domingo, 10 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1831: Macbeth em África ou Namanha Makbunhe no Teatro da Trindade, com os Fidalgos, grupo de teatro de Bissau (Beja Santos)

Lisboa > Teatro Nacional D. Maria II > Uma cena da peça Namanha Makbunhe. A partir da obra-prima Macbeth, de William Shakespeare. Produção Teatro Nacional D. Maria II em colaboração com o Grupo de Teatro Os Fidalgos, da Guiné Bissau (1).


Foto: Teatro Nacional D. Maria II (2007) (com a devida vénia...)


Namanha Makbunhe
por Beja Santos

O superclássico Macbeth de William Shakespeare é uma referência (por vezes um mero pretexto) e um ponto de partida para um espectáculo profundamente africano, criado por um encenador polaco e desempenhado pela Companhia de Teatro Guineense Os Fidalgos, de Bissau. Sobre esta estrutura dramática paira o drama da guerra civil que enlutou a Guiné Bissau, fala da luta pelo poder, disseca a natureza humana, equilibra-se entre o sagrado e o puramente mágico, usando a ética como pólo de atracção.

Macbeth é a doença pelo poder, a cedência à traição, o enredado da intriga política que leva à quebra de alianças, à rendição às forças do Mal. O encenador Andrzej Kowalski pega numa narrativa imortal, recria uma peça com elaborado trabalho filológico onde se entrançam os melhores e mais eloquentes registos de Shakespeare com vernaculismos, usos e costumes da mais poderosa realidade comunicativa guineense (2).

Onde havia Macbeth passa a haver Namanha Makbunhe, um grande guerreiro do Império Mali. Onde há aristocracia inglesa, passa a haver os grandes senhores da guerra como o régulo de Buruntuma. É uma leitura ágil, aquecida pela música instrumental guineense, uma encenação que oferece um ritmo quase mediaval africano, pontuado pelos figurinos, destacado pelos costumes exibidos em cena.

Não é a história de Shakespeare que prevalece, é a verdade intemporal da luta pelo poder, até à destruição. Há duas Lady Macbeth em cena, a pérfida e aquela que exprime o amor verdadeiro. A pérfida leva ao crime, a amante incondicional tudo perdoa no momento da hecatombe.

Para nós, que vivemos no meio do crioulo, da sonoridade dos instrumentos musicais gentílicos, que observámos as sessões intermináveis de partir mantenha, que nos lembramos das luzes da floresta, que vivemos em destacamentos rodeados destas mulheres e homens que se movem com solenidade, que riem com absoluta sinceridade, Namanha Makbunhe é um momento excepcional de reencontro com uma cultura dilacerada numa tragédia que avassala todas as fronteiras entre a vida e a morte.

A ver no Teatro da Trindade, de 31 de Maio até 1 de Julho, de quarta a sábado, às 21:30 e, aos Domingos, às 16:30. Duração: 1:50 e preços acessíveis. Os Fidalgos estão à vossa espera e representam primorosamente.

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Notas de L.G.:

(1) Este grupo de teatro tem um blogue próprio, um "sítio que aborda a cultura na Guiné Bissau", e que se chama justamente Os Fidalgos. Animam também o Centro de Intercâmbio Teatral de Bissau, que é uma parceria com a AD - Acção para o Desenvolvimento (do nosso Pepito) e a Cena Lusófona.

(2) Referências à peça (texto de William Shakespeare; adaptação / encenação de Andrzej Kowalski)

Resumo da peça (Fonte: sítio do Teatro Nacional D. Maria II > Produções > Namanha Makbunhe)

O valente guerreiro Namanha Makbunhe, régulo de Iall, mata, em combate, o traidor Makumba, conseguindo a vitória para o rei Bolum. Ao regressar da batalha com o companheiro Borry encontra na floresta três feiticeiras que o saúdam: a primeira chama-lhe régulo de Iall, a segunda régulo de Cansala e a terceira dirige-se a ele como rei. Makbunhe fica perturbado e é nessa altura que chega Madiu, enviado de Bolum, que o felicita pelo seu novo cargo: Makbunhe acaba de ser distinguido com o título de régulo de Cansala.

Makbunhe fica eufórico: se a primeira profecia das feiticeiras está certa, então a segunda estará também e ele será, um dia, rei. Ao chegar a casa, as suas mulheres – Djatú e Rokya – têm reacções distintas à notícia. A primeira aconselha prudência ao marido, a segunda diz-lhe que não deverá esperar: o rei Bolum vem visitá-lo e deve morrer já.

Makbunhe mata o rei e o filho deste, Djagra, foge, temendo pela própria vida. O guerreiro assume o trono e a sua primeira preocupação é eliminar os rivais, sobretudo Borry, a quem as feiticeiras predisseram que seria pai de reis. Makbunhe envia um assassino matar Borry e o filho Bunka, mas a missão falha: o assassino consegue matar o pai, mas não o filho. Borry aparece ao rei na forma de fantasma e, muito assustado, Makbunhe manda chamar as feiticeiras para que lhe predigam o futuro. Estas dizem-lhe que ele não deverá temer nenhum homem nascido de ventre materno e que só será destituído quando a floresta de Foroba caminhar.

Makbunhe fica tranquilo, mas será sol de pouca dura: um exército liderado por Djagra caminha já na sua direcção, disfarçado com ramos de árvore. E é Madiu, que não nasceu "por via natural", mas foi arrancado da barriga da mãe, morta, que mata Makbunhe num confronto final.


Post de 15 de Maio de 2007 >Os Fidalgos > Os Fidalgos em Foco


Mais uma vez Os Fidalgos (Guiné - Bissau) em Portugal, desta vez a convite, do Teatro Nacional D. Maria II.

O texto Macbeth, de William Shakespeare, serve de base para a estrutura dramática e poética de Namanha Makbunhe, um espectáculo profundamente africano que também integra actores angolanos e moçambicanos.

Envolvido num ambiente de magia e superstição esta tragédia africana narra também a sede do poder e a ambição desmedida dos homens. Inspirado por uma cadeia de acontecimentos vividos em África, a metáfora ultrapassou a adaptação simples para à realidade histórica, cultural e tradicional desse continente para se tornar numa transposição, original.

Se William Shakespeare tivesse nascido em África, a história de Macbeth não seria idêntica. Porque o que é dramático para um europeu pode não o ser para um africano e vice-versa. Namanha Makbunhe recria em termos plásticos e sonoros: climas e atmosferas de uma outra realidade; da luz, da floresta, dos ritmos e dos cheiros africanos.

O rufar quente dos tambores, a dança, o canto dolente, ajudam a esquecer os males de que África padece. É preciso exorcizar as dores; sorrir, brincar, transmitir energia para a vida; sonhar com um mundo melhor para todos, com mestria e através do sorriso contagiante, uma parte de Africa está viva neste espectáculo.

A africanização desta tragédia mostra-nos que, apesar de realidades históricas distintas e locais diferentes, mantem-se o enredo original. Afinal a Mãe-África dos nossos dias, no caminho para a democracia, ainda está longe de ser um acto pacífico entre os povos de uma mesma Nação.

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