sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A relação entre Annette e Paulo Guilherme evolui à roda de uma guerra onde o protagonista fora participante, cerca de trinta anos atrás, a intérprete belga acedera, num jeito de cumplicidade sem quaisquer outras consequências, a ir acompanhando a história dessa experiência na guerra colonial, mas tudo rapidamente se transforma, ambos já não escondem a atração mútua, ela própria fala em saudades, a correspondência é copiosa e os telefonemas constantes, a expetativa de reencontro começa a ser tórrida e Paulo Guilherme desvela aqueles primeiros meses e o amor que se vai entranhando pelo Cuor e pelas suas gentes.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, que maravilha, estivemos ao telefone tanto tempo ontem à noite, deu para mitigar as muitas saudades que tenho de si. Estou contentíssimo com o que se está a passar na evolução dos seus filhos, oxalá que tenham sucesso nas opções tomadas. Vejo que tem viajado pouco, tudo concentrado em Bruxelas ou quase, temo que, quando dentro de breves dias, lhe anunciar as minhas disponibilidades para a visitar (aguardo a qualquer momento a marcação de uma reunião urgente entre um serviço da Comissão Europeia e a Direção da Associação Europeia de Consumidores, de que faço parte), me vá responder que está na Irlanda ou na Dinamarca nessa altura. Faço figas para que tal não aconteça. Gostei muito do seu entusiasmo quando lhe falei do livro mais recente que publiquei, enviei-lhe um punhado de fotografias de alguns dos meus amigos que me deram o gosto de estar presentes.

Antes de adormecer, a minha querida Bruxelas, aquele território que tão bem conhece, assomou-me à mente, guardo ainda uma boa memória fotográfica. Logo aquele hotel que durante muito tempo foi um dos meus recursos mais baratos quando o George V estava cheio, o Mirabeau, na Place Fontainas, a Praça é mesmo incaraterística, dá para uma zona muito simpática, de gente alternativa, no Verão há imensas esplanadas, costumo passar por aqui até chegar à Grand-Place e depois tomo o metro na Gare Centrale ou se tenho tempo vou a pé até aos locais da reunião. Já a dormitar, imagine as imagens que me afluíram, primeiro o Museu de Ixelles, ainda não tive a felicidade de lá ir consigo, que belas exposições e que acervo permanente, houve para ali um doador que colecionava os cartazes de Toulose-Lautrec e deixou este fabuloso património a este museu comunal que se pode gabar de ter um dos maiores acervos de tais obras fora da França. E já na mais completa sonolência, sem qualquer lógica na sequência das recordações, como costumo ir comprar coisas aos meus filhos na Rua Nova, paro a fazer algumas orações na Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, o monumento barroco que tem uma sumptuosidade contida, onde me sinto bem em recolhimento, às vezes sento-me ali já de mala aviada e com sacos dos presentes para os meus entes queridos. Tudo isto serve para dizer, se ainda subsistem dúvidas no seu pensamento, que o seu país me é profundamente caro, a ele volto com o coração aos pulos, mesmo quando passo um domingo fechado a trabalhar na organização de aulas ou coisa que o valha. Como é evidente, agora que a Annette me quer ouvir, é ao pé de si que me sinto bem nesses ditosos fins-de-semana. Estar na sua presença é uma exultação à vida, uma promessa de futuro ridente.

Agora procuro dar-lhe por escrito informações complementares àqueles primeiros meses de Missirá, tempo de adaptação, mas de descoberta, e não lhe quero esconder que ia ganhando uma enorme confiança neste novo relacionamento com os militares e os civis. De tal forma, que jamais os esqueci, e todos os dias agradeço ao Bom Deus com eles ter convivido.

 Praça Fontanais

 Museu Comunal de Ixelles

Igreja de Nossa Senhora da Finisterra

Havia pouco tempo em Missirá quando alguém matou esta temível cobra, uma surucucu. Aproveitei esta imagem recordatória para lhe comentar o fundo do que está a ver. São bidons encavalitados com chapas aplainadas, o objetivo é proteger quem por aqui circula no caso de uma flagelação. Por trás de mim está o primitivo balneário, logo que o contemplei pela primeira vez fiz a jura de o substituir rapidamente, quem ali entrava feria-se nas chapas cortantes, o cimento estava todo estalado onde púnhamos os pés, tomávamos banho calçados com sandálias de plástico, a água saía de um chuveiro com um cheiro oloroso a petróleo. Dentro de poucos meses, atravessaremos o rio Geba com um primoroso sistema de seis bidons interligados com três chuveiros, dando oportunidade a uma maior rotação no balneário, e depois de conversar com o régulo acordou-se que os homens e os jovens da população dele podiam usufruir, já que as mulheres e as crianças faziam a sua higiene quando iam lavar a roupa e trazer bilhas de água numa fonte chamada de Cancumba.

