terça-feira, 12 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1837: Pensando na Gilda, no Picão, no Zé da Desordem... O nosso grito no 10 de Junho (Torcato Mendonça / Luís Graça)

Portugal > Lourinhã > 10 de Junho de 2007 > Este jovem não morreu na Guiné, em Angola ou em Moçambique, não morrreu na guerra colonial... Não morreu, crivado de balas, em Bagdade ou no Rio de Janeiro... Morreu - ou melhor, não regressou do seu sono profundo - nas traseiras da minha casa de fim de semana, no pátio da Misericórdia da Lourinhã... Ironicamente no dia 10 de Junho de 2007, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades...

Encontrei-o, de manhã, a escassos metros do meu carro, quando ia regressar a Lisboa e ainda pensava passar pelo Monumento aos Mortos do Ultramar, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém, para me encontrar com alguns dos habitués da cerimónia do 10 de Junho, e que são membros da nossa tertúlia... Desta vez não tinha nada combinado com ninguém, mas de repente perdi a vontade de lá ir... Que me desculpem a franqueza os camaradas e amigos da Guiné que possivelmente também me procuraram...

Não o conhecia, mas era meu conterrâneo, natural da Lourinhã, ao que parece... Dizem que morreu de overdose, um palavrão ou um eufemismo que usamos para esconder a nossa incapacidade, como comunidade, como sociedade, como país, como Nação, como Estado, em criar futuro, esperança, solidariedade, suporte social, sentido de vida... para muitos dos nossos jovens que hoje já não lutam contra o pesadelo da guerra colonial, mas têm que lidar com outros demónios, igualmente predadores e assassinos...

Levava a máquina a tiracolo. Não foi por morbidez ou voyeurismo que tirei a foto, mas sim por que uma foto de alguém que morre, tão jovem, de noite, abandonado na rua de uma pacatíssima vila do oeste estremenho como a da minha terra, deve interpelar-nos, deve incomodar-nos, deve inclusive tirar-nos o sono, deve mexer com as nossas consciências, com os nossos sentidos, com a nossa razão, com o nosso coração...

O absurdo da morte - seja aqui, hoje, na Lourinhã ou no Darfur, como ontem na Guiné, no Quirafo ou na Ponta do Inglês - continua, no mínimo, a indignar-nos e a obrigar-nos a escrever... Why ? Porque se morre hoje, tão jovem, de morte violenta, nas nossas ruas, nas esquinas da noite, nas nossas estradas, nos nossos estaleiros de construção, nas nossas fábricas... ? Como ontem nas picadas, nas bolanhas e nos aquartelamentos da Guiné ? Por overdose, por acidente, por suicídio, por homicídio ? Com a nossa cumplicidade, a nossa burocracia, o nosso cinismo, a nossa indiferença, o nosso egoísmo...

Ironicamente, neste quadro tétrico em que o elemento central da composição é um corpo já com sinais de rigidez cadavérica, as garrafas, uma de álcool e outra de água mineral, parecem ser as únicas testemunhas, mudas, de pé, da tragédia que acabou de se consumar durante a noite (ao que presumo)...

Ironicamente ainda, o rótulo da garrafa é de um uísque novo, o VAT 69, talvez a mais popular marca de uísque do nosso tempo, na Guiné (1)... Na época, a nossa droga era o álcool e o tabaco... Ainda não conhecíamos as outras drogas (ditas pesadas, ilegais...) que hoje matam os nossos filhos e irmãos... Nem sequer a erva, a marijuana, tinha chegado à Guiné do nosso tempo...

Enfim, deixem-me acrescentar esta reflexão - algo melancólica e amarga, horas depois do dia dos nossos mortos e dos nossos heróis - ao Grito (sic) que, do Fundão, nos lança o Torcato, a propósito de casos aqui relatados, ora dramáticos ora trágicos, como o da Gilda, do Picão ou do Zé da Desordem...

Citando o Jorge Cabral e o poema que ele dedicou ao Zé da Desordem:

Que te matou, Irmão?
Uma mina? Um tiro? Uma granada?
Ou foi a Solidão,
Que transformou a vida em emboscada?


Coube-nos, historicamente, o papel (necessário mas repulsivo) de coveiros do Império... Nós fomos a geração das hienas e dos jagudis... Outros foram garbosamente, gloriosamente, os leões e os leopardos... Liquidámos o Império (colonial) há pouco mais de 30 anos, regressámos a casa (vencidos ? vencedores ? nem vencidos nem vencedores ?)... Dizem que também fomos parteiros... De um novo regime, de uma sociedade que se queria nova, de novos países... De qualquer modo, há ainda uma ou mais gerações (a nossa e a a dos nossos filhos) a pagar a pesada factura social e humana desse parto doloroso que fechou um ciclo de 500 anos na história do nosso país e que deu origem a novos países lusófonos...

