quarta-feira, 14 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 5 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Tomei o vapor para as Ilhas açorianas, parece que não quero sair de lá.
Para dizer a verdade, a saudade de São Miguel nunca me largou, ali cheguei em Outubro de 1967, lá permaneci até Março de 1968, vim formar batalhão na Amadora onde me classificaram como “Ideologicamente Inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar português”. Como se viu.
Estou a juntar as fotografias daquele tempo magnífico, bem pode acontecer que esta caterva de recordações desagúe no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Cataplasmas para pesadelos recorrentes

Beja Santos

Desde que escreveu “Ciclone de Setembro” (1985), Cristóvão de Aguiar (1940)* nunca mais largou o filão da Guiné, onde combateu de 1965 a 1967. Virá a desafectar de “Ciclone de Setembro” o romance “O Braço Tatuado” (1990), segue-se “Relação de Bordo” (1999), “Trasfega” (2003) e “A Tabuada do Tempo” (2006).

Acabam por ser farrapos que se evolam da memória, numa hora incerta entre o dia e a noite, uma mistura de recordações passadas na infância, aos encontrões entra-se na guerra, onde se misturam pessoas, rebentamentos, animais que procuram o afago humano, e o apelo à Ilha, a obsessão açoriana espalhada por dois continentes. Pegue-se em “Trasfega” (Prémio Literário Miguel Torga, Publicações Dom Quixote, 2003). É uma colectânea de contos, muito ao sabor das forças elementares da Ilha. E a culminar a viagem ruminada pela açorianidade, as dores inescapáveis de uma Guiné que não descolam daquele alferes da 666, por acaso o número da Besta, o conto “A Noite e a Sombra”. Alguém acorda estremunhado, chegou a hora da apresentação dos fantasmas, eles caminham nos rodízios da mente, quem está a viver o pesadelo permanente procura afastar as imagens das atrocidades que foram vistas por aquelas terras que têm bolanhas, tornados e até rios sem nascente, um território que mingua ou se expande de acordo com a lei inexorável das águas. Quem acordou até se lembra do Apocalipse, súbito entrepõe-se a recordação do pai, aparece depois o professor das primeiras letras e de novo se escancara a bruteza da guerra, dá pelo nome de Querubim, é chefe de brigada da polícia secreta:

“Vejo-o uma noite, em Bafatá, onde fui por abastecimentos e pelo correio para a minha companhia; está na messe de oficiais com duas crianças negras, os pais haviam sido presos e levados para parte incerta, o destino mais que marcado; na altura, ainda não sei desses pormenores, por isso me enternece a sua atitude para com aquelas duas crianças indígenas, parecem gémeas de pouco mais de seis ou sete anos; dá-lhes de comer e de beber com tanta ternura e carinho, que me vou emocionando com os maternais cuidados do secreta, ao serviço do batalhão e da Pátria... No outro dia, logo ao princípio da tarde, estou eu ainda dormindo a sesta, quando o meu guarda-costas, o Vila Velha, vem acordar-me: tinha chegado uma coluna de Bafatá comandada por um alferes meu amigo, queria falar comigo; levanto-me e vou ter com ele; ele então conta-me: “O Querubim, depois de ter saciado as crianças, cujos pais tinham sido levados para parte incertamente incerta, deu-lhes uma grande bebedeira, como se faz aos perus, e degolou-os a seguir longe da messe e do quartel, fora dos olhares cúmplices da hierarquia militar; no dia seguinte, dá o alarme, dizendo que encontrara duas crianças negras degoladas na orla da bolanha: «São certamente os turras os obreiros de tal tragédia...»; nesta conformidade, elabora um circunstanciado relatório dirigido aos seus superiores hierárquicos, denunciando crime tão horrendo, próprio de gente sem escrúpulos nem sentimentos, devemos exterminá-la sem contemplações; diz-me também o alferes Xavier que o chefe de Brigada de gabara, entre amigos íntimos, «Sempre são menos dois futuros turras para chatear...»”. Depois o pesadelo vai até Coimbra, há histórias que se enovelam, mistura-se a Ilha, os tiros nas picadas, coisas passadas em Buruntuma, quem acordou em pesadelo despede-se da escrita insinuando que regressará a qualquer momento. Como comprovam as notas do diário publicado em 2006, “A Tabuada do Tempo, a lenta narrativa dos dias”, Livraria Almedina:

