quinta-feira, 13 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)



Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > 7 de Março de 2008 > Um lugar repleto de história e de histórias... Visita no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje. Na foto, o Coronel Carlos Matos Gomes, na situação de reforma, um homem do MFA da Guiné e um celebrado autor de romances de guerra como Nó Cego, Soldadó ou Fala-me de África (sob o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz); a seu lado, o o catalão Josep Sánchez Cervelló, professor universitário, em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa... Por detrás, o edifício, em ruína, da antiga 2ª Rep do Comando-Chefe, a famosa Rep Apsico, onde trabalhou Otelo Saraiva de Carvalho e Ramalho Eanes. Matos Gomes, na altura capitão dos comandos, foi um dos protagonistas do 25 de Abril neste palco da história... Na Amura repousam os restos mortais de Amílcar Cabral e de outros heróis da pátria guineense, como Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Tina Silá, Pansau Na Isna, etc., a qume nesse dia prestámos homenagem (LG).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Texto base da intervenção do Coronel Diamantino Gertrudes da Silva na apresentação do Diário da Guiné, do Mário Beja Santos.

O Coronel D. Gertrudes da Silva, ele próprio escritor de crónicas de Guerra, teve a ambilidade e deu-nos o gosto não só de estar presente mas também de responder à solicitação que lhe foi feita para enquadrar a Guerra da Guiné no contexto da Guerra Colonial.

vb
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A Guiné no Contexto da Guerra colonial e do Regime do Estado Novo (*)

1. Notas Prévias

Antes de falar propriamente no assunto que aqui nos traz interessa, talvez, avançar com algumas notas prévias relativas ao próprio título e aos pressupostos de que parte o autor destas linhas.


Vamos falar de guerra, no caso, a da Guiné, guerra que aqui é tomada no sentido próprio de um conflito armado entre dois contendores com interesses antagónicos, cada um deles pugnando para derrotar o outro ou para quebrar a sua vontade de continuar a combater.
Que esta era uma guerra singular, sim, isso era, não convencional, dizem, insurreccional e subversiva para uns, de libertação e patriótica para outros, diferente do entendimento do Regime de então que em vez de guerra teimava em afirmar que era um conflito interno, portanto, uma questão de ordem pública que não tinha de se conformar, nomeadamente, com a Convenção de Genebra sobre o tratamento devido aos prisioneiros de guerra.

Guerra … colonial. E aqui está outra coisa que convém esclarecer, até porque há pessoas que quase instintivamente se abespinham quando ouvem alguém a referir-se à nossa guerra em África como “guerra colonial”. Acham que não – e estão no seu direito –, que nós nunca fomos colonizadores, que não tínhamos colónias, que Portugal era um caso muito especial, que organizado em províncias se estendia do Minho a Timor. Esquecem-se essas pessoas que como na questão da natureza da guerra, também na das colónias versus províncias havia da parte do Regime uma descarada manipulação. Se não vejamos:
Para não irmos lá mais atrás, reza o Artº. 3º do Acto Colonial de 1930 que “Os domínios ultramarinos (porque ultramarinos eram, já se vê) de Portugal denominam-se colónias e constituem o Império Colonial Português” (parênteses e itálico nosso).

Em 1938 era emitido nas oito colónias portuguesas de então um conjunto importante de selos que tinham impressas as palavras “Império Colonial Português”. A Nação pluri-racial e pluri-continental ficaria lá mais para tarde.


Que foi o que veio a acontecer no início da década de cinquenta, quando a comunidade internacional começou a apertar connosco, mormente nos pelouros da ONU. Nada que atrapalhasse o Regime que, de pronto, resolveu a questão passando a designação dos territórios de além-mar de colónias para províncias ultramarinas, designação que, por teimosia e depois por inércia se manteve até 1975.

Se tivermos que nos pegar (na discussão, claro), que não seja por aqui. Que tão simples já não será a questão que vem a seguir, a própria designação do Regime de então, que uns teimam em chamar fascista e outros de Estado Novo, estes últimos com o argumento de que não era comparável nem ao regime instaurado em Itália por Benito Mussolini e muito menos ao implementado na Alemanha por Adolfo Hitler.


