quarta-feira, 12 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde? Cabedu? E a nossa Marinha? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Visita dos participantes do Simpósio Internacional de Guileje > Lápide assente nos restos de um aquartelamento das NT. Pode ler-se: "CART 1692. Início - 16/4/68. Ter[mino] - 18/4/68. Nisa - Alenquer. 60 bebedeiras neste priúdo [sic]. Trabalho Rápido".

Guiné-Bissau >Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Uma terra abandonada e decadente. Vista do barco de pesca que saiu de Cananima, com um grupo de cerca de 30 participantes do Simpósio. Outrora, Cacine era um importante baluarte no sistema de defesa do Rio Cacine contra as infiltrações e ataques do PAIGC. Foi sede do Destacamento de Fuzileiros Especiais 22.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Uma típica embarcaçao de pesca do Rio Cacine, a apodrecer na praia... As potencialidades do Rio Cacine não são ainda devidamente exploradas (vd. dvd)...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Regresso dos turistas ao barco que os levará de volta a Cananima... Em primeiro plano, a Maria Alice, o cubano Oscar Oramas, a Catarina Santos, da Fundação Mário Soares, e o Álvaro Basto, membro da nossa Tabanca Grande.

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados

1. Texto de opinião do nosso camigo e camarada Manuel Lema Santos, ex-1º Tenente da Reserva Naval da Marinha de Guerra, autor da página Reserva Naval, e um dos raros marinheiros a fazer parte da nossa Tabanca Grande (1).


Banjara, Barro, Cacine, Cameconde, Guidaje, Gadamael, Guileje, Jabadá, Madina do Boé, Oio...e tantos outros locais de uma terra com cerca de doze anos de Guerra. Numa picada de Buba para Aldeia Formosa, numa bolanha do Galo Corubal ou ao largo de Bissau, na queda da escada para o navio que o ia trazer de regresso. Para os mortos e estropiados foi igual. (vb)

Assunto - Simpósio de Guileje"

Nunca estive em Guileje.

No respeito pelo sacrifício de todos os que na Guiné se bateram por uma causa, ao tempo politicamente defensável e por isso obrigatória como dever de cidadania do regime, opto pelo contido silêncio dos que preferem apostar num futuro sem qualquer sentimento de culpa pelo passado recente vivido, parte integrante da própria História do País em que nasceram.

E podemos fazê-lo de várias maneiras, uma das quais honrando a memória dos que tombaram e lembrando-os a todos sem distinção de raça, classe social ou posto evitando, no futuro, os erros que conduziram a esse passado próximo de guerra.

Guerra injustificada e mutilante sim, mas aquele meu profundo respeito cresce quando, ao sacrificío inútil de tantos cidadãos jovens ceifados e tantas famílias enlutadas se vem acrescentar, muitos anos depois, tão obscenas incapacidade e hipocrisia políticas, apelidando o resultado de paz e democracia. Que resultado e a que preço social e económico?


Não tenciono tão pouco brandir qualquer estandarte em nome de qualquer outro local da Guiné diferente de Guileje mas, sem grande esforço de busca, acudir-me-iam à memória, e bem próximos, Cameconde e Cabedu, onde estive voluntariamente e a cujos militares, com quem convivi, presto aqui a minha homenagem pelo que neles senti de próximo.

Aliás Cameconde (2), onde estava sepultada viva uma secção do aquartelamento de Cacine na margem do rio com o mesmo nome, era exactamento o último reduto defensivo sudeste do famigerado corredor da morte. Caminhando para nordeste, seguia-se-lhe Gadamael, Guileje, Mampatá e Aldeia Formosa.

A largura do rio, excessivamente grande para cambanças rápidas, a permanente presença e fiscalização da Marinha de Guerra e a proximidade do aquartelamento de Cacine, aconselhavam o PAIGC a desviar transportes e abastecimentos mais para nordeste, passando a ser fundamental, nessa estratégia, o corredor de Guileje.

Conheço-lhe o nome e a pesada aura que rodeava a localidade, a que não serão estranhas as centenas de horas navegadas a bordo da LFG Orion, no rio Cacine, em patrulha, fiscalização, operações, transportes e abastecimentos que, ao logo de dois anos e para toda a Guiné, somaram acima das 2.000 horas de navegação.

Aí, no Sul, ficávamo-nos pelo limite possível de navegação segura daquele rio, até junto da marca Lira onde confluiam, a montante, os rios Cafungaqui, Diderigabi, Cacondo e o rio de Gadamael Porto. Para lá daquela marca, apenas botes de fuzileiros ou as LDM's que aportavam pontualmente a Gadamael.

Deste local a Guileje distavam uma escassa dezena de quilómetros mas eram os suficientes para vedar a acessibilidade à Marinha. Para nós, a maioria das vezes, Guileje traduzia-se em rebentamentos ouvidos e, noutros casos, em passagens de helicópteros, sempre um mau presságio mais tarde traduzido em más notícias.

Suspeito que poderia, sem grande esforço e com alguma falta de modéstia, pronunciar mais duas dezenas de locais daquele teatro de guerra igualmente dramáticos para quem lá teve de enfrentar os dois anos de serviço militar e, como exemplo, de forma aleatória, aflora-me à lembrança o nome de Madina do Boé...

Algum sentido de justiça e humildade leva-me a não cometer esse erro grosseiro. Afinal, os locais de drama foram muitas vezes definidos pelo acaso da mina, da emboscada, do tiro perdido, do ataque e até do acidente. Nenhuma diferença substantiva para quem foi vítima ou para os familiares dela e quanto a números e estatísticas, apenas mais um era acrescentado.

Confesso não me ter sentido motivado para qualquer participação no Simpósio de Guileje, mas também porque não houve qualquer apelo à conjugação de esforços e envolvimento de pessoas fora daquele contexto específico - Guileje e o seu aquartelamento.

Houve muitos outros cenários de drama na Guiné e exacerbar em importância uns subvalorizando outros, provocará necessariamente clivagens sociais e a reabertura de feridas ainda por sarar, com a consequente distorção histórica de relatos e acontecimentos.

A mediatização excessiva do evento parece pouco prudente e redutora da História da guerra da Guiné que, embora necessariamente fragmentada em relatos e acontecimentos parciais, não deverá perder uma perspectiva global integrada dos três ramos das Forças Armadas incluindo a cronologia narrativa de início até final.

Assim não tem sido até agora e o relato de acontecimentos cinge-se, em muitos casos, aos anos que antecederam o final da guerra em 1974 ou aos anos imediatamente anteriores. Ora é necessário que fique claro para o registo da História de Portugal que a guerra colonial teve aproximadamente 12 anos de duração, ainda incipiente em finais de 1962 mas eclodindo no início de 1963 com o ataque ao aquartelamento de Tite.

Mais difícil seria imaginar como tem sido possível o esvaziamento quase total da presença da Marinha de Guerra dos relatos e acontecimentos do teatro da Guiné, ignorando a participação empenhada daquele ramo das Forças Armadas e ensaiando a construção de uma História sem aquela componente.

Não deixa de ser estranho já que, sem o empenho da Marinha, como teriam sido transportados a quase totalidade de todos os outros militares para a Guiné sem o gigantesco dispositivo de transportes de tropas que o permitiu, tanto para lá como para os outros teatros de guerra?

Uma vez na Guiné, de forma continuada, como foram transportados para cada um dos aquartelamentos de norte a sul daquele território, como foram abastecidos no tempo, como foram transportados entre locais, como foram escoltados e apoiados em operações, como foram em alguns casos evacuados e que foi feito do convívio partilhado com os marinheiros que incluiram, em muitas situações, o alojamento, a refeição, o combate e até a enfermaria?

Como foram retirados até ao último elemento todos os militares de todos os aquartelamentos da Guiné no final de uma guerra que, para cada um e já no regresso, só terminou no final da viagem do transporte de tropas, na Rocha Conde de Óbidos ou em Alcântara?

Compreenderá o leitor que se expliquem estratégias militares numa guerra impossível sem a presença da Marinha, num território que alaga quase 25% da área continental entre cada duas marés, e que mais parece, por analogia e em toda a orla costeira, um emaranhado sistema circulatório aquático?

Srão do conhecimento geral dados simples como a existência de um dispositivo naval da Marinha de Guerra que, em 1971, chegou a empenhar 1 PC (Corveta), 7 LFG's (Lanchas de Fiscalização Grandes), 8 LFP's (Lanchas de Fiscalização Pequenas), 3 LDG's (Lanchas de Desembarque Grandes), 31 LDM's (Lanchas de Desembarque Médias), 8 LDP's (Lanchas de Desembarque Pequenas), 5 DFE's (Destacamentos de Fuzileiros Especiais), 2 CF's (Companhias de Fuzileiros) e um Destacamento de Mergulhadores Sapadores?