Tenho pena de não haver uma fotografia posterior com o novo balneário e os sanitários. Sim, os sanitários. Quando cheguei a Missirá, o Cabo Teixeira, com discrição, foi-me mostrar um local com vala para os nossos detritos sólidos e líquidos, não escondi a repugnância, muito em breve irá começar o meu assédio junto da delegação do Batalhão de Engenharia em Bambadinca, queria duas sanitas para criar dois compartimentos, só ganhei uma, o mesmo Cabo Teixeira concebeu a fossa, alisou-se o terreno, cimentou-se, fez-se porta. Eu sei que agora a Annette se vai rir com o que vou contar, um dia dirigi-me ao sanitário, vi a porta aberta e vi um dos meus soldados de pé, em cima da sanita, ele ficou confuso e eu aterrado, mais dia menos dia teríamos a sanita partida. Apercebendo-me que havia ali um problema cultural, e que a questão tinha os seus melindres, reuni a tropa e expliquei-lhes que se devia fazer um esforço para manter a higiene daquela instalação sobretudo não partir uma peça de cerâmica com todo o peso em cima, a vala ainda estava aberta e quem não pudesse ter o hábito de se sentar e de deixar o sanitário limpo depois de o usar, devia frequentar a vala. Para minha surpresa, a sanita mantinha-se irrepreensivelmente limpa depois de qualquer uso, um balde sempre cheio de água e um cesto para recolher papel usado. A higiene viera para ficar, os militares deixaram de ir à vala.


Annette, apresento-lhe um ângulo de Missirá, junto a uma porta que não é a principal, aí havia um cavalo de frisa, esta era a chamada Porta de Sansão, tinha torre de vigia, felizmente quando cheguei a Missirá já estava relativamente desbastada a área circundante, mas vi sempre com muita apreensão aqueles cajueiros onde se podiam instalar guerrilheiros na escuridão da noite. Mais tarde, alargou-se a distância, irei muitas vezes sair ou entrar pela Porta de Sansão, dava-nos a tranquilidade de caminhar a corta-mato, passava-se ao lado de Maná, mais adiante atravessava-se a estrada de Canturé e avançávamos pela região de Chicri, parecia um território lunar, umas formações em cogumelos, a laterite em pó, mesmo com as calças bem presas com atilhos, toda aquela poeira tinha o condão de subir até ao pescoço misturada com o suor, e assim caminhávamos até Mato de Cão, aproximadamente 12,5 quilómetros a partir desta Porta de Sansão. Como estamos em maré de intimidades, confesso-lhe que dava tudo para fazer este percurso debaixo de chuva torrencial ou com o sol inclemente, com aquelas ondas de calor que geram miragens como no deserto. E Chicri naquele tempo tinha um dos mais belos palmares, tantas vezes por ali passei e questionei como a natureza chega a ser esplendorosa em locais onde tanto sangue se derramou, como eu próprio experimentei.


Como é natural, procurei saber algo sobre esta família Soncó. Os comentários que me chegaram, o que pude ler, nunca me satisfez. Demorei muitos anos até chegar a um certo ponto da verdade. O avô do régulo Malam Soncó, de quem me irei transformar em irmão, dera muitas dores de cabeça às autoridades de Bolama, obrigou a que se tivesse feito uma expedição militar como jamais existira no Centro-Leste, governava Oliveira Muzanty, tudo se passou entre 1907 e 1908. Precisei de um dia ter acesso a um livro para conhecer Infali. Era uma família Beafada que viera do Forreá, e por isso se pode dizer que eram Beafadas mandinguizados, isto é, aceitaram a cultura Malinké e adotaram a sua língua.

Uma das pouquíssimas imagens de Infali Soncó, está sentado no centro, com uma arma na mão. Em breve, vai começar a guerra no Cuor, de que sairá derrotado, estamos em 1908. Fotografia retirada do álbum O Primeiro Fotógrafo de Guerra Português: José Henriques de Mello, por Alexandre Ramires e Mário Matos e Lemos, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, com a devida vénia.


Despeço-me da Annette com esta fotografia, foi um dia muito feliz da minha vida. Informara ao anoitecer muito cedo, no dia seguinte, iríamos até Bambadinca. Tudo mentira, tinha que estar perto das 10 horas da manhã em Mato de Cão. Chamei em segredo o condutor Setúbal e disse-lhe para levar jerricãs em quantidade, o percurso seria o dobro, iríamos até Enxalé, uma completa surpresa. Estou de braço dado com Nhamô Soncó, ao lado do seu marido, Bacari Soncó, irmão do régulo Malam. A Nhamô leva a sua trouxa convencida de que vai para Bambadinca, deu gritos quando em Canturé virámos para Gambaná e fomos estrada fora até Mato de Cão. E mais gritos deu quando nos encaminhámos para o Enxalé. É uma história que mais tarde irei desenvolver quando esta pobre Nhamô for brutalmente ferida numa flagelação a Missirá, em junho de 1969.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21111: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória

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