CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
9 - De 16 a 19 de Maio de 1973
9 - De 16 a 19 de Maio de 1973
16 de Maio de 1973 (quarta-feira) - Tudo é instável e provisório
O meu Grupo de Combate entrou de serviço às 6 horas da manhã. Entreguei-o à responsabilidade dos meus furriéis e, aproveitando uma coluna, fui a Aldeia Formosa pedir contas ao Cap. J. C. Cmdt de Operações) e falei também com o Major D. M. para saber qual a nossa futura situação e para me arranjar o armamento necessário. Fiquei a saber que não continuaremos aqui em Mampatá depois da “grande operação” (3 dias), [BALANÇO FINAL], e que o armamento só me será entregue à tarde, porque chegará num avião (Nord-Atlas) por volta das 17 horas. Fiquei para almoçar lá, regressando a Mampatá quase de noite com uma escolta e trazendo 2 morteiros de 60 mm e 2 bazucas (LGF).
Em Aldeia Formosa reina a confusão, devido ao do excesso de tropas e, talvez, falta de organização, tudo por causa da “grande operação”. Será o objectivo da “operação” a entrada em Nhacobá? [Naquela altura ainda era uma base do PAIGC e respectiva tabanca]. “O problema das estradas”: focar e desenvolver. [Nunca cheguei a desenvolver o tema mas, neste caso, não tinha muito que saber: alguém traçou uma estrada que vinha de Mampatá, passava por Colibuia e Cumbijã e entrava Nhacobá adentro. Estrada estratégica e de custos humanos muito elevados. Mas não tinha nada que saber!...].
À noite, uma trovoada colossal e bastante chuva. A trovoada é mesmo por cima de nós e eu estou sentado sozinho no alpendre da messe de sargentos enquanto eles, lá dentro, jogam às cartas, creio. Mas eu estou a precisar disto. Parece que estas descargas eléctricas me ajudam a descarregar a minha própria tensão. Por vezes cai um raio mais próximo e, nesses instantes, deixo de ver tudo à minha volta, enquanto o trovão ribomba com tal fragor que parece estremecer a terra e pulverizar tudo. De repente, um raio cai na minha frente sobre uma árvore enorme nos limites da tabanca, a não mais de cem metros. No clarão produzido ainda dá para perceber uma projecção de fogachos a partir do centro da árvore e o som de madeira a rachar. Quase a tactear, com a vista baça, saio dali e junto-me aos demais no interior. Chega de terapia. É um risco muito alto continuar lá fora.
1973 – Mampatá numa tarde de paz. Nem ciclones, nem tiros
17 de Maio de 1973 (quinta-feira) – Entrada em Nhacobá.
Da História da Unidade do BCAÇ 4513 transcrevo, eliminando algumas abreviaturas, a actividade operacional relativa a este malfado dia, pois que, por falta de informação concisa e disponibilidade de tempo, as notas do meu diário são parcas. É uma descrição tão sucinta e seca, - certamente como deveria ser -, mas que bem poderia descrever uma excursão lúdica da rapaziada a Nhacobá. Todavia, tratou-se de um verdadeiro embate militar, quer pela acção da CCAV 8351 no terreno, quer pelo impacto e significado em toda a zona : entrou-se em Nhacobá e expulsou-se o inimigo. Antes de transcrever, devo referir que só conheci a História do BCAÇ 4513 muito recentemente, mais de 40 anos depois do regresso e por gentileza do nosso camarada e Grã-Tabanqueiro Antero Santos (CCAÇ 18-Aldeia Formosa), a quem estou muito reconhecido. Interessante como só agora, ao lê-la, fiquei a conhecer detalhes e ocorrências passadas ali à minha frente mas que, naquela altura, de grande movimento e confusão, escapavam à corrente de informações passadas de boca em boca. Talvez por isto, noto algumas discrepâncias entre a referida História da Unidade e os meus escassos apontamentos. Ou nem só por isso:
“Para cada acontecimento os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um”. (Tucídides – historiador grego, 460 a.C. / 395 a. C.).
Da História da Unidade:
“17 (de Maio) – OPERAÇÃO “BALANÇO FINAL”. — Forças da CCAV 8351 atingem NHACOBÁ e capturam 13 elementos da população (7 homens, 2 mulheres e 4 crianças) e 1 SIMONOV. Às 12h00 e às 12h15 estabelecem-se contactos com Grupo IN estimados em cerca de 40 elementos, tendo as NT sofrido 3 feridos graves e 3 feridos ligeiros. O IN sofreu 4 mortos e vários feridos prováveis. Capturou-se 1 SIMONOV e material diverso.
- Este Grupo IN ao fugir encontra-se com a 3.ª CCAÇ. Estabelecido o contacto as NT sofrem 1 ferido grave e 5 feridos ligeiros e causaram 4 mortos confirmados, vários feridos prováveis e capturam 1 RPG, 3 espingardas KALASHNIKOV e diverso material.
- Devido a forte temporal, o NORD-ATLAS que veio efectuar a evacuação, manteve-se na pista de A. Formosa durante toda a noite e só ao alvorecer descolou.
- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos da estrada”.
Do meu diário:
Hoje, e até às 18 horas o meu GC continuará de serviço em Mampatá. Acordei com mais dois camaradas alferes de Mampatá, ao som de obuses (15 a 20 minutos), por volta das 5 horas da manhã. Mesmo no decorrer do dia não soube se tinham sido as NT a “embrulhar” ou a baterem zona, mas teve decerto a ver com a posterior entrada das NT em Nhacobá.
Soube que o camarada T. B. e restante pessoal em Colibuia não conseguiram dormir toda a noite, por causa das águas das chuvas. Colibuia não tem condições.
À tarde passaram aqui em Mampatá duas Chaimites a toda a velocidade, com feridos para Aldeia Formosa. Houve “contactos” com o IN entre Cumbijã e Nhacobá, tendo havido 5 mortos turras (a História da Unidade diz 4) e captura de material.
À noite um tornado limpou todo o pó aqui da zona e depois choveu muito. Com o vento caiu o telheiro das oficinas auto em cima de uma Berliet.
1973 – Emissor Regional de Mampatá e o marco do correio
18 de Maio de 1973 – (sexta-feira) – Nhacobá ainda a “arder”.
Da História da Unidade:
“18 (de Maio) – Novo contacto IN da CCAV 8351 que sofreu 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. O IN fugiu desconhecendo-se se com baixas.
- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada”.
Do meu diário:
Chuva gelada durante muito tempo. Hoje o meu Grupo vai fazer serviço de apoio à retaguarda (das acções em Nhacobá). Consta de percursos em viaturas entre Aldeia Formosa e Nhacobá e retorno a Aldeia Formosa, para escoltas e demais serviços, sempre que as situações o exijam.
Às 6 horas da manhã, aqui em Mampatá, entrámos na coluna que já vinha de Aldeia Formosa, com destino a Cumbijã, com o meu pelotão distribuído por uma Berliet e um Unimog. A coluna estendia-se por não sei quantos quilómetros e, em todo o percurso, nunca consegui ver a cauda e a cabeça da coluna ao mesmo tempo: muitas viaturas, muita tropa, muita Engenharia e muita pressa em acabar a estrada para Nhacobá. À chegada a Cumbijã soubemos que durante a madrugada tinha havido novo contacto da 51 do Cap. V. da G. com grupo IN: tivemos 2 mortos (a História da Unidade refere 1) e vários feridos. A situação era grave (em Nhacobá) e por isso a maquinaria da Engenharia foi já muito tarde para a “frente”. Durante todo o dia não parei senão para comer, pois a escolta a viaturas com feridos e a outras viaturas para Aldeia Formosa, e as idas ali para trazer material e rações de combate para os grupos da “frente”, não me deram descanso. a)
À noite doía-me a cabeça e estava cansado. Regressámos a Mampatá todos exaustos.
a) – Julgo que foi neste dia que assisti a uma cena terrível, passada com um dos evacuados de Nhacobá. Não tenho registos sobre isso, pelo menos nesta sequência cronológica, mas também não dava para registar tudo: eram demasiadas coisas. Mas aquela imagem nunca mais se me apagou da memória: na confusão de gente que entrava e saía da mata, muitas viaturas paradas, algazarra, enfim..., surgiu um soldado negro, provavelmente da CCAÇ 18, com um soldado branco às costas que berrava e esperneava como um louco ou como uma criança magoada mas com a força de um touro. Vinha mesmo enlouquecido. O resto não recordo, mas deve ter sido metido numa Chaimite e evacuado para Aldeia Formosa.
Certamente fiz a escolta dessa evacuação, que era uma coisa muito “engraçada” para me dar cabo dos nervos: as duas Chaimites arrancavam e eu, para as proteger, seguia atrás delas mas, quando chegavam a Aldeia Formosa, eu ainda estava a chegar a Mampatá. É certo que em caso de ataque no trajecto, eu aparecia logo com o meu grupo, mas... Mas que me irritava, irritava. Ou seria apenas a mania de contestar as ordens que vinham de cima? Digo isto agora, sei lá...
1973 – Mampatá e a estrada, ao fundo, que leva a Colibuia, Cumbijã e Nhacobá.
19 de Maio de 1973 – (sábado)
Hoje o meu Grupo ficou numa “pedreira” a proteger as obras da estrada e as máquinas da Engenharia, entre Cumbijã e Nhacobá. A estrada leva um grande avanço e as máquinas não têm descanso, mas a estrada só está alcatroada até Cumbijã. Regressámos a Mampatá às 14 horas. Dia sem incidentes.
(Continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra
2 comentários:
Amigo António Murta.
Mais uma das tuas memórias daquela guerra. Fico á espera que escrevas mais umas quantas enquanto a tua memória assim o deixar.
Um abraço amigo.
José Carlos Gabriel
Caro amigo Murta:
Belo trabalho:
Eu passei lá ( em Nhacobá) uma noite, com a CCAç.18 e com a minha (6250) companhia. Fomos visitados durante a noite, registando-se um enorme fogachal.Não houve mortos nem feridos. Não sei se foi no dia 19 ou 20 de Maio mas o Antero sabe isso tudo.
Seria óptimo apareceres em Bustos , no próximo dia 11, no nosso convívio. Diz qualquer coisa para o meu TLM-919401036.
Um abração
Carvalho de Mampatá
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