sexta-feira, 14 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O Fur Mil Op Esp Humberto Reis, da CCAÇ 12, junto aos brazões das unidades que passaram por Bambadinca, e ao pau ao da bandeira. Ao fundo, vê-se a escola onde leccionava e vivia a misteriosa professora do ensino primário, caboverdiana, Dona Violete, aqui evocada, mais uma vez, por Beja Santos, que fez dela uma informante privilegiada sobre a história e a cultura da região. O Humberto Reis, pro sua vez, é o principal contribuinte (líquido), em termos de créditos fotográficos, do livro do Beja Santos, Diário da Guiné: 1968/69: Na Terra dos Soncó (Lisboa: Temas & Debates, 2008), cujo lançamento no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa, foi um acontecimento literário e social... Os parabéns ao autor, Beja Santos, nosso querido amigo e camarada, à editora Temas & Debates / Círculo de Leitires e ao nosso querido co-editor Virgínio Briote que aproveitou para fazer uma reunião da nossa tertúlia... Quem perdeu este memorável evento fui eu, que estive no Simpósio Internacional de Guiledje, em Bissau... Aproveito para agradever publicamente, à Dra. Isabel Mafra, da editora Temas & Debates, a oferta de um exemplar do livro e as palavras amáveis que me dirigiu, a mim e ao nosso blogue... (LG)

Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-o-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu). As Daimlers limitavam-se a fazer segurança à pista de aviação e, às vezes, às colunas logísticas para Mansambo e Xitole... Não sei se alguma vez chegaram ao Saltinho... A viagem a Bafatá era um passeio dominical... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 2 de Janeiro de 2008:

Luís, enquanto aguardo as tuas notícias, aqui vai o episódio n.º 23. Seguem igualmente propostas de ilustrações. Lembrei-me, caso concordes, podíamos mostrar a imagem da escola, já em derrocada. Tens aí também fotografias do Vacas de Carvalho, do Xime e de Amedalai. Recebe um abraço do Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXIII: OPERAÇÃO TOPÁZIO VALIOSO
por Beja Santos


(i) O regresso a Bambadinca, vindo de Bissau

No Dakota, mal saímos de Bissalanca, comecei a escrever febrilmente no caderninho viajante: recordações maravilhosas de um jantar em Mansoa, pela primeira vez atravessei o rio na jangada em João Landim, os casais Payne e Rosa acertaram pormenores quanto à vinda da Cristina; anoto que é urgente ter resposta se Bafatá me concede, a título excepcional, o gozo de uma licença para casar em Fevereiro, a Cristina anunciou que tem todos os papéis, está a prepara a cerimónia; procurar conversar com a Sr.ª D. Violete e escrever a Teixeira da Mota sobre a questão intrigante de Abdul Indjai, do Oio, premiado com o regulado do Cuor por Teixeira Pinto, e mais tarde banido para Cabo Verde, é importante esclarecer este triunfo e queda de um ídolo da Guiné do princípio do séc. XX.

O avião chega a Bafatá, o mercado ao ar livre está em todo o seu esplendor, compro um lenço para a Cristina, uma bolsa para a Celeste, caju para os meus sobrinhos, cola para enviar ao Paulo e ao Fodé. Enquanto não chega o jeep que me levará de regresso a casa, vou aos estabelecimentos Eduardo Teixeira onde descubro dois livros numa estante poeirenta de quinquilharias, entre policiais, que se revelarão muito boas leituras: Lenine, do filósofo Roger Garaudy, e O Socialismo no Futuro da Península, de Vitorino Magalhães Godinho. Aproveito ainda para escrever à minha Mãe, participando-lhe a iminência do meu casamento e pedindo-lhe para depositar dinheiro na minha conta.


Chego a Bambadinca, recordo que estava um céu límpido, um dia quente, na escola as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio. Dirijo-me ao quarto e nisto oiço uma gargalhada estentórica e depois o bom acento alentejano. Acabo de conhecer o José Luís Vacas de Carvalho, o comandante do pelotão Daimler 2206, que vem substituir o Machado, o tal antigo estribeiro-mor de D. Violete.



