quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6122: (Ex)citações (64): Guerras feitas, amores desfeitos (José Corceiro)


1. Comentário, de 6 de Abril de 2010, do José Corceiro, ao poste de P6115:


Estimados Tertulianos:  Na resenha que o Beja Santos faz do livro Ciclone em Setembro, de Cristovão de Aguiar, refere o drama do Niza (**).

Em Canjadude, na CCAÇ 5, houve um caso, real, do qual fui testemunha, que eu considero bem mais grave.

Um militar, metropolitano e já casado, faltavam-lhe cerca de três meses para terminar a comissão na Guiné, quando recebeu uma carta dos pais, a comunicar-lhe que a esposa tinha ido a entregar os dois filhos do casal, ainda bebés, aos pais dele, ela abandonou o lar, ausentando-se para parte incerta, na companhia de outro homem.

Também ele tinha uma tatuagem no peito, onde estava rabiscado um coração a ser penetrado por uma seta e dentro deste, as palavras,"amor de esposa", seguido do nome desta. No abrigo onde dormia, improvisado numa prateleira junto da cabeceira da cama, tinha sempre a fotografia da esposa e dos filhos.

Passou um mau momento, muito perturbado, e ameaçava que ia cometer triplo homicídio. Acabou a comissão, nada mais soube [dele].

Um abraço

José Corceiro

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Nota de L.G.:



(...)  E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda,  a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. 

Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. 

Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999. (...)

2 comentários:

Anónimo disse...

A literatura não se faz de casos mais graves ou menos graves. A literatura é feita do plausível, i.e, do que poderia ter acontecido. Há factos verídicos e testemunhados que, transpostos para um livro, cheiram a mentira pura. Ninguém acredita. E se o Niza nunca tivesse existido? Diminuiria este facto uma realidade inventada ou reinventada? Qual será o maior artista teatral: o que entra em palco bêbedo para representar uma personagem ébria ou que entra sóbrio e finge tão bem, que os espectadores julgam que estão em presemnça de um verdadeiro bêbedo? A arte não é cópia. É reivenção. Claro que se não reiventa a partir do nada, mas, sim, a partir da experiência de quem escreve. O escritor mente para se tornar mais verdadeiro e acutilante. Alguém saber-me-á dizer o que é a verdade? E a mentira? Setrá que a verdade da guerra colonial
é a mesma dos chefes e dos que deram o coirão nas picadas?

Anónimo disse...

Ilustre amigo Anónimo

Quando no comentário que fiz ao poste P6115 e eu digo: … que eu considero bem mais grave.
A minha intenção quando fiz esta afirmação, que a mantenho, não foi no sentido de despoletar análises comparativas, entre ficção e factos reais e muito menos enveredar por campos de pura psicologia comparativa. Eu somente quis expressar o meu testemunho dum facto real, que aconteceu a um camarada meu, que dormia no mesmo abrigo ao lado da minha cama. Assisti ao drama que ele vivia desesperadamente, tendo eu servido algumas vezes de confidente. Não sou ingénuo ao ponto de não saber que o meu problema, ainda que pequeno, é sempre mais relevante e importante, para mim, que o grande problema doutra pessoa. Um problema só existe enquanto não surja outro que se sobreponha.
É claro que alguns pormenores que dou no comentário, que foram parcos em relação ao que escrevi na altura, posso complementá-los com fotos. Eu quando no comentário digo - …rabiscado um coração… Eu nos meus registos de acontecimentos, da época, tenho escrito: …tinha uma tatuagem no peito em forma de coração…. Mas o complemento foto, diz-me que a linha que delimita a superfície do desenho do coração, não é continua e assim escrevi … rabiscado um coração… e não em …forma de coração …. Para estar mais de acordo com a realidade, embora seja um preciosismo desnecessário para a questão em análise.
Um abraço e boa noite

José Corceiro