Cá e lá, em Portugal, na Guiné, em Angola, em Moçambique, em Timor, a vida continua entretanto a pregar-nos partidas... É claro que o drama individual não conta para os historiadores... Dos fracos não reza a História, dizem-nos os leões e os leopardos antes de acabarem nas garras e nos dentes das hienas e dos jagudis... É bom, não esquecê-lo, sobretudo nos tempos de arrogância e de mediatismo em que vivemos, e numa sociedade que apenas glorifica "aqueles que da lei da morte se vão libertando" (citando, mal, o nosso grande Camões).

Obrigado, Torcato, foste tu que me deste o mote, o (pre)texto... e definitivamente deixa de pensar e escrever que nos podes chatear com as tuas sempre oportuníssimas notas de comentário aos posts que mandamos para a blogosfera... (LG)

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Mensagem do Torcato Mendonça:

Luís Graça:

1. Vi agora o post do desabafo sobre a Gilda (2). Dias depois, desse meu desabafo, apareceu a caso do Picão (3) ; muito antes tinha aparecido o Zé da Desordem (4). A este, do Jorge Cabral, respondi.

Agora ao do Picão, escrito pelo Amaral Bernardo, ficou a revolta cá dentro… Não queria chatear... só que hoje, 10 de Junho, dizem ser o dia das Forças Armadas, dos Combatentes, dos que, com glória, da vida se libertaram, dizia um sujeito qualquer!

Não gosto dos dias evocativos disto ou daquilo… Tolero, aceito, mas todos os dias são dias de tudo o que querem evocar ou comemorar… Mais ainda, no que aos ex-Combatente diz respeito. Em redundância – respeito, merecem todos os homens e mulheres, que para lá foram empurrados, em juventude perdida, em posterior sofrimento até hoje e, aos poucos, esses sim, não em glória (?) mas em sofrimento, desta vida vão desaparecendo.

Acho que devemos fazer algo. Há tanta gente por aí…e outros que por lá ficaram.

2. Os putos são da Tabanca do Jorge Cabral – Fá Mandinga [e não de Mansambo] (5). Um deles tem um pé deformado, creio que era elefantíase. Seria? Escrevi algo sobre isso. Lá, em Bambadinca, falei com um médico, mas o pai era contra mesinho de branco e não só.

Termino, talvez seja necessário dar um GRITO, a dizer basta e queremos, exigimos, além de respeito, que estes homens sejam tratados com dignidade. Mais não digo, sobe a revolta e vocês não merecem ser chateados com tanto palavreado.

Um abraço,

PS - PARABÉNS PELA FOTO "UM HOMEM E A SUA CRUZ"... ESPECTACULAR! (3)
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

(...) "Guiné, 24 de Dezembro de 1969. Exma menina e saudosa madrinha: (...) Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota numa mão e uma garrafa de Vat 69 na outra" (...) .

[Vat 69:] Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, 'from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces').

Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se 'bazuca'.


(2) Vd. post de 6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1819: De Catió a Lisboa, de menina a Mulher Grande ou uma história triste com final feliz (Gilda Pinho Brandão / Luís Graça)


(3) Vd. post de 8 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1823: Camaradas que já nos deixaram (2): O Picão, da CCS do BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72), que morreu há dias na miséria (Amaral Bernardo)

(4) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1398: Poema de Natal: Só agora, camarada, te mataram (Jorge Cabral)


(...) "Correia da Manhã > S/d [Dezembro de 2006] > A recorte de jornal dando a notícia de que um ex-combatente na Guiné, de 60 anos, foi encontrado morto na barraca que lhe servia de casa, em Ponte da Barca, Nazaré (...).

"Segundo informações da GNR, não havia suspeita de crime e o cadáver estava já em adiantado estado de decomposição. O ex-combatente, que era conhecido na vila piscatória como o Zé da Desordem , era divorciado e tinha dois filhos já adultos... Ultimamente afastara-se da família, vivendo sozinho numa barraca, sem quaisquer condições de dignidade. Diz ainda a notícia que trabalhava esporadicamente na construção civil e sofria de diversos problemas de saúde, tendo já estado hospitalizado" (...).

(5) Vd. post de 10 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1829: Tabanca Grande (9): À Gilda e a todas as vítimas de guerras, discriminação, racismo... (Torcato Mendonça)

Sem comentários: