sexta-feira, 26 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21111: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Naquele encontro de setembro de 1999, no decurso de uma reunião de trabalho em Bruxelas, num ímpeto totalmente imprevisto, o português Paulo Guilherme pediu à intérprete Annete Cantinaux se podiam almoçar, tinha um pedido a fazer-lhe, coisa de alguma monta, desejava, agora que caminhava para os 50 anos, escrever as suas memórias como combatente numa guerra colonial, tinha idealizado um romance, para isso forjara os amores entre belga e português, gente que se irá afeiçoando gradualmente, com o pretexto do português lhe enviar muita documentação correspondente ao histórico dessa comissão militar e como, entretanto, ambos se afeiçoaram, eram dois seres disponíveis, só a distância física os separava, mas era problema irremediável, desde que houvesse cimento para confiar no futuro.
Annette aceita o desafio, não tinha nada a perder em embarcar no devaneio ficcional daquele português, que agia tão corretamente com ela, ainda por cima tinham afinidades culturais, e o português gostava da Bélgica, o que ela sabia que não era muito comum, os eurocratas de diferentes nacionalidades estavam sempre a suspirar por regressar à pátria, aquele português não, aproveitava todas as circunstâncias para se enfronhar na vida belga, não perdia pitada, era entusiasmo suplementar para Annette.
E caminhamos para novembro, já temos três meses em Missirá, num regulado chamado Cuor, Annette vai lendo toda aquela papelada, mas acima de tudo suspira pela companhia de Paulo Guilherme, e não esconde que há para ali o rastilho que leva à germinação de um idílio.
Enfim, coisas de romance.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo, tenho sentido muita falta dos seus telefonemas noturnos, é uma companhia a que me habituei, começo agora a perceber o sentido da vossa palavra saudade. Quando nos despedimos, admitiu que pode fazer uma semana de férias sugeriu mesmo que gostaria de conhecer a Valónia com uma certa profundidade, fora de cidades que já conhece bem como Liège e Namur. Deixe-me fazer o calendário, sei que há uma semana de novembro em que não teremos reuniões, como bem sabe, os políticos europeus andam numa grande reflexão sobre a realização do grande mercado interno, as instituições irão reunir-se para um debate, já foram escolhidas as equipas intérpretes, informaram-me que eu ficarei de fora, assim que tiver notícias seguras transmito-lhe, pode bem acontecer que tenha então disponibilidade para vir.

Jean Favier
Comecei a ler um interessantíssimo livro de divulgação sobre a história dos grandes Descobrimentos, creio que conhece o autor, é Jean Favier, um medievalista, professor na Sorbonne, que teve responsabilidades nos Arquivos de França e foi mesmo Diretor da Biblioteca Nacional. Eu fui tomada pela curiosidade de conhecer um pouco mais a História de Portugal, mas esta narrativa é fascinante sobre os empreendimentos para desencravar o mundo desde a Mesopotâmia até ao Império Romano, viajantes e geógrafos, aquele terramoto que foram as Invasões Bárbaras, a que se seguiram as Conquistas Árabes, com novas rotas no Atlântico Norte, peregrinações e o ideal da Cruzada, fiquei fascinada com toda aquela mitologia à volta do Preste João, que lenda espantosa, li mesmo que um rei escandinavo enviou um emissário, de nome Valarte, à corte do rei D. Afonso V, foi até à Guiné, claro que não havia Preste João nem perto nem longe. Já estou no século XV, há mapas e portulanos, ao nível dos navios já se chegou à caravela, os portugueses já foram a Ceuta e há um príncipe que insiste em explorar a costa africana para Sul, é nessa Costa de África que o Paulo combateu. O livro propicia uma leitura entusiasmante e enquadra a saga do seu povo.


Fiquei atento ao seu pedido para conhecer numa próxima oportunidade património industrial, arquivístico e religioso na cidade, e que não seja de fácil acesso. Lembrei-me que podíamos visitar o Instituto Paul Hankar, eu preparava um roteiro dos edifícios concebidos por este genial arquiteto. Nas jornadas do património de 2020, a municipalidade de Bruxelas prepara uma série de visitas a cristalarias que tiveram grande importância no fim do século XIX, época em que a Bélgica era a quinta potência industrial do mundo, vou estar atenta. Como o Paulo já conhece o principal património religioso católico e protestante, lembrei-me que se podia visitar o esplendoroso templo maçónico, são os Amigos Filantrópicos, junto duas imagens que, estou segura, lhe aguçarão a curiosidade. Continuo a acompanhar os seus primeiros meses no Cuor, tudo se me tornou claro quando me enviou o mapa, caiu-me o coração aos pés quando vi aquela fotografia a dar aulas de português aos seus militares, tudo tão pobre, tão mal acabado, um dó de alma. Nos seus apontamentos, explica perfeitamente o que encontrou, o seu assombro quando saiu da sua casa e tinha à espera uma mulher que espremia o peito dizendo que não tinha leite e que o menino ia morrer, e que pronto marchou para a vila para comprar leite em pó, eram muito curiosas aquelas colunas militares que fazia para se ir reabastecer e também para os civis, escreveu com um certo humor cada vez que o chefe da tabanca lhe batia à porta era para lhe dizer que tinha acabado o arroz e que a população no dia seguinte não tinha nada para fazer… Há imagens pungentes, aquele balneário era tão precário e inseguro, a sua existência em conseguir um chuveiro melhor e como conseguiu trazê-lo dentro de duas canoas, que peripécias, vi também aquele caminho cheio de lama junto do Geba, uma estrada esburacada que levava à tal povoação que ainda estava em muito mais mau estado do que Missirá, Finete.

Um aspeto do Templo Maçónico de Bruxelas, os Amigos Filantrópicos

Vitral do mesmo Templo, situado na Rua de Laeken, em Bruxelas

Comoveu-me outras imagens laboriosas desse povo, parece que ainda estamos nos tempos antigos, nos primórdios da civilização, a construir barreiras para impedir que os arrozais sejam assaltados pela água salgada, a construção com vime, o Paulo disse-me mesmo que os teares são antiquíssimos para fazerem bonitos panos, se trabalha rudimentarmente o couro mas onde os guineenses são primorosos é na escultura, gostei muito daquela imagem do tal pássaro Nalu que afugenta os maus espíritos. Muito obrigado por tudo quanto me manda, já percebi que a sua “paixão belga” tem que ir acompanhando, mês após mês, as vicissitudes, os trabalhos e as dores desse alferes de Missirá.

Balantas trabalhando na construção de um ourique
Mandinga fabricando uma esteira
Missirá, na falta do professor, dei aula de Português junto do armazém de géneros

Bissau - A foto é de Virgínia Maria Yunes, da Guiné-Bissau. O balafon é um instrumento muito tradicional no país e em toda a África Ocidental. Precursor do xilofone, ele possui um reduzido número de teclas e utiliza uma solução de cabaças para os ressonadores. 
Imagem retirada de pordentrodaafrica.com, com a devida vénia

A minha filha Noémie, que tem o apelido do pai, Beuys, licenciada em Geografia, concorreu ao Ministério das Obras Públicas e Planeamento Urbano, foi admitida, estou muitíssimo contente. Trabalhei toda esta semana em Bruxelas, com exceção de quarta-feira, houve uma conferência em Gand, apoiada pela Comissão Europeia, para discutir os grandes problemas da automedicação, pensei mesmo se o Paulo não devia ter vindo, já que representa a Confederação Europeia dos Sindicatos nos dossiês da Saúde, na vertente da Cidadania. Mas tive o cuidado de juntar a documentação das intervenções dos diferentes oradores para lhe entregar. O meu filho Jules, creio que se recordará, é bibliotecário-arquivista na Biblioteca Real e falou-me que se vai realizar a partir de dezembro uma grande exposição de desenhos da nossa tapeçaria feita em Bruxelas e Malines, entre os séculos XVI e XVIII, a par dessa exposição irão ser mostradas, por cedência dos Museus Vaticanos tapeçarias de Rafael. Quando souber datas, transmito-as.

Veja se telefona mais vezes, se fala de si nos subscritos que me manda com os tais elementos da sua guerra na Guiné. No nosso último encontro eu senti-me um tanto desorientada, quando me lembrei que o Paulo não tinha mais de 23 anos e que lhe davam aquele fardo imenso de irem praticamente quase todos os dias vigiar a passagem de navios no principal rio da Guiné, para evitar que fossem destruídos pelos nacionalistas. Vendo as fotografias de como tudo era precário, os seus cadernos de apontamentos de como preenchia o seu dia, o correio enviado, o rol de leituras, o atendimento constante de casos pessoais, li mesmo com dificuldade aquela escrita um tanto garatujada de cartas onde lhe pediam dinheiro emprestado, empregando expressões pomposas, chamando-lhe pai, excelência, enviado do Divino Redentor, dei comigo a pensar na razão de ser do seu cuidado em transmitir às novas gerações como se vivia naquela África colonial. Mas penso que o seu sofrimento não acabou, como intérprete tenho assistido àquelas reuniões da área da cooperação com o grupo de África, Caraíbas e Pacífico, como se instalaram poderes corruptos, autocracias despóticas, saque de riquezas, a sina de sobreviver graças às ajudas humanitárias e a empréstimos que não se podem pagar. Por isso, o acompanho com carinho que não escondo, habituei-me à sua companhia, guardo-o com sentida devoção, e por isso lhe peço que venha depressa. A ver se esta noite me telefona, a ver se amanhã chega nova carta sua, é sempre uma bela surpresa.
Afetuosamente, Annette.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21090: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (7): A funda que arremessa para o fundo da memória

3 comentários:

Anónimo disse...

Ramiro Jesus

26 jun 2020 19:28


Olá, Luís, boa-tarde.

Junto em anexo uma foto e a sua legenda, publicadas hoje, e que me parece que não correspondem ao pretendido, já que - creio eu - o que aquele grupo de homens estaria a construir seria um dique (e não um ourique).

Cordiais saudações e bom fim-de-semana, com saúde e longe do "bicho".

Ramiro

Tabanca Grande Luís Graça disse...

ourique | s. m.

ou·ri·que
(do crioulo da Guiné-Bissau)
nome masculino
[Guiné-Bissau] Dique principal de uma bolanha, geralmente feito de lama e paus, que controla a entrada e saída de água nos arrozais (ex.: a manutenção do ourique implica muito trabalho).


"ourique", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/ourique [consultado em 26-06-2020].

Fernando Ribeiro disse...

Na legenda da última fotografia pode ler-se: «O balafon é um instrumento muito tradicional no país e em toda a África Ocidental.» Na verdade, o balafon é um instrumento tradicional em toda a África a Sul do Sáara e não só na África Ocidental.

Em Moçambique, que fica na África ORIENTAL, e não na Ocidental, este instrumento é chamado "timbila". Na vila de Zavala, na província de Inhambane, sul de Moçambique, existem orquestras inteiras de timbilas, que estão classificadas como Património Imaterial da Humanidade. Eis um exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=P1nZk-XR59Y.

Em Angola, este instrumento é chamado "marimba", tal como em muitos outros países. A região onde este instrumento mais se toca é a província de Malanje, que fica a várias centenas de quilómetros a leste de Luanda. Segue-se um vídeo com uma marimba malanjina: https://www.youtube.com/watch?v=gsC6NyyOJCc.

O que é verdadeiramente surpreendente é que este instrumento, que todos somos levados a considerar como sendo tipicamente africano, é na verdade originário da Indonésia e Malásia!!! Ele foi levado para a ilha de Madagascar pelos migrantes da ilha de Bornéu que atravessaram o Oceano Índico a bordo de frágeis canoas há dois mil anos e mais! Mesmo nos nossos dias, há milhares e milhares de malgaxes com traços físicos asiáticos, como é o caso do próprio presidente do país (https://pt.wikipedia.org/wiki/Andry_Rajoelina). Até a língua malgaxe é uma língua austro-polinésia, à semelhança do malaio, do indonésio e do tetum de Timor-Leste.

A partir de Madagascar, a marimba, balafon ou como lhe quiserem chamar, atravessou o Canal de Moçambique e espalhou-se por todo o continente africano. No vídeo que se segue, pode ver-se uma orquestra tradicional indonésia, chamada "gamelan", em que se veem instrumentos semelhantes ao balafon, mas que são de metal e percutidos com martelos, igualmente metálicos: https://www.youtube.com/watch?v=ldPMifPbngc.

Mas o balafon da África Ocidental supera todos os demais na doçura do seu som, como o comprova o seguinte vídeo, em que o guineense Kimi Djabaté canta e toca balafon na rua, em frente ao Conservatório de Música de Lisboa: https://www.youtube.com/watch?v=hA84y2aFogk.