O nosso (e digo nosso de propósito) não seria uma coisa nem outra. Seria para aqui uma coisinha, como todas as nossas coisas, terminadas em inho e inha, pobres de nós, que somos uns coitadinhos.

É certo que ao contrário dos outros dois aqui referidos o regime de Salazar e Caetano nunca se reclamou de fascista ou de nazi, reservando para si o nome com que António Ferro, em 1934, categórica e enfaticamente o designa no “Decálogo do Estado Nono”. Novo, porque assume e reclama a ruptura com o anterior feita pela Revolução de 1926.

Por mim, com mais inho menos inho, o regime derrubado em 25 de Abril de 1974 tinha e assumia muitas das características tanto do nazismo como do fascismo. Entendimento meu, claro, que, como tudo o que da minha parte aqui for dito, deve ser entendido como uma opinião pessoal, portanto, sem relevância política ou pretensões científicas.

E, já agora, que nunca das minhas palavras se infira que aqui se ponha em causa a justeza da nossa participação na Guerra Colonial … ou do Ultramar, para os mais resistentes e convictos, que não será por aí …

Profissionais ou não, voluntários ou obrigados, nós, os militares, cumprimos a parte que nos cabia, que era a de dar tempo e margem de manobra aos políticos para que resolvessem a Questão Colonial.

De resto, como dizia o mestre Kierkgaard, “A vida só pode ser vivida para a frente e explicada para trás”. E agora, sim, vamos a isto.

2. A Descolonização

Pois vamos começar mesmo por aqui. Porque a Guerra da Guiné só poderá ser entendida no contexto da Guerra Colonial, e esta no âmbito de factores históricos de natureza mais ampla, como é o caso da descolonização, que pressupõe, obviamente, um outro anterior a este, e que na história ficou arquivado com o título de “colonização” na lombada.

Pois a descolonização, para não irmos lá mais atrás, já tinha levado à formação dos EUA na segunda metade do século XVIII, alastrando depois a outras partes da América por todo o século XIX. E foi nos finais deste século e princípios do século XX que por circunstâncias que não dá para aqui tratar que se verificou uma notável corrida para a ocupação e reivindicação de domínios coloniais, nomeadamente por parte da Inglaterra, da França e também da Alemanha.

Portugal, nessa altura, enfraquecido pelas lutas liberais, perdeu em parte essa corrida, como se veio a verificar na Conferência de Berlim (1884/85), onde as potências europeias procuraram regular as questões decorrentes do assalto colonizador ao Continente Africano.

Mas as coisas não ficaram bem e aí vinha a 1ª Guerra Mundial (1914-18) que entre outras coisas visava, da parte de quem a fomentou e desencadeou, uma nova partilha das possessões coloniais. E todos sabemos que dela saíram derrotados os Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. No final, a Alemanha, para além das condições humilhantes que lhe foram impostas, viu-se privada das suas possessões coloniais que passaram a protectorados sob administração de potências vencedoras, enquanto os outros dois impérios pura e simplesmente se dissolveram.

As condições em que se verificaram as dissoluções destes impérios e a emergência dos protectorados, vão explicar muito do que veio a seguir e, até, muito do que ainda hoje se passa, nomeadamente nos Balcãs e no Médio Oriente.

Seja como for, alguém ficou com umas tantas coisas encravadas na garganta e, na primeira oportunidade, aí estava a 2ª Grande Guerra Mundial (1939-45), guerra em que, em boa verdade, todos perderam, com excepção dos EUA que, vacinados com a Guerra de Secessão, assentaram que, a entrar em guerras, então que fosse na terra dos outros, o que neste caso os levou, no fim, a afirmarem-se como uma grande potência mundial. E assim se entende que de tão depauperadas as potências coloniais europeias, com mais ou menos resistência ou relutância, começassem a abrir mão de grande parte dos seus domínios coloniais.

Só para se ficar com uma ideia do vertiginoso movimento independentista que se segue, e só no que ao Continente Africano diz respeito, aí ficam alguns dados:

1947 – Independência da Libéria
1956 – Sudão
1957 – Gana
1958 – Guiné-Conakry
1960 – Benim – Camarões – Chade – Congo-Brazzaville – Costa do Marfim – Gabão – Madagáscar – Mali – Mauritânia – Níger– Rep. Centro/Africana – Congo Zaire – Senegal – Somália – Togo.
1961 – Serra Leoa – Tanzânia e início da Guerra em Angola
1962 – Argélia – Burundi – Ruanda
1963 – Quénia e início da Guerra na Guiné
1964 – Malawi – Zâmbia e início da Guerra em Moçambique (…)

Em Portugal, orgulhosamente sós, resistimos aos ventos de mudança, representando teimosamente a nossa comédia, pela Guerra Colonial transformada em tragédia, sob o pano de fundo da Guerra-Fria. Guerra-Fria que nos finais dos anos sessenta, princípios da década de setenta – atenção que vem aí o 25 de Abril – apresentava sinais contraditórios, uns de mudança outros de consolidação de um certo statuo quo.

Recordemos aqui, então só alguns desses sinais: Maio 68; Primavera de Praga (68); Conferência de Helsínquia (70) …); Conferência de Paris s/ Guerra do Vietname (68/74); Caso Watergate (72/74); Golpe de Pinochet (11 Set 73) e, por fim, como a culminar, a Guerra do Yom Kippur (73/74) que carregava no seu bojo a famosa Crise do Petróleo, que em três meses vê o seu preço ser multiplicado por quatro, interrompendo, de forma súbita e trágica aquilo que os economistas designam pelos trinta anos gloriosos de crescimento das economias ditas ocidentais a partir do rescaldo da 2ª GG.

3. A Guerra Colonial na Guiné

Mas deixemos lá, por agora, as potências ocidentais a debaterem-se com os problemas da Crise do Petróleo e regressemos à nossa Guerra Colonial e, no âmbito desta, que todos sabemos que se estendeu a três frentes (sem contar com a da retaguarda), à Guerra da Guiné, que se considera “oficialmente” iniciada com o ataque ao Quartel de Tite em 23 de Janeiro de 1963, seguido logo depois pela captura dos navios Mirandela e Arouca em 1 de Março do mesmo ano na região de Cacine.

E, mais do que a narrativa do que a partir daí foi acontecendo, terá maior interesse apontar alguns aspectos que caracterizam o que de específico teve a Guerra da Guiné no conjunto das três frentes da Guerra Colonial.

Comecemos, então, pelo que ela tem de comum com as outras duas:
- A guerra é conduzida nas três frentes por organizações que se reclamam do estatuto de “movimentos de libertação”.
- Todos eles beneficiam, como não poderia deixar de ser, de refúgio e apoios no exterior.
- Todos reclamam como finalidade a independência total.
- Com excepção da UPA/FNLA, marcadamente apoiada pelos EUA, todos os outros movimentos recebiam apoios, de entre outros, dos países do bloco socialista.

Depois vêm as diferenças que, como veremos, são muitas:


- Enquanto em Angola se nos opõem três movimentos de libertação, tanto na Guiné como em Moçambique, só há um movimento em luta contra as tropas portuguesas.


- Já no que respeita a vizinhanças – e aqui pensamos em refúgios e apoios –, nos casos de Angola e de Moçambique há países vizinhos amigos e inimigos de cada uma das partes em conflito, enquanto que na Guiné, tirando o Atlântico que vamos considerar neutro, as vizinhanças – Senegal e Guiné Conakry – são tudo do mesmo, ou seja, amigos do PAIGC e adversos a Portugal.


- Numa outra perspectiva, enquanto que em Angola e Moçambique no fulgor da Guerra Colonial ainda é possível distinguir um Norte (em guerra) e um Sul (poupado), na Guiné nem Norte nem Sul, é tudo mais ou menos por igual.


- No que respeita especificamente aos “movimentos de libertação”, em Angola opunham-se-nos a UPA/FNLA, o MPLA e a UNITA, liderados, respectivamente por Holden Roberto, Agostinho Neto e Jonas Savimbi; em Moçambique era a FRELIMO, primeiro liderada por Eduardo Mondlane e depois por Samora Machel; na Guiné era o PAIGC liderado por Amílcar Cabral, morto ainda não se sabe bem por quem antes de almejar a independência da Guiné e Cabo Verde, que era esse o objectivo final da sua luta.


- Quanto a recursos, então, as diferenças são quase abissais, o que, não explicando tudo, explica quase tudo o que se estava e depois viria a passar. Angola era uma terra de promissão com os diamantes, o petróleo e tudo o mais que aqui não dá para especificar; Moçambique, ainda assim, lá se ia safando com o chá, o caju e, principalmente, os direitos de transportes logísticos dos países vizinhos do interior.

A Guiné, valha-nos Deus, não tinha quase nada: um pouco de arroz nas imensas bolanhas e uns restos da cultura de mancarra que lá ia sobrevivendo ao esgotamento de terras, já de si tão fracas, fomentado pela acção monopolista da Casa Gouveia.

Angola, das três, era assim justamente considerada a jóia da coroa, expressão que sugere o Império, aquele, que era o Quinto, imaginado e arquitectado pelo Padre António Vieira a seguir à Restauração e mais recentemente retomado pelo Prof. Agostinho da Silva, tudo inspiração no famoso sonho de Nabucodonosor decifrado pelo Profeta Daniel, isto só por mera curiosidade.

Mas voltemos à Terra e às terras da Guiné para concluir que, das três, ela constituía o elo mais fraco, onde, portanto, e logicamente, o esforço de guerra era natural que fosse mais forte. E, para além desta circunstancial singularidade, o líder e dirigente do PAIGC, Amílcar Cabral, era de todos os outros dirigentes que se nos opunham o mais prestigiado e em alguns casos, até, representante e porta-voz do conjunto dos restantes, nomeadamente dos que com o PAIGC eram alinhados, concretamente, o MPLA e a FRELIMO.

4. A Guerra Colonial e o Regime

Já alguém disse, e suponho que acertadamente, que se não fosse a Guerra Colonial muito provavelmente não teria havido nenhum 25 de Abril. Vamos ver.

Em 1968 o país é surpreendido com a queda de Salazar, primeiro da cadeira da biblioteca e depois da do poder. É substituído na governação por um delfim do Regime, o Prof. Marcelo Caetano, que ensaiou e deixou passar a ideia de uma “Primavera” política que viria aí.

Pois, por muito boas intenções que tivesse o Professor, uma coisa havia de que ele bem cedo se apercebeu, e que o amarrava de pés e mãos – a Questão Colonial.


A Questão Colonial era, de facto, nessa difícil encruzilhada, a “Magna Questão” do Regime. E de tal maneira estas duas coisas – Guerra Colonial e Regime – estavam tão intimamente intrincadas, que era bom de ver que quando caísse uma, a outra ruiria logo atrás. Felizmente, diga-se, desde já, que com o 25 de Abril caiu primeiro o Regime, pois doutro modo tudo seria ainda muito mais complicado e dramático.

Entretanto, o cerco vai-se apertando cada vez mais com o agravamento da situação militar e as sucessivas resoluções da ONU num tenaz esforço, na altura liderado pelos EUA.


No terreno, e situemo-nos já nas imediações de 1974, a situação militar se, em Angola, também pelo facto de ali lutarem contra nós e por vezes entre si três movimentos de libertação, a situação apresentava um certo equilíbrio, pior, bem pior estava no Norte de Moçambique e praticamente insustentável na Guiné.

5. A Caminho do Fim

No elo mais fraco da Guerra Colonial que nós já vimos ser a Guiné, a partir do ano de 1972 tudo se precipitou. Esgotada a solução “Por Uma Guiné Melhor”, a ilusão da “Paz Podre” com a tragédia da “Morte dos Majores”, a degradação da situação militar entrou numa fase quase vertiginosa e sem solução que se descortinasse.

Já em Maio de 1972, após negociações secretas com Leopoldo Shengor, o General Spínola, em carta enviada a Marcelo Caetano escreve a dado passo: Em resumo, creio não haver grande controvérsia quanto à opinião de que não ganharemos esta guerra pela força das armas … E, sendo assim, apenas se nos apresentam duas alternativas como resposta à oportunidade que nos foi oferecida: ou uma viragem da ordem política ou uma prolongada e inútil agonia.

Em resposta, feita de viva voz, Marcelo Caetano, por cegueira ou por que outra coisa não podia fazer, tanto não deu acolhimento às propostas do General, como admitia com obscena naturalidade a hipótese da derrota militar, o que parece claro no excerto que se segue e onde a “Magna Questão” nos aparece aqui bem nua e crua:

Observei ao general que por muito grande que fosse o seu prestígio na Guiné – e eu sabia que era enorme – ao sentar-se à mesa das negociações com Amílcar Cabral ele não teria na frente um banal chefe guerrilheiro, e sim o homem que representava todo o movimento anti-português apoiado pelas Nações Unidas, pela Organização da Unidade Africana, pela imprensa do mundo inteiro. Assim, ia-se reconhecer oficialmente o Partido que ele chefiava como sendo uma força beligerante e reconhecia-se mais, que essa força possuía importante domínio territorial, uma vez que aceitávamos negociar com ela um armistício (ou cessar-fogo) como preliminar de um acordo. (…)

A dificuldade do problema da Guiné estava nisto: em fazer parte de um problema global mais amplo, que tinha de ser considerado e conduzido como um todo, mantendo a coerência dos princípios jurídicos e da política que se adoptasse.

E foi aqui que, no decurso da conversa, fiz a afirmação chocante para a sensibilidade do general, dizendo mais ou menos isto:

- Para a defesa global do Ultramar é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações.


- Pois V. Ex.ª preferia uma derrota militar na Guiné? – exclamou escandalizado o general.
- Os exércitos fizeram-se e devem lutar para vencer, mas não é forçoso que vençam. Se o exército português for derrotado na Guiné depois de ter combatido dentro das suas possibilidades, essa derrota deixar-nos-ia intactas as possibilidades jurídico-políticas de continuar a defender o resto do Ultramar. É isso que eu quero dizer.
” (sublinhados nossos).

E o General, perante a evidente reedição do pesadelo do estigma do “Caso da Índia” não aguentou e o sentimento de inconformismo mais se acentuou, sendo este, talvez, um dos factores mais determinantes do Movimento Militar do 25 de Abril.

De degrau em degrau, em Março de 1973 vêm os mísseis terra-ar e com eles o comprometimento do apoio aéreo às nossas tropas, tanto em aviões como em helicópteros e uma grande ofensiva – assim como uma mini-ofensiva do Tet à nossa escala – das forças do PAIGC, que culminou nos mais conhecidos casos de Guidage e de Guileje e anunciava o desastre com que os militares não se conformavam, mas que estava dentro dos planos do Regime, como vimos mais atrás. Regime que, decisivamente, tinha entrado num caminho sem retorno. Em desespero de causa, ainda tentou fazer reverter a seu favor o denodado esforço de guerra dos militares, promovendo e apoiando o famigerado “Congresso dos Combatentes” em Julho de 1973.

Mal imaginavam os senhores do Regime, que nessa mesma altura começava efectivamente aquilo que veio a ser o “Movimento dos Capitães”, com alguns militares na rua – e lembro aqui o Coronel Vasco Lourenço – a recolher assinaturas dos seus pares com vista ao envio de um telegrama de repúdio daquele congresso que veio a ter o seguinte teor:

“Cerca de quatro centenas de militares dos quadros permanentes e combatentes do Ultramar com várias comissões de serviço, certos de interpretarem o sentir de outras centenas de camaradas que, por motivo de circunstâncias múltiplas, ignoram verdadeiramente o Congresso, desejam informar V. Exas. e esclarecer a Nação do seguinte:


1. Não aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação.


2. Não reconhecem aos organizadores do I Congresso dos Combatentes do Ultramar e, portanto, ao próprio Congresso, a necessária representatividade.


3. Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes.


4. Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão.
Subscrevem o presente telegrama, em representação simbólica das quatro centenas de militares referidos, dois militares que publicamente e por diversas vezes a Nação Portuguesa consagrou:


Capitão-tenente Alberto Rebordão de Brito (oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, Valor, Lealdade e Mérito; Medalha de Prata de Valor Militar com palma; Cruz de guerra de 1ª classe); 1.º Sargento graduado em alferes Marcelino da Mata (cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; Cruz de Guerra de 1.ª classe; Cruz de Guerra de 2.ª classe).


Solicita-se que ao presente telegrama seja dada publicidade igual à utilizada para as conclusões do Congresso.”


O esforço das Forças Armadas – e não só do exército, como parece confundir Marcelo Caetano – vai continuar, mesmo depois da proclamação unilateral da independência feita pelo PAIGC nas matas de Madina do Boé em 24 de Setembro de 1973, logo reconhecida por mais de 80 países.


O fim da Guiné enquanto colónia portuguesa parecia inevitável e próximo. Já em desespero, em 25 de Março de 1974 Marcelo Caetano aceita o envio de um emissário secreto que em Londres e num apartamento facultado pelo governo de Sua Majestade se vai encontrar com uma delegação do PAIGC chefiada por Victor Saúde Maria com vista a negociar as condições da independência da Guiné. As coisas ficaram encaminhadas. Só que entretanto ocorreu o 25 de Abril.



Academia Militar, 1963, Amadora. Cadetes do Curso do Cor Gertrudes da Silva.
Foto: © V. Briote. Direitos reservados.

Com um Regime orgulhosamente só (lá fora e cá dentro), com 40% do Orçamento afectado aos encargos da defesa, com milhares de mortos, milhares de feridos e muitos estropiados, com um esforço militar cinco vezes maior, em termos proporcionais ao dos EUA no Vietname, com a sangria das melhores energias da Nação na Guerra Colonial e na emigração, com a privação de todas as mais elementares liberdades, com um povo profundamente triste por tanta ausência e tanta perda era absolutamente necessária e, mesmo, inevitável qualquer coisa como foi o 25 de Abril, levado a cabo pelos militares, porventura porque sentiam melhor que ninguém a inutilidade da tragédia da Guerra Colonial, porque lhe preparavam uma saída ultrajante como a da Índia, porque talvez só eles estariam em efectivas condições de o fazer.


Viseu, 8 de Março de 2008
Gertrudes da Silva
Cor Ref

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(*) Texto para intervenção no encontro do Blogue “Luís Graça & Camaradas da
Guiné”, que teve lugar em Lisboa, em 06Mar2008.



1 António de Spínola, “País sem Rumo, pag. 29/31
2 Vários, “História Contemporânea de Portugal”, Vol. II, pag. 232.
3 “Hist. Contemp. de Portugal”, Vol. II, pag. 257.
4 Orlando Raimundo, “ A Última Dama do Estado Novo”, Temas e Debates, pag.117/118.

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Nota de vb:

O Coronel Diamantino Gertrudes da Silva foi admitido na Academia Militar em Outubro de 1962. Nº 1 do Curso de Infantaria, com o posto de Alferes foi mobilizado para Angola (região de Bessa Monteiro), integrado na CCaç 1642.


Em 1970, comandou a CÇAÇ 2781 na Guiné, que esteve destacada em Bissum, permanecendo no território até 1972, data em que a Companhia regressou à Metrópole. Colocado nesse ano em Viseu, no RI 14, aí permaneceu até à véspera do 25 de Abril de 1974. À frente das tropas que conseguiu reunir, deslocou-se para Lisboa e Peniche onde teve acção preponderante no desenrolar dos acontecimentos que se seguiram ao movimento militar.

Tem publicadas as obras:

Quatro Estações em Abril
Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: crónica/romance
Ano: 2007
Páginas: 312
P.V.P.: € 18.90


A personagem que, na trilogia que aqui se completa, nos vai abrindo o caminho e guiando os nossos passos, por uma só vez revela a sua inteira identidade e, mesmo assim, não o faz de moto próprio, mas através do endereço de uma carta onde se pode ler: “Para/ Alf. Júlio dos Santos Parente”. E é com o nome de Júlio que anda em Deus, Pátria e... a Vida, para depois seguir com o apelido Santos em A Pátria ou A Vida e continuar aqui a sua caminhada apresentando-se como Parente (dos santos, naturalmente).

Júlio dos Santos Parente – e a muitos acontece – para simplificar as coisas é mais conhecido por Silva, ou então por este apelido com um outro dependurado, e que não é para disfarçar, embora se lhe reconheçam algumas ambiguidades não propositadas, tanto no género como na ascendência, mas que nada tem a ver com uma velha primeira dama do antigamente.

Júlio, Santos, Parente, ou simplesmente Silva, é sempre o mesmo. Um militar que se entregou por inteiro, de corpo e alma ao 25 de Abril; que o viveu em lutas, exaltações, temores e angústias; que comandou as tropas afectas ao MFA que da Região Centro partiram no encalço de Peniche e de Lisboa; e que aqui nos dá conta da sua visão dos acontecimentos e da sua pessoal reflexão sobre os factos e vicissitudes da “Revolução dos Cravos” que mudou para sempre a face de Portugal. Um homem que é, simplesmente... um dos Capitães de Abril.Fonte: Da descrição do livro.
A Pátria ou A Vida

Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: Romance/crónica de guerra (colonial)
Ano: 2005
Páginas: 268
P.V.P.: € 16.80

(…)


Em "A Pátria ou a Vida" vive-se, sofre-se e morre-se sem heroísmos nem honrarias; caminha-se sempre sobre o arame que marca a fronteira entre dois valores que temos como sagrados. Porque a Pátria – lugar comum – nesses tempos era madrasta, tratando como estranhos os seus próprios filhos. Não de sua própria natureza, que essa era boa, e por isso sempre lhe fomos afeiçoados; mas por força dos homens a que, ilegitimamente, se foi entregando, todos com jeitos de abastados morgados, a largar-nos por aí, feitos filhos bastardos.
Da descrição da obra.
Deus, Pátria e…a Vida

Autor: Gertrudes da Silva
Colecção Imagens de Hoje
Género: Crónica de guerra (colonial) / romance
Ano: 2003
Páginas: 280
Preço com desconto: € 12.6

(Um livro que narra o percurso de um jovem que cedo conhece as agruras da guerra colonial e que sempre leva na memória os cantos da sua aldeia da Beira, bem interior...


Relatos por vezes sanguinários, em contraste com alguma pureza ingénua e original, revelam como pode passar-se dos "brandos costumes" para uma violência e crueldade de difícil entendimento. Momentos da nossa História recente que ainda nos incomodam mas que é preciso contar).
(…)


Extracto da descrição da obra.

3 comentários:

Anónimo disse...

Porque será que se omite que o movimento dos capitães tem a sua génese na contestação dos oficiais do quadro permanente ao diploma - DL 353/73 - que colocava oficiais milicianos no posto de capitão sem passar pela academia.
Henrique Matos

Anónimo disse...

A visão aqui expressa da guerra do ultramar/colonial/África, é uma visão um pouco pessoal e em certos pontos não retrata a realidade.
Basta dizer, por exemplo, que ao afirmar que:
«em Angola, também pelo facto de ali lutarem contra nós e por vezes entre si três movimentos de libertação, a situação apresentava um certo equilíbrio,» se está completamente fora da realidade.
Em Angola a guerra só muito esporádicamente e por conta da UNITA, tinha alguma actividade.

Joaquim Mexia Alves

Anónimo disse...

Camaradas

Tirei o meu curso na década de 70 e pensei, atendendo à falta de emprego, vou despachar a tropa. Tinha então 18 anos e marcho em 1973 para as Caldas da Rainha. O que encontro aqui? Um comandante e um grupo de capitães estéreis. Passavam a vida a ameaçar os instruendos, ...mando-vos para a guerra. Foi o que fiz. Voluntariei-me uma vez mais para a Guiné mas acabaram por me mobilizar para Angola. Em 1974, encontro-me em Luanda e vejo, assisto, à alta traição que os civis foram subvertidos às altas esferas do MFA. A entrada dos movimentos em Luanda, foi de loucos... pobres dragões de Luanda, que foram pau para toda a obra...
Por fim, aquela companhia do MPLA que entra no ATA, para almoçar. Militares aqueles? Não. Eram crianças tomadas com miudos soldados, o que me levou a questionar quem as comandava.
É este o vosso exército? Resposta pronta... Vocês é que nos deram isto.Mais palavras para quê?!...