1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem, em 5 de Fevereiro de 2010:
OS EFEITOS COLATERAIS DA GUERRA
Por volta do fim de Março de 1971, tive de me deslocar ao Hospital Militar da Estrela, por motivos das análises que tinha efectuado ao Paludismo, aquando da desmobilização no RAL 3 em ÉVORA.
Nessa minha deslocação, apanhei um eléctrico no Largo de Camões com destino à Estrela. Como sempre viajava junto ao guarda-freio (na frente do eléctrico junto ao condutor), quando de repente disparou a protecção do circuito eléctrico, que liga o trólei aos cabos condutores aéreos de alimentação da energia.
O disparo provocou um forte estrondo, e eu acabado de regressar das lides guerreiras, reagi instintiva e instantaneamente, saltando do eléctrico e enfiando-me na primeira porta aberta de um prédio em frente.
Perante o espanto geral de toda a gente, que no viajava no veículo e vários citadinos, que, apeados, circulavam na rua e que foram os primeiros a chegar junto de mim, indagando sobre o que me tinha acontecido.
Dei a minha explicação, dizendo que eram efeitos da Guerra do Ultramar, da qual tinha regressado recentemente, nomeadamente da Guiné.
Sem saber como e donde, apareceu um indivíduo, intitulando-se jornalista do jornal “O Século”, que me informou que gostava de relatar o acontecimento, ao qual não me opus e eu compus a notícia.
A redacção dizia, mais ou menos, o seguinte:
"Ontem, pelas 10h00 da manhã, um militar recém-regressado da Guerra da Guiné, atirou-se dum eléctrico em andamento (carreira 28), perante o espanto geral de todos os passageiros, quando o circuito eléctrico do carro disparou estrondosamente. O mesmo encontra-se bem apesar de alguns ferimentos ligeiros.
Este é um dos efeitos colaterais de que sofre uma boa parte da nossa juventude, cicatrizada pelas vicissitudes da Guerra do Ultramar e que lhes marcará as memórias, para todo o sempre."
É obvio que esta notícia foi sujeita ao “lápis azul” dos censores da época, que depois de censurada foi recomposta do seguinte modo:
"Ontem, pelas 10h00 da manhã, um cidadão regressado à pouco tempo do Ultramar, caiu de um eléctrico em andamento, da carreira 28, perante um movimento brusco do mesmo veículo, quando viajava pendurado no estribo do mesmo."
Para os mais jovens esclareço que, nessa época, o regime político de Salazar/Caetano, tinha os seus acólitos sempre atentos sobre todas as notícias da Guerra do Ultramar, exercendo severa censura sobre todas elas, inclusive as de menor interesse, como era esta agora descrita.
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5709: Controvérsias (63): A(s) guerra(s) e a(s) maneira(s) de a(s) fazer (Belmiro Tavares, ex-Ten Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta, Farim, 1964/66)
5 comentários:
Caro Mário
Isso julgas tu,sobre tal notícia parecer sem importância. Tinha e muita, porque para as cabeças que não eram ocas, logo pensavam que afinal a guerra era a doer e deixava marcas graves.
Esta censura férrea que se fez aos noticiários sobre a guerra, é o maior motivo para a desinformação geral que grassou nas pessoas, que as levou a nunca compreenderem que houve guerra a sério.
As famílias não se juntavam quando da chegada para em conjunto verem "os destroçados" que desembarcavam.
Recebiam-nos em casa isolados.
Não havia massificação da população para os ver.
Daí o estado geral do País que nunca "nos reconheceu" como sofredores, mas apenas como indivíduos que foram passar umas férias e ganhar dinheiro à custa deles, pois até diziam que lá ganhávamos muito mais do que cá, como a mim me disseram, que o que ganhava como Capitão era muito superior ao que ganhava como Engenheiro de 3.ª!! Não os mandem para o c...... porque ainda era educado. Apenas lhes perguntei porque não se ofereciam para irem como Capitães?
Para mim essa foi a razão principal para sermos tratados como fomos.
Abraço
Jorge Picado
Camarada Mário Pinto, hoje, apesar do lápis ter desaparecido, pelo menos por enquanto, a forma como os combatentes (não)são tratados é bem pior do que antigamente.
A desinformação que grassava antes do 25 de Abril de 1974, retratada no comentário do Jorge Picado, modificou-se?
Se alguma mudança, no que ao tratamento dos combatentes diz respeito, existiu, foi para pior!
Eu não voltarei a alinhar no coro desafinado dos protestos que de vez em quando pontilham este ou aquele post.
Vou, juntamente com alguns camaradas nomeadamente na Tabanca do Centro, estudar as possibilidades de poder dar um pouco de conforto a camaradas nossos para quem a vida actual é um pesadelo constante.
Os meus pesadelos acontecem de quando em vez mas a minha mulher resolve-os com uma cotovelada, sou pois um privilegiado ao pé dos que se arrastam por essas ruas tendo como paga da pátria que serviram com espontaneidade, ou foram
obrigados a servir, o desprezo desta sociedade que cada vez mais me enoja.
Se não conseguirmos fazer nada, então integremo-nos calmamente na tal sociedade.
Espero ver-te na Tabanca do Centro no nosso próximo encontro.
Um abraço amigo do
Vasco A.R.da Gama
Mário:
Ainda bem que relatas esse incidente (que até podia ter consequências gravosas para ti, valeu-te se calhar os bons reflexos e a forma física...).
A notícia (censurada e refeita) no 'Século' não deixa de ser uma anedota... Afinal, estávamos em guerra, mesmo que a população em geral mal desse conta de tal facto, mas era bom - na cabeça dos censores, coronéis da tropa ! - que não aparecessem 'fissuras' na rectaguarda, ideias ou factos 'dissolventes'... Em todos os conflitos, há a tendência para silenciar, escamotear ou branquear "o que se passa na frente" ou "o estranho comportamento dos que regressam"... Teme-se a abrir a ciaxinha de Pandora...
É curioso reparar no entanto, talvez porque seriam jornais de provincia, que em muitos desses jornais eram bastantes vezes publicados os louvores dos militares da terra, que normal e logicamente falavam da guerra.
Logicamente a falta de informação, e até mesmo desinformação sobre a guerra, levava, (levou-me a mim), a uma revolta interior e muitas vezes exterior e violenta, perante a indiferença daqueles que viviam na metrópole em relação aos combatentes regressados.
Por essa razão aceitei ir para Angola trabalhar quando vim da Guiné, pois aí percebiam mais ou menos o que tinha passado.
Abraço camarigo para todos
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