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Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.
Um abraço do
Mário
Armor Pires Mota (7)
A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor
Beja Santos
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Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.
Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.
É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.
E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.
Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.
Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.
Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.
Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!
Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)
Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)
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