Queridos amigos,
Aqui estou, dentro de uma tempestade açoriana, é um anti-ciclone que me irá devastar durante mais tempo. Aliás, a seguir ao Cristóvão de Aguiar vem o Álamo Oliveira. Renovo os meus votos de uma Páscoa renovada no ânimo de cada um.
Se me quiserem ouvir, volto a suplicar que vejam nas nossas estantes quaisquer outros autores que me possam ajudar a compreender quem mais escreveu nos anos 80, sobre a nossa guerra.
Há alguém que me possa emprestar o livro do Rui de Azevedo Teixeira?
Um abraço do
Mário
Mafra, Pico da Pedra, Contuboel, Dunane, Coimbra
Beja Santos
“Relação de Bordo” é o diário de Cristóvão de Aguiar entre 1964 e 1988 (Campo das Letras, 1999). Nascido em 1940, Cristóvão de Aguiar frequentou o curso de oficiais milicianos em Mafra, em 1964. Está na Guiné entre 1965 e 1967. A sua experiência de guerra fornece-lhe material para “Ciclone de Setembro”, que aparecerá autonomizado com o título “O Braço Tatuado”, em 1990. Cristóvão de Aguiar é detentor de importantes prémios literários e Comentador da Ordem Infante Dom Henrique.
Chega a Mafra em 26 de Janeiro de 1964 e escreve: “O casarão do Convento é tão frio e tão feio que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado. Fiquei na caserna número 15, no terceiro piso, a maior de todas. Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro”. Habitua-se ao toque da alvorada, faz a cama, pertence ao quarto pelotão da terceira companhia. O comandante da companhia, diz ele, é muito aparatoso nas continências, parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. A formatura é sagrada: ali ninguém fala, mexe, ri ou pensa. Na instrução, aprende-se o conceito de pátria e fala-se em D. Duarte de Almeida, o decepado, uma verdadeira lição de patriótico amor. Estuda-se a espingarda Mauser, nessa altura a G-3 ainda não é popular. Uma boa parte da existência de um soldado-cadete passasse no corredor La Couture, o tal por onde podem andar jipes e outras viaturas. Anseia-se pelo fim-de-semana, para se sair é indispensável botas luzidias, cabelo e barba irrepreensivelmente cortados. A semana começa com um cross, na instrução da tapada a malta rasteja e dá cambalhotas na lama. Escreve em Março: “Há dois meses com uma farda e uma espingarda que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo... Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha. Aos e sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias. Hoje, sábado, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por viga com não mais do que trinta centímetros de largura. O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos”. Em Maio, o quartel anda numa polvorosa, apareceram panfletos anti-guerra. A seguir, um major arengou sobre os inimigos da pátria, pediu a todos vigilância sobre o inimigo. Surgiram mais panfletos comentando os comentários do major. Chegou Junho, e com a semana de campo andaram todos a brincar à guerra. Promovido a aspirante, é colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar. Aqui é chamado ao comandante, fora visto a acamaradar com um cabo miliciano, não se comove com o argumento de que é gente da terra e colega do liceu, um oficial não acamarada com um cabo miliciano em circunstância alguma. Seguem-se as férias de mobilização, no Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, são horas de mágoa, recordações de namoros infelizes, relações familiares difíceis. Em Abril de 1965, em Sábado Aleluia, a companhia parte no Ana Mafalda. Chegado a Bissau, vão todos para a carreira de tiro, agora a espingarda é a G-3, e escreve no final do mês: “Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustrada rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões operacionais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não bélicas, oito horas seguidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida. Para que não houvesse quebra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes dessem, à vez e na ordem inversa da sua antiguidade, duas horas de instrução cada um. Ainda se acredita piamente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtudes militares, sobretudo da disciplina”. Como se escreveu na recensão de “Ciclone de Setembro” o capitão fica ferido numa operação-treino em Nhacra. Cristovão de Aguiar fica a comandar a companhia. Em Maio estão a viajar para Bambadinca, seguem Contuboel: “Fui cumprimentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-seminarista, e dois comerciantes – um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e respectiva consorte, e um libanês, cujo estabelecimento fica em frente da messe”. Em Junho vai com o pelotão para Fajonquito e seguem para uma operação no mato do Caresse. Em Outubro, chegou a hora de ir para o destacamento de Dunane, não há população. Escreve: “Eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga situada não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrar o silêncio da noite”. Depois, em Janeiro de 1966: “Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, se ouviram grandes rebentamentos. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sob o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois dos guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC”. A comissão continua em Contuboel e no Sonaco. Em Setembro, os nervos vão-se abaixo, segue para Bissau: “Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiros de Walter e de G-3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G-3. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria, com cavalo-marinho, que dei num furriel.” Em Outubro está de regresso a Contuboel. Em Dezembro, visto que era obrigatório que os soldados analfabetos saíssem da tropa a saber ler e escrever, aldrabou com uma professora cabo-verdiana os exames dos ditos: “Encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes”. E depois é o regresso. Em Fevereiro de 1967, recomeçam os estudos. Aqui e acolá, o diário vai falando na escrita, sobretudo das diferentes reacções ao “Ciclone de Setembro”. Aparentemente, este escritor nascido no Pico da Pedra irá andar por outras errâncias, até que, em Julho de 2003 escreve “Trasfega”, uma colectânea de contos, onde em “A Noite e a Sombra” vamos ser reconduzidos à Guiné. Os escritores combatentes podem adormecer, vacilar, iludir, mas a memória e certas solidariedades cumprem inexoravelmente o seu caminho.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)
1 comentário:
“Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiros de Walter e de G-3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite.
(...) O pior foi o ensaio de pancadaria, com cavalo-marinho, que dei num furriel.”
São palavras do Cristóvão de Aguiar, o escritor na recensão do Mário Beja Santos.
Cavalo-marinho num furriel?
É obra...
Abraço,
António Graça de Abreu
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