sexta-feira, 9 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6137: Notas de leitura (91): Depois da guerra, as recordações da região de Cacine... e algo mais , de Luís Rosa - II (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 9 de Abril de 2010:

Queridos amigos,

Graças ao camarada Manuel Joaquim, conheci a primeira edição de “Memória dos Dias Sem Fim”, que se encontra facilmente nas livrarias.

Tenho para mim que há parágrafos deste livro que irão passar à posteridade.



Depois da guerra, as recordações da região de Cacine... e algo mais

Referimos aqui, há uns tempos atrás (poste P5503, de 19 de Dezembro de 2009), a obra do escritor Luís Rosa “Memória dos Dias Sem Fim” (Editorial Presença, 2009).
Luís Rosa é hoje um autor conceituado e a literatura da guerra colonial da Guiné fica a dever-lhe páginas sublimes.
Na recensão então feita, houve a preocupação de mencionar parágrafos desta obra que seguramente farão parte das antologias do género, tendo deplorado o final do romance, de um mau gosto enorme pela sua impossibilidade cultural, guineense não é macaco de feira, ocidental de ocasião.
Graças ao nosso camarada Manuel Joaquim, acabo de descobrir que o Luís Rosa já tinha feito uma edição de autor desta mesmíssima obra em 1990, tendo-a intitulado “Depois da Guerra”.
Tudo começa no cais do Pidjiquiti e com uma conversa com o comandante Nalu, ali se aborda o massacre do Pidjiquiti de 1959. As páginas dedicadas a Sangonhá são de uma enorme beleza:
“Tínhamos chegado a Sangonhá na véspera. Ao cair da noite ouvimos para sul três tiros em Canefaque.
Três tiros de arma grossa. Era o sinal.
O percurso para Sangonhá tinha sido difícil. Com os guerrilheiros a emboscarem a coluna.
Os guinchos a puxarem as enormes árvores tombadas na estrada.
As serras mecânicas gemendo num esforço entrecortado.
A ramaria caindo e sendo arrastada. Os sapadores pesquisando as minas no chão poeirento e nas abatizes.

Os tiros dispersos vindos do mato, levavam a morte num silvo ou morriam nos troncos.
De um lado e de outro uma vontade decidida de avançar ou vender cara a retirada. Mais atrás seguia o grosso da coluna, apenas pelo ruído se apercebendo do que passava à frente...
Assim se entrou de rompante no cruzamento de Sangonhá, blindados à frente, cortando com as rajadas as largas folhas das bananeiras, enquanto os tiros do mato iam rareando, dizendo pela distância e por fim pelo silêncio, a resignação, pela retirada forçada.
Os homens do mato refugiaram-se no Quitafine, enviando mensagens para toda a área de que a tropa ocupara Sangonhá.
Depois tinham surgido aqueles três tiros em Canefaque, no extremo sul. Era o sinal de reunir todos os grupos da guerrilha, da área de Cacine a Cabedu, de Cameconde à Ilha de Melo...
Aqueles três tiros para o lado de Canefaque fizeram-nos prever o pior. Tínhamos dois blindados Fox e dois velhos granadeiros.
Pusemo-los aos cantos, para cruzarem o fogo e imporem respeito. E assim, uns na vala, outros nos carros, passámos aquela noite.
A segunda noite, porém, chegou com a sensação rasgante e densa de que qualquer coisa ia acontecer.
Logo que a escuridão caiu sobre as palmeiras, começaram-se a ver pequenas luzes, como de isqueiros ou pirilampos.
Todas as forças da guerrilha da península do Quitafine se tinham juntado para acabar com a guarnição...
A escuridão e os mangueiros, ajudaram a aproximação. A ponto de um homem do blindado se aperceber de uma sombra a deslocar-se a uns cinquenta metros.
Abriu fogo e o inferno explodiu, escancarando a gorge por todo o lado. Não durou muito. Talvez uma meia hora.
Quando a manhã surgiu ainda embrulhada em trevas, mas já deixando distinguir a nitidez das formas, ouviu-se uma voz seguida de muitas, exclamações de espanto interrogativo.
À volta do quartel viam-se capacetes imóveis, um homem semi-erguido, ainda agarrado ao arame farpado e aquela arma imponente espreitando em desafio por detrás do “mangueiro”. São descrições de uma elevada contenção, a sobriedade que não deixa margens para a lamechice.
Aqui e em muitos pontos da obra, o horror é sempre condicionado pela justa medida, não se dissimula o olhar de África por outra observação que seja a do militar que põe perguntas sóbrias e concretas, que executa sem vanglória ou à procura de ficar no retrato.
Assim fala de um prisioneiro barbaramente tratado, no fundo não passa de um doente, foi preciso um diagnóstico do médico para acabar com a pancadaria selvagem.
Assim fala de uma velha mulher que terá vindo de um acampamento inimigo, que atravessa Sangonhá sem uma palavra e que caminhou para o lado da fronteira, à procura de um destino que ninguém entendia.
Assim se fala da brutalidade das relações sexuais com uma sinceridade que nos recorda a fio-de-prumo o que vimos, ouvimos ou soubemos que existiu.
É um livro que merece ser lido, independentemente do juízo crítico que faço ao final da obra. Há aqui páginas de ouro, aqui se gravou em pedra rija muita dor incontida num encadeamento de relatos de elevado valor literário.

Luís Rosa


Um abraço,
Mário Santos
Alf Mil At Inf Cmdt do Pel Caç Nat 52
__________

Notas de M.R.:

Vd. também, sobre esta obra e seu autor, o poste desta série publicado em:

19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa - I (Beja Santos)

Vd. último poste da série publicado em:

7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

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