O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Foto: © (2006). Direitos reservados

Se as nossas armas eram anacrónicas, nunca consegui perceber a utilidade daqueles veículos na guerra de guerrilhas. As Daimler pareciam apropriadas para as batalhas no deserto, no tempo do Afrika Korps, aqui, pensava eu, o seu desempenho era irrelevante. Todas as colunas ao Xitole levavam uma Daimler à frente, com a sua metralhadora Dreyse, lá dentro seguia um condutor e um apontador. O Vacas de Carvalho levava uma vida santa, sempre que aterrava um avião na pista de Bambadinca havia uma Daimler a montar segurança, ele comandava uma dúzia de praças e um furriel, vivia ocupado como instrutor de tiro das milícias, ouvimo-lo regularmente quando estávamos destacados na ponte de Udunduma, ele também era encarregado da escola e procurava fazer milagres com os soldados analfabetos, como todos nós cumpria tarefas como oficial de justiça e colaborava no reordenamento dos Nhabijões.

Irá revelar-se como um dos animadores das mesas de lerpa, aqui há uns tempos encontramo-nos no British Bar, em pleno Cais do Sodré, rememorámos façanhas e comédias e com a mesma voz possante do passado ele começou a sua narrativa neste modo:
- Beja, a primeira imagem que me vem à cabeça és tu a correr atrás de mim a atirares-me Lauroderme, aquele pó de talco que sempre usavas antes e depois das operações...

Enquanto conversávamos, foi como me viesse à memória esse dia, em finais de Janeiro, tinha a porta do meu quarto o furriel Vitorino Ocante, que se queria apresentar, bem como o Príncipe Samba, Albino Amadu Baldé, oriundo do Corubal, comandante de milícias de Missirá, uma das vitimas da mina anticarro de Canturé, em 16 de Outubro passado, tinha ainda os pés engessados, apoiava-se em muletas, vinha também cumprimentar e informar que seguia para Bissau para nova cirurgia. Após esta troca de cumprimentos, veio Bala, o ordenança do comandante, informar que o major de operações tinha urgência em falar comigo. Aproveitei para pedir ao Bala para falar com a Sr.ª D. Violete, pedia-lhe para me receber a seguir ao jantar.

(ii) Uma conversa com o major Herberto Sampaio


Mal entrei no gabinete, o major de operações [ do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70,] indicou-me uma cadeira em frente ao mapa e ter-me-á dito algo como isto:
- Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Buruntoni. Chama-se operação Topázio Valioso. Não sei o que é que vocês vão encontrar, no reconhecimento aéreo não se vêem trilhos, não há sinal de vivalma. No entanto, eles estão activos. No dia 13, houve uma operação entre o Xime e a Ponta do Inglês, emboscaram com violência. A mata ali é muito fechada, não se consegue ver nada. Aqui há dias, a CCAÇ 12 e a companhia do Xime foram à Ponta do Inglês, de repente surgiu um trilho, foi-se por aí e apanharam população civil que andava a lavrar na bolanha do Poidom. Vamos agora saber se eles partem do Buruntoni, se têm alguma base entre o Baio e o Buruntoni. A companhia de Mansambo e o pelotão 63 saíram de Mansambo em direcção a Gundaguê Futa-Fala, se houver condições vocês regressam todos juntos até ao Xime, se não for possível fazer o reencontro, vêm separadamente. Aproveito para o informar que o mês foi anormalmente calmo, Missirá, Finete, Mansambo e Taibatá foram flageladas sem consequências, o prisioneiro que você levou para Bissau já regressou e deu muitos problemas, têm aparecido minas na estrada Xime-Bambadinca, foram detectadas a tempo. Hoje descansa, amanhã de manhã vai a Samba Juli e depois aos Nhabijões, é tudo uma coisa ligeira, a meio da tarde partem para o Xime. Recordo que chegou o tempo das insolações, cada um de vocês deve levar dois cantis, não esqueçam o mosquiteiro.



(iii) Um serão com D. Violete: recordações de uma professora no Cuor



À saída do gabinete, tenho o Mazaqueu à espera, o meu jovem amigo quer esferográficas, cadernos e algum dinheiro para doces e uma laranjada. Num aerograma para a Cristina, datado de 29 de Janeiro, refiro a minha preocupação com as cartas recentemente recebidas do Carlos Sampaio. A vida operacional em Cabo Delgado está a arrasar-lhe os nervos, a despeito da captura de armamento e de uma excelente relação com os seus militares. As suas cartas só falam dessa atmosfera a ferro e fogo, aqui e acolá há referências ao nosso futuro no projecto editorial para o qual ele me convidou, mas a sua prosa é crispada, há indícios seguros de desalento. Termino o aerograma lembrado-lhe que a minha ida a Lisboa é ainda uma completa incógnita, pelo que apoio a ideia de haver o casamento civil a 7 de Fevereiro, o resto fica tudo em aberto e renovo o meu pedido para visitar o major Cunha Ribeiro e o Casanova, ambos no Hospital Militar Principal. É nisto que Bala me vem informar que a Sr.ª D. Violete confirma que está disponível nesse serão.~

A professora recebe-me com a sua afabilidade habitual, mudou a oxigenação no cabelo, está maquilhada a rigor e conduz-me para a mesa da sala de jantar, sai e regressa com um bule fumegante. Enquanto serve o chá, recorda-me que lhe prometi levá-la a Bafatá em breve. Não esconde o sorriso quando eu abro o meu caderninho e atalhou prontamente:
- Sr. alferes, estou preparada para o seu interrogatório.

Comecei por lhe falar de Sambel Nhanta, vem nos livros como residência do régulo do Cuor, o nome não consta nos mapas, só Sansão e Missirá. Abro um desses livros, mostro-lhe, ela vê e responde:
-É Caranquecunda, uma terra de fulas, a tabanca dos sapateiros, são os artistas que fazem sapatos e os amuletos para trazer as mezinhas, os guardas de corpo. Era importante pelo seu comércio, tinha lojas, as tropas de Bissau chegaram a pernoitar aqui. Mas não era uma povoação importante no Cuor. Verdadeiramente importantes, há cinquenta anos atrás e mesmo quando a guerra começou, eram Cancumba, Canturé e Mato de Cão, tudo por causa das destilarias e do amendoim.

Perguntei-lhe se já tinha ouvido falar de Abdul Indjai, o tal herói deportado. Sim, confirmou, Abdul era sobrinho de Infali Soncó, quando este se rebelou contra as autoridades portuguesas, ele ajudou a esmagar a rebelião e fora nomeado régulo. Mais tarde Infali voltou, mas acabou por ir morrer na região de Quínara, sucedendo-lhe Bacari, que ela ainda conhecera. Perguntei-lhe depois se tinha sido professora no Cuor.
-Estive três anos em Gã Gémeos, senhor alferes, entre 1959 e 1962. No fim desse ano, a luta começou e logo muito intensa, desapareceu a grande tabanca de Canturé, Chicri, Mato de Cão, Malandim, Cancumba, Maná, Aldeia do Cuor, Sancorlã, Paté Gidé, foi um mundo que se desmoronou, fiquei com a escola vazia, as populações fugiram para o mato, para Bambadinca, Galomaro, para as tabancas de Joladu. Gã Gémeos permitia-me ir de barco de manhã cedo e regressar a Bambadinca a meio da tarde. Estava perto de Canturé, onde residia grande parte da população do Cuor, aqui a agricultura era muito rica, o islamismo já tinha grande peso mas as famílias mandingas queriam que as crianças soubessem português. Este tremor de terra acabou nos inícios de 1963, só os Soncó ficaram em Missirá, todas as famílias juraram morrer com o seu régulo. Finete desapareceu nessa altura, creio que foi por volta de 1965 que voltaram quando as tropas da milícia vieram para os proteger. Era eu professora em Fá Mandinga, em 1957, quando dei pela presença de Amílcar Cabral a trabalhar entre Gambana e Canturé, se o senhor alferes lá voltar, irá encontrar blocos de cimento a assinalar os quilómetros em direcção a Geba. Aqui me tem em Bambadinca, a ensinar meninos que vêm fugidos de vários regulados, habituaram-se a viver aqui, estão à espera que a guerra acabe para voltar para as suas terras. Tenho saudades de Gã Gémeos, de subir o rio, ir até ao Gambiel, ali a floresta é muito bela.

Confirmei essa beleza, tinha estado várias vezes no Gambiel, um dos locais mais formosos e paradisíacos que conheci. Despedi-me, voltando a pedir licença para voltar em breve.
-Que tema quer tratar a seguir, senhor alferes?.

Beijando-lhe a mão, agradecendo o saboroso chá preto, lancei-lhe o desafio:
-Se concordar, vamos falar do islamismo, como tem sido possível não haver nesta guerra de guerrilhas uma guerra religiosa.

Ficou entusiasmada com a sugestão.


(iv) Queta Baldé fala-me do Xime

É escusado pôr a memória de Queta à prova: sabe muitíssimo mais do que esqueceu, antes de chegarmos ao regulado do Xime, que ele conhece como as suas mãos, pedi-lhe informações sobre as povoações que visitávamos a partir do eixo Bambadinca-Bafatá, descreveu-me Bantajâ Mandinga, Bantajâ Assá e Bantajâ Cuta como se lá tivéssemos ido ontem, recordou-me o caminho para Quecuta, as diferentes tabancas do regulado de Badora, como Sinchâ Dembel e Bricama. Fui deslizando a conversa para o Xime, a vivacidade de Queta aumentou. As suas recordações passavam por uma placa que o PAIGC afixara em Gundaguê Beafada, em 1964, dizendo “aqui começa a Guiné Cabo Verde”, e qual tinha sido na reacção das tropas vindas de Bafatá.

Queta é de Amedalai, vira nascer o quartel de Bambadinca, fizera parte das milícias que defenderam a Ponta do Inglês, vira formarem-se pelotões de milícia que defendiam Amedalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, conhecia a palmo a região da Ponta do Inglês até ao fundo do Corubal. E vira também desaparecer quartéis, vira desmantelar-se regulados, considerava uma desgraça total o abandono da Ponta do Inglês que viera permitir a total liberdade do PAIGC no Poidom e em Ponta Varela, a sua enorme capacidade ofensiva na estrada entre o Xime e Bambadinca, sobretudo entre Taliuará e Ponta Coli, aqui o mato é denso e as emboscadas ferozes de gente que vem bem armada e que não foge só porque há reacção das tropas portuguesas.

E depois da conversa ziguezagueante, perguntei-lhe se se recordava de mais um fiasco, a Topázio Valioso, cerca de trinta horas a vaguear entre o capim alto e o arvoredo frondoso, com dois guias permanentemente perdidos que ora iam em direcção de Gundaguê Beafada, ora em direcção do rio Corubal.
-Nosso alfero, passados estes anos todos, continuo a pensar que era um erro muito grande quando chegávamos a um quartel não se perguntar à tropa quem é que conhecia a região, todos nós tínhamos que aceitar andar atrás de um guia , ou de dois guias, só porque eram propostos pelo régulo do Xime ou pelo chefe de tabanca. A maior parte das vezes, esses guias tinham ido uma ou duas vezes ao Buruntoni em miúdos, a natureza tinha mudado completamente. Na época seca, estava tudo diferente, os guias fugiam da estrada, quando encostávamos para as palmeiras de Gundaguê Beafada começava a desorientação. Era aqui que se podia ir em direcção ao Baio, ao lado do rio Buruntoni, mas era muito perigoso, começava aqui uma terra de lalas, o PAIGC tinha sentinelas, foi aqui que perdemos em 1967 o nosso bazuqueiro, Mário Adulai Camará. Perdemo-nos no rio Buruntoni, na manhã seguinte a avioneta denunciou-nos, os dois guias não sabiam bem o que andavam a fazer, fomos arrastados para perto da Ponta do Inglês, quando chegámos ao rio Buruntoni era o fim da tarde, tivemos que descansar. Na manhã seguinte, continuou o castigo, nem nos encontrámos com a tropa de Mansambo, nem avistámos trilhos e depois veio a ordem da avioneta para regressarmos ao Xime a meio da tarde, já sem água e sempre a pensar em emboscadas na mata fechada de Madina Colhido. Felizmente que nada aconteceu, mas ficámos chateados, aquilo não era maneira de fazer guerra. Foi assim que se criou a ideia que não era possível ir ao Buruntoni, ora era possível ir ao Buruntoni a partir de Mansambo ou de Moricanhe, caminho que nunca se fazia porque em Mansambo não havia guias e nunca ninguém perguntou se nós servíamos para guias. Podíamos tê-los apanhado de surpresa e nunca aconteceu. Foi triste.

(v) Uma semana de leituras incomparáveis

Não há exagero, foram mesmo leituras incomparáveis. Primeiro, Um homem de talento, de Patricia Highsmith. Tom Ripley é, pelas minhas contas, o primeiro assassino metódico realmente bem sucedido. A pedido de um industrial afortunado, Herbert Greenleaf, Tom, um pequeno escroque, sem eira nem beira, sempre à procura de expedientes, vai até Mongibello, em Itália, para ver se traz de volta Richard Greenleaf, Dickie, que tenta a vida artística. Vai começar a vida afortunada de Tom, que começa por ter férias pagas e congemina o assassínio de Dickie, apropriando-se da sua identidade, até o fazer desaparecer, deixando poucos vestígios, desnorteando a pouco motivada polícia italiana. Tom, disfarçado de Dickie, passeia-se por Roma, inventa desculpas para não ver nem visitar amigos, escreve à namorada de Dickie em termos tais que esta se convence que os afectos se esfumaram. Nas cartas forjadas para os pais de Dickie, vai deixando no ar o sentimento de uma depressão, de um abandono. Em Roma, em desespero de causa, é obrigado a matar Freddie, um amigo de Dickie, numa situação desesperada que podia ter levado à revelação da trama urdida. Tom vai viver para Veneza e aí inventa um testamento de Dickie. No final, vai receber uma boa maquia, depois de andar inquieto com os interrogatórios policiais.



Capa de Um homem de talento, por Patricia Highsmifh, colecção Vampiro, nº149. "É uma obra determinante,irrecusável.Depois deste livro,o crime cerebral ganha ampla dimensão,passou a ser possível matar sem receber a sanção exemplar. Depois, está escrito como nunca se escrevera, mesmo sabendo-se que Georges Simenon é um gigante da literatura. Neste caso, a tradução de Mário Henrique Leiria ajuda muito" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tal como Sherlock Holmes era o detective inteligente, capaz de pôr a dedução ao serviço do problema, tal como Ellery Queen pusera fim ao detective dos músculos e ao policial de acção, introduzindo um equilíbrio entre o problema e o desfecho prodigioso, Patricia Highsmith reconstrói o policial dentro das regras da grande literatura, deixando-nos na dúvida se é necessário, doravante, acrescentar à literatura o qualificativo de policial. Um homem de talento é, com efeito, muito boa literatura e indisciplina os convencionais desfechos punitivos do criminoso. Eu ainda não sabia, mas Mr. Ripley ia ficar gloriosamente na literatura e até passar ao cinema.

A outra experiência avassaladora foi O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca. Já li na Guiné Seara de Vento e Aldeia Nova, bem como alguma muito boa poesia. Mas este livro de contos instala a minha reconciliação com os cânones do neo-realismo: é uma escrita afogueada, vibrante, medularmente alentejana, é tudo simples e grande, sem pormenores balofos, piruetas popularuchas. Logo o arranque do primeiro conto:

“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoínha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila”.

São contos inesquecíveis: como a telefonia mudou aqueles lugares no fim do mundo; as declarações de amor entre miúdos, as maldades de um velho sovina que controla a existência de um filho adulto; uma noite de Natal numa venda, os amores de lavradores alentejanos, histórias de ódios, de misérias, de solidão. Manuel da Fonseca escreveu pequenas obras primas e faz-me amar ainda mais o Alentejo dos ganhões e malteses, universalizando o sofrimento desta terra bastarda.

Capa do livro O fogo e as cinzas, de Manuel da Fonseca. s/data, sem referência ao capista,1ªedição,Editorial Gleba, Lda (BS)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Para a semana vou casar-me, haverá mesmo festa em Bambadinca. É um mês de Fevereiro em que vou descobrir que não tenho direito a férias nem a nenhuma licença. Espera-me a ponte de Udunduma, duas vezes irei ao Xitole, andarei em emboscadas e um dia abro uma carta e, aturdido, descubro que perdi o meu maior amigo na guerra. O mundo ia adquirir uma outra importância, a minha vida um outro significado. Será que vale a pena tentar falar desse meu sofrimento, desse desabamento?
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 29 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!
(2) Sobre a Professora de Bambadinca, vd. os seguintes postes:
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)

Sem comentários: