sexta-feira, 3 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14830: Notas de leitura (733): “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
“Sagal, um herói feito em África”, de António Brito, não aguenta a comparação com um livro que é uma gema literária, “Olhos de Caçador”, a viagem de um Fernão Mendes Pinto não aos mares da China mas ao Planalto dos Macondes.
Sagal tem um arranque muito feliz, talvez haja naquele jovem paraquedista traços autobiográficos, já que António Brito se alistou aos 18 anos nas tropas paraquedistas e combateu em Moçambique. Mas a certa altura há um nítido destrambelho, sente-se que toda aquela vibração é produto de muitas leituras, do cruzamento de outros heróis, é uma ação que já vimos e lemos noutros sítios.
Seja como for, Sagal é um livro que prende a atenção e merece ser conhecido.

Um abraço do
Mário


Sagal, um herói feito em África

Beja Santos

A memória dos combatentes, com o passar dos anos, desloca-se desses primitivos teatros de guerra e espraia-se pela vida contemporânea. Os primeiros relatos de combatentes, nos anos 60, eram evocações de gesta heróica, apresentavam-se como testemunhos que a guerra não devia ser esquecida. Com o 25 de Abril e a independência das colónias, a agulha da escrita mudou de rumo, tornou-se denunciante, hipercrítica, assumiu até formas chocarreiras de derrisão; nos anos 80, já com a temperança, começaram a surgir obras literárias de cariz memorial, os combatentes começavam a perder inibição e a contar a sua verdade dos acontecimentos, a testemunhar; e esta paixão pelo relato tem conhecido franco desenvolvimento, nunca as memórias foram tão repletas e agora o relator não precisa de esquivas nem de ajustes de contas, o que há a pôr em memória ganhou em sinceridade. Isto para enfatizar que a literatura memorial se tem revelado o subgénero mais auspicioso da literatura da guerra que travámos em África. No entanto, a ficção não está adormecida e muito menos menorizada. É neste contexto que vale a pena considerar o significado do romance “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012.

No seu arranque, e num registo que absorve completamente o leitor, vamos saber que o futuro herói de África foi acolhido, recém-nascido, num bordel ali para os lados da Mouraria, descreve-se o bordel, as suas profissionais e a clientela, isto a par de uma maratona de recordações que o narrador vai percorrer no tempo em que dura o romance, vertente que trata a um ritmo excelente e na cadência certa: “Tempo de inocência, as raparigas ocupavam-no a abrir as pernas e a cuidar de mim. Entre a ociosidade das mulheres e a subida aos quartos com os clientes, parecia haver tempo para tudo, até para escutar os conselhos do doutor Rosado, o médico que vinha ao bordel verificar a saúde das raparigas. - A criança não pode andar por aí sem cuidados - avisava o bom doutor, examinando-me os ouvidos depois de perscrutar a genitália das rameiras”.

Sagal fora abandonado pela mãe numa caixa de margarina Vaqueiro na paragem do autocarro, na Praça do Martim Moniz. A criança foi batizada e puseram-lhe o nome de Emiliano Salgado. Emiliano, lembrança do rapaz que desflorou a Lola e Salgado em homenagem ao homem que lhe montou o bordel. Um batizado de arromba na igreja da Senhora da Saúde. Emiliano vai crescendo até que apareceu um polícia da esquadra da Mouraria e o levou para a reclusão num orfanato público, a Casa Pia. Seguem-se descrições cruentas, admiráveis, sobre o funcionamento da instituição: as alcunhas, as cenas de brutalidade, as retaliações, os vícios, os mecanismos da mente dos predadores de crianças. Desanca um pedófilo, segue-se uma fuga para a marginalidade mas antes há uma destruição vingativa de um carro de estimação do seu algoz.

“Larguei o ninho da Casa Pia. Ninho de ovos podres, ninho de ovos bons. De uns e outros nasceram gansos. Muitos saíram a voar; alguns, feridos nas asas, arrastaram-se pelo chão sem um olhar para as estrelas”. Começa a trabalhar com o After-Shave, um intermediário de roubos. Emiliano bate à porta dos paraquedistas, passa em todas as provas e descobre uma nova excitação no risco: “Então o paraquedismo é isto? Andar com o coração num alvoroço? Gemer com o estômago colado às costas? Atirar o corpo para o vazio como se aquilo não fosse nosso?”

Modelaram-lhe a cabeça, espremeram-lhe o corpo, aprendeu a matar e levaram-no para África, mais concretamente Moçambique. Em Nacala vai conhecer o Educador, um obcecado pela superioridade da raça branca. O autor apresenta por alcunhas alguns dos camaradas paras: o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Barbeiro de Sevilha, entre outros. A máquina de guerra está em ação. E nasce a lenda do Leão do Sagal, a operação tem todos os ingredientes da brutalidade e do arrojo. E assim chegamos ao 25 de Abril. Continuamos numa tessitura literária de originalidade, é uma bruteza exequível toda esta prosódia que acompanha a descolonização.

A partir de agora, se bem que a cadência não tenha perdido o empolgamento, sentem-se influências alheias neste Sagal mercenário dos sul-africanos, toda a operação à volta do rio Cunene mete Indiana Jones, Bruce Willis, OSS 117 criado por Jean Bruce, mas há muitas mais reminiscências que se podem exibir. O que deixa o leitor embaraçado, a originalidade com que toda a trama arrancou esvaiu-se em lembranças de obras alheias. Sagal regressa do Cunene muito mal tratado. Em 1977 chega a Lisboa onde se sente uma atmosfera pós revolucionária, surge uma crise de identidade, vai reencontrando camaradas paras, há gente a viver muito mal, desce à valeta, torna-se mendigo ou sem abrigo: “Para comer, passei a usar um truque que aprendi com os desabrigados mais antigos. Uns minutos antes de um comboio partir da gare, vou até à cafetaria e ao snack-bar e vigio os passageiros que estão a comer. Quando o altifalante anuncia a partida, os passageiros atrasados pagam rapidamente e abalam a correr, a mastigar, deixando no prato o resto da sanduiche, às vezes o resto da cerveja ou o sumo no copo. Nesse momento eu avanço e despejo o prato para o saco de plástico, antecipando-me à recolha do empregado”.

Sagal torna-se um D. Quixote da noite, velando por desgraçados sem garra, por humilhados sem defesa, perdedores de condição. Mário Chow-Lin e o irmão vão buscá-lo à valeta, começa a ressurreição, é levado para um mosteiro para os lados da serra do Caldeirão, entra em retiro (tratamento do corpo e da mente, descoberta dos limites, aprendizagem da meditação). E vai entrar em conflito aberto com os gangues que assaltam o Pão de Açúcar, primeiro trabalha como repositor, depois vai para o supermercado da Venda Nova, é aqui que vai ter lugar o confronto contra as tramoias de um grupelho intitulado Frente Nacionalista Popular por acaso altissimamente influente no mundo sindical. Sagal muda de pele, tem sempre uma frase apropriada para responder a todos os gestores, impõe-se e passa a chefe.

Sagal, o antigo para destemido, é agora um condutor dentro do supermercado, motiva a sua equipa, chama antigos paras, vê-se que é um homem de cultura, para além de ter uma inteligência fulminante. Os seus discursos são inflamados, a canalha revanchista vai perdendo espaço, e descontrola-se. E como no Alien, chega-se ao confronto final. É escusado dizer que aquele Educador que era racista, agora, qual camaleão, anda a incitar o grupelho revanchista. Surge entretanto uma mulher digna dos sentimentos de Sagal, de nome Angelina. É mesmo questão para perguntar: o que seria um romance de ação envolvendo um ex-paraquedista educado num bordel e na Casa Pia em que não aparecesse uma mulher digna desse justiceiro? A maratona vibrante, qual bom filme de aventuras da série B está praticamente no fim, o grupelho foi desfeiteado mas o Educador está sedento de vingança, já foi desmontado um golpe escabroso que envolvia dirigentes do Pão de Açúcar que tinham interesses imobiliários na Venda Nova. O Educador tenta matar o herói dos supermercados, temos aqui uma cena tirada dos livros de Mickey Spillane, um excelente escritor norte-americano que se impôs nos anos 50 do século passado, pelos seus romances negros:
“O vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao 38 entalado no sinto das calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou pela antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic. A minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão nas goelas por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa”.

O que pressagiava ser uma obra de primeiríssima água vai resvalando para um produto acabado de entretenimento puro. É pena, António Brito prova ter um estilo pessoal, não precisava desta tragicomédia de ação e rebentamentos cinematográficos. Apesar da frustração, António Brito é um nome a reter, escreveu um livro assombroso, “Olhos de Caçador”. Esperava-se mais, paciência, oportunidades não vão faltar para quem já tem créditos firmados.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

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