio > Inesquecível amigo,

Os teus livros chegaram e já os devorei. A leitura, tal como a oração, é um refúgio e um bálsamo para a alma. Ando sempre com livros embrulhados em plástico, na tentativa vã de eles resistirem às chuvas ou aos campos alagados dos arrozais. Às vezes, quando estamos a esperar os barcos que passam pelo Geba, não resisto a ler umas páginas seja de autores clássicos seja dos poetas da nossa geração, como o Gastão Cruz ou a Fiama.

Um dos quartéis de que sou responsável, e que ficou praticamente destruído em Março passado, está já de pé, foi um esforço enorme desde o final de Março até ao fim de Maio, sem dias de descanso mas foi muito bonito ver civis e militares aceitar este sacrifício para não ficarmos na época das chuvas em condições ainda mais deploráveis.

Carlos, ajuda-me com o teu conselho já que podes conversar aí com a Cristina, embora eu saiba que estás muito tomado com o preparativo desse batalhão com que vais para Moçambique. A Cristina insiste em vir para Bissau e dar aulas, até eu me poder juntar. Acontece que ninguém fala na minha transferência, antigamente um militar passava cerca de 12 meses em teatro de operações, consta que doravante não vai ser assim, podemos andar a comissão toda em locais de muito risco. Não me sinto no direito de a deixar num estado grande de ansiedade e inclusivamente ficar sozinha até meados do ano que vem.

Como tu irás certamente experimentar, a guerra é por natureza absorvente: com os militares só falas de guerra, tens que estar permanentemente atento se há comida bem feita na messe ou falta arroz à população civil, levar as crianças e os doentes à consulta médica, há que conversar e estar atento aos problemas das autoridades civis, há que cuidar da segurança do quartel, é um estado de espírito dominado pelo serviço aos outros. Não vejo, pois, circunstância de apoiar este projecto da vinda para Bissau. Prometi à Cristina ir a Bafatá tratar dos documentos na conservatória, mas peço do coração que me ajudes a ver melhor todo este quadro, e diz-me com sinceridade se a minha inquietação tem fundamento.

Não ando bem de saúde, tenho a tensão baixa, ando cheio de líquen, micoses, durmo mal, precisava de uns dias de repouso, não chega tomar tónicos ou vitamina C. Os quartéis à minha volta estão a sofrer muito com os ataques dos rebeldes. Estes, descobriram uma nova modalidade de atacar os barcos militares e civis que circulam no Geba, já não os atacam em Mato de Cão, põem-se num extremo acima de uma povoação chamada Xime de onde disparam os seus rockets, semeando o pânico.

A guerra aqui agrava-se muito e confundo-me os ataques que os rebeldes fazem às populações em autodefesa. Hoje não te maço mais, agradeço toda a tua ajuda, é para mim impensável viver sem a tua grande amizade. Deus te ajude na tua comissão que vai começar em breve.


Para Cremilde Tapia, em S. Miguel

Querida Bibi:

Peço-lhe desculpa por andar a escrever tão pouco, o estado de saúde não é dos melhores. Todos os dias penso em si, quando mexo no crucifixo que me ofereceu antes de partir para Lisboa. Já não vale a pena limpá-lo, a prata não resiste a estes 40 graus em que diariamente ando daqui para ali, no mínimo 25 quilómetros. Louvo a este crucifixo que me tem preservado a vida, dando-me ânimo para suportar todas estas contrariedades.

Diz-me na sua carta que me espera ver em Lisboa. Infelizmente, só nos veremos para o ano já que fui punido e tenho pouca esperança em que os meus argumentos sejam considerados e o castigo retirado. A guerra aqui entrou numa nova fase, os rebeldes estão muito activos, atacam constantemente os aquartelamentos e os povoados na outra margem do Geba. Sei praticamente de tudo porque oiço os rebentamentos aqui, a qualquer hora do fim da tarde e até de madrugada. É horrível nada poder fazer, ficamos angustiados com o sofrimento dos outros mas impotentes.

Ainda a noite passada vi as colunas de fumo subirem para o céu, pensámos logo na perda de vidas e na destruição que tais flagelações provocam. Não entendo muito bem como é que depois estes militares, os meus superiores, se indispõem uns contra os outros, castigam-se, desprezam-se, e certamente esquecem que nós estamos a ver e não ficamos lá muito moralizados.

Diz-me também na sua carta que me quer enviar livros e pergunta-me o que eu gostaria de ler. Lembro-lhe que me ofereceu O Senhor, de Romano Guardini que ardeu em Março passado. Teria muito gosto de ter esta grande companhia, se não estiver a abusar do seu dinheiro. Há vários livros da Moraes Editora que também me tentam e que têm a ver com o pensamento pós-conciliar. Estou totalmente aberto à sua generosidade. Hoje e amanhã vou escrever à Maria e ao Marino, na rua de Santa Clara 2, e ao Padre Agostinho. Receba toda a ternura deste seu amigo que só lhe deve generosidade e que lembra sempre o bem que lhe fez aí em S. Miguel.

Para o Ruy Cinatti > Ruy, Dear Father:

Não começo com ciúmes com o Teixeira da Mota só porque ele escreve torrentes de cartas. Ele é assim, não há competições, cada amizade tem o seu lugar. Obrigado pelas suas observações, criticando o excesso de palavreado em que ando autocentrado. Comoveu-me a sua resposta para contrariar a minha enxúdia culta ou pseudo-culta, enviando-me alguns dos seus poemas, de uma secura à chinesa, carregadinhos de força. Por exemplo,

Ao nascer, iguais
Dizem à ... e ao morrer
Devido a quais
os casos angélicos?