Janeiro, 11 – Ao regressar da guerra colonial trazia por companhia uma caterva de fantasmas. Um deles até nem era desinteressante. Fazia com que me sentisse enjoado na sala de qualquer cinema. Mas, se fosse assistir, na mesma plateia, a uma peça de teatro, nada me acontecia. Nos filmes, tinha de sair a meio – tonto, agoniado, enjoado. Passei então a levar o meu doce fantasma apenas ao teatro, e risquei o cinema dos meus hábitos. Um dia de intensas intenções, decidi esconjurar-me. Decidi ir a um filme de Chaplin. Vomitei na sala de cinema. A cena passava-se a bordo. O mar revelava-se cavado e de tal forma desabrida se balançava o barco, no ecrã, que o enjoo do Santo Amaro, velho iate de cabotagem entre Ilhas, onde em dia aziago encomendei a alma, foi-me pouco a pouco engulhando o estômago. Não tive mão no mal-estar e lancei a carga ao mar alcatifado da plateia. Não me dei por vencido. Fui outra vez. Senti-me mal, mas, por força de vontade, não arredei pé. Dias depois, nova ida. Saí muito menos agoniado. A partir da terceira vez, deixei de sentir os agudos sintomas de princípio de gravidez. Esta tarde fui ao cinema. Antes de me sentar à banca da escrita, lembrei-me e fui espairecer. Estou já na sala do Avenida. Chato é o filme, desligo-me do ecrã. Presto atenção ao moedouro de dentro. Nas conferências de sete léguas faço o mesmo, mas nunca durmo. A arte de dormir, em conferência, só na têm alguns eminentes eruditos. Sintonizam a ciência do não cabeceamento com a última palavra do orador que os desperta para as palmas e os bravos. O filme continua chato, as imagens rodopiam. E eu, sentado num assento fofo, persigo imagens diferentes em outras telas. O banco é duro e comprido. Estou à ilharga de meu Pai, na sala do teatrinho de Pedreira. Assisto ao primeiro filme da vida, a Quimera do Ouro. Pouco ou nada entendo, mas as cenas esculpem-se-me na memória. O actor de bigodinho, chapéu de coco e de bengala, andar escanchado e as ponteiras dos sapatos enviesadas, parece-se com o mestre ferreiro da Lomba, o mestre Jaime, que ensinou o ofício a meu Pai. Radiante com a descoberta, deixo-me arrastar pela corrente magnética que sai do ecrã ao meu encontro e me vai puxando para o miolo da aventura. Nem o coto de cinza em brasa de cigarro, caído do galinheiro do teatro e que me entra no olho direito, consegue fazer-me afrouxar a atenção. Mau grado o ardume e a gana de esfregá-lo, conservo-me impassível. Almofado o olho com o lenço de meu Pai e o esquerdo faz o serviço de ambos. Saí do cinema há poucas horas, o mestre serralheiro da Lomba subindo a saudosa ladeira da lembrança e o Santo Amaro já atracado há muitos anos ao molhe da doca. Que leveza não sentir o iate de cabotagem encalhado na cova do estômago!

Fevereiro, 4 – Uma enxaqueca de endoidar o juízo, já de si pouco famoso. Três dias seguidos e respectivas noites. Parecia que havia regressado ao pós-guerra colonial, o período mais negro e cruel da minha vida. Até me conduziram ao banco do hospital. Depois de uma injecção na veia, fiquei como se tivesse renascido. Via tudo com cores mais vivas e senti-me subir ao ar como um balão.

Maio, 31 […] Ainda tive de esperar mais de uma hora por um programa televisivo sobre a guerra na Guiné-Bissau. Foi para o ar cerca da meia-noite e tinha por título De Guilege a Gadamael, duas povoações onde existiam dois aquartelamentos portugueses, ao sul – o reino do Nino, hoje presidente da Guiné (o chamado corredor da morte) – bases que foram bem fustigadas pela guerrilha e por fim, quando os ataques eram insuportáveis, abandonadas pelas nossas tropas, para fúria de Spínola. Queria fuzilar os fugitivos... Revivi a minha guerra, a paisagem continua idêntica. Gostei do programa, da confraternização dos antigos guerrilheiros com os ex-combatentes, um deles alferes miliciano na altura, actualmente professor de Liceu e com mais vinte e tal anos em cima do pêlo. Falaram todos sem preconceitos, no local outrora inferno, e ainda com resquícios da velha guerra colonial, abrindo o jogo e falando abertamente sobre o que, na altura, Maio de 1973, presidia às suas intenções. NinoVieira estava presente, fardado de camuflado, comandante supremo, na ocasião, daquela zona sulista. O Viriato Madeira esteve por lá cerca de um ano, na Ilha do Como. O Inferno ao vivo!

Como se vê, a memória de Cristóvão de Aguiar promete. Dizia-se, logo a seguir ao termo da guerra, que ninguém mais queria falar dela. Quem tal prognosticou bem se enganou: deve-se ter escrito mais sobre a guerra colonial nestes últimos dez anos que nos últimos trinta e cinco do século XX. As línguas soltam-se, talvez seja a desinibição da idade, de quem quer deixar as contas em dia, o seu legado histórico ao alcance dos outros. E enquanto esperamos novas páginas de Cristóvão de Aguiar, vamos falar de “O Braço Tatuado”.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6137: Notas de leitura (91): Depois da guerra, as recordações da região de Cacine... e algo mais , de Luís Rosa - II (Beja Santos)

1 comentário:

bb disse...

"pegue-se em Trasfega"...
se pegar assim, com a desplicência de quem tem apenas mais um livrinho ofertado na sua frente, não vai longe, esquecendo-se de reconhecer o magnânimo testemunho que Cristóvão de Aguiar deixou na literatura portuguesa, sobre a Guiné e na psicologia da guerra, lato sensu. Se fizerem outra ANTOLOGIA DA GUERRA COLONIAL, NÃO SE ESQUEÇAM DE POR cRISTÓVÃO NA CAPA.