Lamentável que quem escreve não cuide de pesquisar e recolher dados históricos com algum sentido de isenção e rigor. A operação Mar Verde, realizada em Novembro de 1970, inequivocamente de elevado risco e com resultados político-militares duvidosos, teve o condão de libertar 26 prisioneiros de guerra portugueses, um deles nessa condição durante 8 anos, capturado na sequência de ter sido atingido o T6 que pilotava e que, depois de tocado pelo seu asa no Cantanhês, conseguiu aterrar. O outro piloto morreu, ao despenhar-se o segundo avião da parelha.

Regressando a Guileje, num pormenor complementar relevante, a LFG Orion, no início de Junho de 1973, conjuntamente com as LDM's 114 – 410 – 415, a CF 8 e Páras, utilizando como base o aquartelamento de Cacine, onde estava sedeado o DFE 22, evacuou cerca de um milhar de pessoas, incluindo mortos e feridos, entre população e militares em fuga desordenada do aquartelamento de Gadamael que procuraram a fuga no rio e abrigo nas margens, bombardeados pelo PAIGC. Tudo isto como efeito dominó da retirada de Guileje, semanas antes.
No meu espírito e, porque regressei incólume, curvo-me permanentemente ao recordar os que não tiverem a mesma sorte e foram demasiados em toda a Guiné, de ambos os lados.

Guileje foi um dramático exemplo disso mas houve muitos mais.

Um abraço para todos,
Manuel Lema Santos
Ex-1º TEN da Reserva Naval da Marinha de Guerra

LFG Orion, Guiné, 1966-1972. Testemunho de Jorge Teixeira:

2. Testemunho do Jorge Teixeira:

Caro Manuel Santos,
Tenho de concordar contigo. Nunca entendi o porquê do Simpósio de Guileje. Mas aí os autores/participantes que expliquem porquê. Como leigo, abstive-me de comentar.
Mas a mim, mais me pareceu um honorificação do que outra coisa qualquer. De quem ? Não faço ideia.

O meu primeiro contacto na Guiné foi com fuzos. Eles tiraram-me do Niassa e colocaram-me em Bolama. Nos 15 dias que aqui passei, tive o prazer do seu convivio.
Vi muita solidariedade entre eles, com as populações e a tropa que estava de passagem e com a que estava permanente. Isto em Maio de 68. Pouco falavam da sua vida, aliás normal entre a maioria da malta ainda hoje. Só tentamos recordar o bom.

Depois colocaram-me em Catió. E tive a oportunidade de ver o seu profissionalismo, pois o batelão onde fui transportado com o meu pelotão, levava uma pequena guarnição de 3 elementos - velhos tempos em que no Tombali (ou terá sido no Corubal, já não me lembro) se podia ainda navegar sem cuidados de maior - nunca deixaram os seus postos de vigia durante as cerca de 10 horas que demorou a viagem.

Durante a minha comissão tive imensos contactos com eles, os fuzos. Como, por exemplo. Alguem se lembra da retirada do Como e quem a protagonizou? Antes da retirada, as operações quasi diárias - marítimas - para vir buscar água a Catió, a defesa (?)dum espaço enorme, por onde nao se podia andar, por apenas um pelotão, um secção de canhões sem recuo e uma LDM.

Realmente no que tenho lido, pouco se fala da Marinha. E acho que tens razão ao sentir que é um ramo desprezado. Ainda te dou razão quando dizes que a Guiné foram 12 anos de martírio e não houve só Guileje.

Eu costumo dizer que fui um privilegiado. Outros nem por isso. Mas recordêmo-los a todos, porque todos fomos iguais.

Um abraço,
Jorge / Portojo
___________

Notas de vb:

(1) Vd. artigos do Manuel Lema Santos:

213 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1842: 10 de Junho: Nós também estivemos lá (A. Marques Lopes / Lema Santos)5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema

7 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1571: A Operação Larga Agora, o Tancroal / Porto Batu e as cartas náuticas do Instituto Hidrográfico (Lema Santos)

11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

(2) Cameconde traz más recordações a alguns camaradas nossos, como o João Parreira. Foi nessa região que viu morrer, a seu lado, o Fur Mil Cmd Morais, no decurso da Op Ciao, em 7 de Maio de 1965. O João Parreira, também conhecido pela sua alcunha, o Uva, já aqui descreveu a morte do Morais, através de mim, que cito o seu diário: vd. post de Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote

"8.CAPITÃO MANILHA

"(...) Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva [João S. Parreira], um deles, podia ler-se.

“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.

"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.

"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.

"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.

"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a SW de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.

"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!

"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.

Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me." (...)

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