De um poema seu:

Donde sei
para onde
não se sabe
sou retirante.

O resto
irá por carta
ou por telefone

Que outros relatem
o meu cansaço
Eu anuncio
o poder da morte
lembrando tudo o que
me prende à vida

Viver a pedir,
receber, porquanto
quem recebe deve.
- estranha condição

Eu nunca pedi.
Devo solidão.


Sinceramente, agradeço-lhe ter posto em tão bela poesia pedaços dos meus sentimentos que vazo nos meus escritos. Li mais um dos livros que me mandou, Sábado à Noite e Domingo de Manhã, por Alan Sillitoe. Sei muito bem que V. gosta muito da literatura britânica mas não o sabia aficcionado pela cultura operária do pós-guerra. Este herói-menino, Arthur Seaton, é bem um paradigma de uma geração que rompe com os valores da solidariedade estreitada pela guerra. Bebe, goza o dia sem consequências para amanhã. Corteja as mulheres dos outros e diverte-se, com a agravante de parecer simpático com os maridos. Por fim, cede ao desgaste de um vida conduzida a extremos e aceita novos vínculos familiares como se tivesse ido buscado, ele que é pescador nos tempos livres. A tradução parece-me primorosa.

Logo que possa vou pegar nos poetas franceses que me mandou. Desculpe ser breve mas ainda não me recompus da minha baixa tensão. Estamos cade vez menos a poder saír para os patrulhamentos ou para as emboscadas, o transporte de comida e materiais é um suplício com as estradas encharcadas e as bolanhas na sua plenitude. Estou cada vez mais descrente de poder ir a Lisboa, este ano. Obrigado por todo o estímulo que me dá, pela oferta da sua bela poesia que eu gostaria um dia de poder imitar. Um grande abraço do gadulha para o Dear Father.


Para a Cristina Allen > Meu adorado amor:


Resisto, mas ando de rastos, não sei como hei-de pôr ordem nesta existência automatizada a ir vigiar barcos junto ao Geba ou estar dentro de água à noite à espera do inimigo que não vem atacar-me junto de Missirá. Desde que nos retiraram mais 10 milícias sem quaisquer contrapartidas fazemos das tripas coração. Chego a ir a Mato de Cão com 18 homens. Não querendo deixar-te mais intranquila, isto parece um convite a uma desgraça se houve uma emboscada bem montada. Há dias senti-me tão indignado que fui falar ao Pimbas, chegando mesmo a pedir-lhe para me tirar daqui. Ele procurou tranquilizar-me dizendo-me que está uma companhia de tropa africana a ser formada em Contuboel e que em breve vou ser aliviado nas idas a Mato de Cão.

Espero que tenhas ido visitar a D. Maria Alzira, ela dá-nos excelente companhia na messe, faz petiscos e introduz uma nota de urbanidade com conversas que nos fazem esquecer o palavrório da guerra. Espero ir em breve a Bafatá tratar da documentação, embora não resista a dizer-te que estou muito indeciso quanto à bondade desta tua vinda como professora em Bissau, ignorando eu o meu futuro em teatro de operações. Vamos pensar bem.

Ando exausto, Cristina. O Casanova não me pode ajudar como me ajudava, está presentemente a descansar uns dias em Bambadinca, anda muito acabrunhado, quem me ajuda mais agora é o Pires, eu vou a Mato de Cão e ele coordena a emboscada ou vice-versa. A minha concentração diminuiu, defendo-me ouvindo música ou com leituras aligeiradas. Li um livro de uma nova geração de escritores britânicos que me impressionou muito, Sábado a Noite e Domingo de Manhã, por Alan Sillitoe. Já vira o filme realizado por Karel Reisz em que o Albert Finney era o protagonista. Grandioso filme mas não menos vigoroso romance sobre o actual operariado inglês.

O que leio é mais distractivo, menos comprometedor. Ando agarrado aos romances de Mickey Spillane e ao seu detective que actua como justiceiro solitário, Mike Hammer. Desta vez, em A Minha Arma Não Perdoa, o Mike procura ajudar uma prostituta desvalida e enfrenta um tenebroso gang de tráfico de carne humana. Spillane escreve primorosamente, não percebo como é que tratam literatura policial como um produto de fancaria quando há investimentos estéticos mesmo com recurso a linguagem tão violenta do género "Finquei-lhe 4 dedos duros na gorja e, com a outra mão, atirei-lhe uma lambada que o deixou marcado na boca por algum tempo". Spillane é um produto típico desta guerra fria e conhece todos os artifícios de exaltar a América e os seus heróis, desbobinando um anticomunismo sem rival. Compro estes livros da Colecção Vamipro numa livraria em Bafatá, é uma boa companhia neste período de imenso cansaço que não sei iludir.

Sei que o Carlos Sampaio te vai contactar e peço-te o favor de conversares com ele sobre a hipótese de vires. A todo o transe quero evitar mais sofrimento, mais ânsias, mais intranquilidade. O nosso correio espelha um devotado amor, entre a guerra e a paz. Lutamos por chegar à paz, não demos mais circunstâncias às guerras dentro da guerra. Obrigado por tudo quanto fazes por mim, quanto fazes por quem ficou tão ferido aqui no Cuor. Beijos, e tantas, tantas saudades!

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 1 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1806: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (48): Junho de 1969: Missirá em estado de sítio

O último post, com cartas do beja Santos, é o post de 13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1657: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (41): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (3)

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